DIREITO TRIBUTÁRIO EM TEMPOS DE PANDEMIA: O CARÁTER RELATIVO DAS PENHORAS ONLINE DE ATIVOS FINANCEIROS EMPRESARIAIS ATRAVÉS DO SISTEMA BACEN-JUD/ SISBA-JUD COMO FORMA DE MANTER A ATIVIDADE EMPRESARIAL, EMPREGOS E A ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA

DIREITO TRIBUTÁRIO EM TEMPOS DE PANDEMIA: O CARÁTER RELATIVO DAS PENHORAS ONLINE DE ATIVOS FINANCEIROS EMPRESARIAIS ATRAVÉS DO SISTEMA BACEN-JUD/ SISBA-JUD COMO FORMA DE MANTER A ATIVIDADE EMPRESARIAL, EMPREGOS E A ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA

1 de março de 2022 Off Por Cognitio Juris

DIREITO TRIBUTÁRIO EM TEMPOS DE PANDEMIA: O CARÁTER RELATIVO DAS PENHORAS ONLINE DE ATIVOS FINANCEIROS EMPRESARIAIS ATRAVÉS DO SISTEMA BACEN-JUD/ SISBA-JUD COMO FORMA DE MANTER A ATIVIDADE EMPRESARIAL, EMPREGOS E A ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA

Cognitio Juris
Ano XII – Número 39 – Edição Especial – Março de 2022
ISSN 2236-3009
Autores:
José Carlos Cardoso de Souza[1]
Marisa Rossignoli[2]

RESUMO: No presente artigo faz-se uma abordagem das penhoras online de ativos financeiros através do sistema Bacen-jud/ Sisba-jud, cuja aplicação em caráter absoluto é capaz de inverter os benefícios até então por ela gerados. Criado como instrumento de garantia da efetividade ao Direito por proporcionar pronta resposta aos credores, o sistema de penhoras online pode transformar-se em instrumento contrário ao princípio de preservação da empresa, quando delas retira parcela de capital indispensável à manutenção da atividade e se converte em fator de desequilíbrio econômico, gerando desemprego e diminuindo, por consequência, a própria arrecadação tributária. Justifica-se, assim, que se analise este sistema sob a ótica dos princípios da livre concorrência e a da continuidade da atividade empresarial, conferindo-lhe caráter apenas relativo a partir de uma interpretação consentânea com os valores e princípios constitucionais, que, procedente em situações de normalidade, são indispensáveis nos tempos atuais de limitações empresariais impostas pela pandemia. Conclui-se que, apesar da necessidade de mecanismos de penhoras online, o momento atual deve ser analisado e levado em consideração, pois a geração de recursos necessários para se fazer frente às despesas causadas pela pandemia depende do crescimento econômico, que só é possível com a manutenção da atividade empresarial em pleno funcionamento, exigindo que se evite que as cobranças de dívidas tributárias, em caráter absoluto, sejam causas de geração de desemprego e de agravamento da crise econômica.

PALAVRAS-CHAVE: Bacen-jud/ Sisba jud; crescimento econômico; dívida tributária; interesse social.

ABSTRACT: In the present article, an approach is made to online pledges of financial assets through the Bacen-jud / Sisba-jud system, whose application in an absolute nature is capable of reversing the benefits generated by it until then. Created as an instrument to guarantee the effectiveness of the Law by providing prompt response to creditors, the online pledge system can become an instrument contrary to the principle of preservation of the company, when it removes a portion of capital that is essential for the maintenance of the activity and becomes factor of economic imbalance, generating unemployment and consequently decreasing the tax collection itself. It is justified, therefore, to analyze this system from the perspective of the principles of free competition and the continuity of business activity, giving it only a relative character based on an interpretation consistent with the constitutional values ​​and principles, which, coming from normal situations are indispensable in the current times of business limitations imposed by the pandemic. It is concluded that despite the need for online seizure mechanisms, the moment must be analyzed and in the name of the economic growth that is only possible with the maintenance of the business activity, the collection cannot be carried out without analysis if it is not increasing unemployment and the economic crisis

KEYWORDS: Bacen-jud/ Sisba jud; economic growth; tax debit; social interest.

INTRODUÇÃO

Em momentos de crise econômica, como é o atual da economia brasileira, o olhar sobre o sistema de cobrança de dívidas torna-se mais necessário ainda, especialmente quando titularizado pelo estado. Neste contexto, entende-se que o sistema de penhoras on line, como sistema de garantia de recebimentos de dívidas tributárias, precisa ser rediscutido e reavaliado. A efetividade do Direito não pode ser analisada somente do ponto de vista extremamente pragmático, já que outros valores devem ser levados em conta na apuração e definição desta efetividade.

Garantir o pagamento de dívidas tributárias pode representar não a efetividade do Direito Tributário, mas sim, ao revés, a sua incapacidade de se adaptar às situações emergenciais e extremas, tal qual é a situação que se vive desde março de 2020 com a existência do Sars-CoV-2 e respectiva pandemia.

O artigo aqui apresentado analisa as normas do sistema Bacen-jud, agora Sisba-jud, de penhora on line de ativos empresarias, criado pela Lei 11.382, de 06/12/2006 e incorporado ao Código de Processo Civil, onde figura no artigo 655-A. Um mecanismo de penhoras implacável, cuja efetividade somente é obstada pela falta dos recursos a serem penhorados, situação cada vez mais presente em razão da falta de dinheiro que assola as empresas.

Apresenta-se a hipótese que esta suprema efetividade pode estar solapando recursos indispensáveis para a manutenção do negócio. Não se trata de uma defesa à inadimplência e a sonegação, mas acredita-se que o sistema, aplicado em caráter absoluto, aumenta o desequilíbrio concorrencial condenando precocemente pequenos negócios e inibindo inciativas geradoras de mais receita tributária.

Empresas detentoras de maior aporte financeiro são dotadas de condições de discutir e rediscutir suas dívidas tributárias de modo a não se verem atingidas pelo mecanismo. Empresas menos privilegiadas financeiramente não possuem nem mesmo condições de discutir inicialmente a dívida, o que lhes tolhe a possibilidade de provar que a cobrança é indevida ou maior do que devida, pois lhes faltam até mesmo condições de pagar as custas dos processos, o que as obriga a uma justa opção de canalizarem o dinheiro não para pagar estas custas, mas sim para pagar salários e fornecedores, tudo na tentativa de uma sobrevida funcional que lhes permitam, talvez no futuro, quitar a dívida tributária. Só que o processo de execução não para, nem as Procuradorias encarregadas de impulsioná-lo ficam aguardando seus desfechos, pois o dever funcional assim não o permite. Urge, assim, que se reavalie o caráter absoluto do sistema.

É da relativização desse sistema implacável que se pretende tratar aqui, esclarecendo, de antemão, que esta relativização não significa, de modo algum, a pretensão torna-lo ineficaz ou imprestável, nem cessar a efetividade da norma que criou.

A pesquisa realizada utilizou-se do método dedutivo e apoiou-se em pesquisa bibliográfica. Para investigação da hipótese apresentada o artigo apresenta-se dividido em 4 itens, iniciando com estudo sobre efetividade do direito tributário e a regulação da atividade econômica para, na sequência, poder discutir a relação entre dívida tributária e a manutenção da empresa na livre concorrência; depois apresenta pontos para análise sobre se o absolutismo do sistema Bacen-jud não seria negativo para a manutenção da própria economia e concorrência, principalmente em períodos de crise como o que se vive desde março de 2020; e, por fim, questiona-se se tal sistema não estaria impedindo a continuidade da atividade empresarial e se sobrepondo aos interesses sociais da manutenção da atividade econômica, que é a garantidora dos empregos e de outros direitos fundamentais.

1 EFETIVIDADE DO DIREITO TRIBUTÁRIO E O ESTADO COMO AGENTE REGULADOR DA ATIVIDADE ECONÔMICA

Uma ocorrência que incomoda a população, como os maus tratos aos animais, vai ocorrendo seguidamente ao ponto de se transformar num problema social, o que passa a exigir dos poderes públicos um posicionamento, geralmente na forma de uma solução. Cria-se nesta população a justa expectativa de que o Poder Público tomará suas dores e resolverá o problema. Esta expectativa, ou anseio popular, materializa-se numa lei, aumentando ainda mais a esperança de que o problema será resolvido, e que o responsável pelos maus tratos aos animais será imediata e exemplarmente punido, com o que cessarão todos os maus tratos como que num passe de mágica.

O mundo de verdade, no entanto, encarregar-se-á de mostrar que não é bem assim, porque nem todos os maus tratos de animais serão punidos, já que muitos nem mesmo serão descobertos, o que de modo algum pode ser tomado como inefetividade do Direito, já que esta efetividade mede-se pelo seu desempenho em relação àquelas expectativas e anseios, isto é, na medida em que se vão ajustando as condutas aos comandos normativos sem se desconsiderar os efeitos colaterais indesejáveis. Os crimes de maus tratos, em que pese nem todos serem efetivamente punidos, tenderá a diminuir drasticamente a partir do instante da tomada de posição do Poder Público demonstrando a sua contrariedade e disposição em puni-lo. Portanto, a efetividade do Direito mede-se também pelo caráter educativo e preventivo da lei, porque o Direito não tenciona mudar o DNA de ninguém, mas apenas estabelecer um convívio de paz social.

Nesta linha, Calsing (2012, p. 289-290) ao tratar da norma jurídica e da efetividade do Direito aborda o assunto como uma “tensão existente entre o Direito, como sistema unificado de valores ideais, e a aplicação concreta das normas, que nem sempre corresponde ao ideal codificado”. Exatamente este o ponto nevrálgico, que é o extrapolamento dos objetivos iniciais da norma como consequência da aplicação dessa norma em caráter absoluto, do que fatalmente decorrerão aqueles efeitos colaterais indesejáveis.

 A respeito de efetividade do Direito são preciosas as palavras do Ministro Luís Roberto Barroso em obra exemplar, onde ensina que “a efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.” (Barroso, 1993, p. 79), com o que se evidencia o papel relevante da realidade social na interpretação e aplicação das normas.

Duas observações devem ser destacadas na lição do ilustre Ministro. A de que efetividade e realização do Direito significa o desempenho concreto da sua função social, com o que indica que haverá um segundo momento no Direito, que é este momento da concretização da norma, sendo a produção legislativa dessa norma o primeiro momento. E a segunda observação, em relação à parte que ele diz da aproximação entre o dever ser normativo e o ser da realidade social, o que faz com o cuidado de frisar a necessidade de que a aproximação deve ser íntima tanto “quanto possível”, o que significa que se deve envidar todos os esforços na igualação do dever ser normativo e o ser da realidade.

Tanto quanto possível, obviamente, porque tal igualação nunca será plena. Nem nunca poderá ser plena, já que a “norma jurídica enuncia um dever ser porque nenhuma regra descreve algo que é” (REALE, 1983, p. 95), quem descreve algo que é são as leis naturais ou físicas. O efeito da lei jurídica é arbitrado, isto é, construído artificialmente, por isso que se diz que vige o princípio da imputação, ao passo que para as leis naturais vige o princípio da causalidade, onde os efeitos são naturais e sempre os mesmos. Nas leis naturais não há alternativa, pois o efeito surge independentemente de qualquer ato de vontade, mas as leis jurídicas já são elaboradas com a possibilidade de serem violadas, isto é, com a possibilidade de não se concretizar a conduta determinada, numa espécie de alternativa do destinatário da norma, o que não é opção de quem legisla, mas decorrência do livre arbítrio do destinatário, que lhe permite optar por cumprir ou descumprir.

Por isso que a efetividade do Direito não é matemática, não podendo ser medida pela quantidade de casos efetivamente punidos, mas sim de acordo com os efeitos que causa naquela opção dos destinatários das normas de se colocarem ou não de acordo com ela, e sempre levando em conta que muitas vezes o destinatário não se coloca exatamente de acordo com a norma, não deliberadamente, mas porque a tanto foi levado por outras circunstâncias de cujo sopesamento entendeu serem elas mais importantes do que a conduta prescrita pela norma, como são os casos de estado de necessidade ou de legítima defesa, onde o próprio Direito autoriza o comportamento violador do bem jurídico até então tutelado.

A tensão a que se refere Calsing (2012) é, segundo suas palavras, decorrente da falta de unanimidade dos valores representativos daqueles anseios sociais, o que coloca em “ambientes separados os anseios sociais e a normatização jurídica” (CALSING, 2012, p. 290). Analisando o pensamento, isso significa que os maus tratos aos animais não são vistos do mesmo modo por todas as pessoas, o que gera um descompasso tanto na valoração da conduta contrária aos anseios sociais como nas consequências impostas pela sua prática. Dentro desse raciocínio é muito interessante a conclusão oferecida no sentido de que

o primeiro passo para que possa haver a efetividade das normas jurídicas é encontrar um consenso entre os valores que devem ser normatizados e a edição de leis que versem sobre a proteção dos bens considerados de maior importância no espaço/tempo determinados (CALSING, 2012. P. 290).

 Sem querer impor ou defender a interpretação econômica do Direito, principalmente do Direito Tributário, acredita-se que se deve admitir as influências mútuas do jurídico e do econômico, ao ponto de não se poder negar que as normas tributárias decorrem do fato econômico, já que os Estados dependem das receitas por elas geradas a partir de fatos econômicos, mas que o econômico deve também orientar o jurídico na medida do possível, sob pena de ser aniquilado pelo excesso de tributação ou pelo rigorismo da aplicação literal e absoluta de algumas normas. Esta mútua dependência foi bem apanhada por Calsing (2012), cujos esclarecimentos são na linha de que

As normas jurídicas são dependentes dos fatores socioeconômicos, sendo estudados pela interpretação do mundo real e não da simples análise de sistemas cujas premissas levarão invariavelmente a um resultado. Desta forma, o estudo e análise da efetividade do Direito são formas de melhor entender o mundo atual, na sua máxima manifestação jurídica, mas sem querer alcançar como resultado uma sistematização de regras para aferir a efetividade dessas normas (CALSING, 2012, p. 291).

E quem deve remediar tudo isso são os órgãos encarregados da interpretação e da aplicação do Direito. Se é certo que as normas de incidência tributária não comportam este sopesamento em razão do princípio da legalidade e do dever funcional das autoridades lançadoras dos tributos, as normas reguladoras da cobrança o permitem, porque não são dotadas desta dureza na interpretação e aplicação. A prova disso está no artigo 171 do Código Tributário Nacional- CTN, norma permissiva das transações visando terminação de litígios e a extinção dos créditos tributários, e que é a base para muitas iniciativas da espécie já implantadas no âmbito Federal e em alguns estados, como é exemplo a Resolução PGE-27, de 24/11/2020, da Procuradoria Geral do Estado, com previsão no artigo 41 com a seguinte redação:

Artigo 41 – A Procuradoria Geral do Estado poderá celebrar transação resolutiva de litígios nos termos e condições estabelecidos nesta lei.

§ 1º – A transação de débitos de natureza tributária será realizada nos termos do artigo 171 da Lei federal nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional) (ESTADO DE SÃO PAULO, 2020).

Sem dúvida, que a previsão do artigo 171 do CTN está absolutamente de acordo com o papel de agente normativo e regulador da atividade econômica outorgado ao Estado pelo artigo 174 da Constituição.

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado (BRASIL, 1988).

Na interpretação deste artigo 174 o Supremo Tribunal Federal – STF (RE 632.644-Agr. Rel. Ministro Luiz Fux), baseia-se na lição de Diógenes Gasparini, reconhecendo que as deformações da ordem econômica “desafiam o próprio Estado, que se vê obrigado a intervir para proteger aqueles valores, consubstanciados nos regimes da livre empresa, da livre concorrência e do livre embate dos mercados” (STF; RE 632.644).

Da interpretação conjunta destas normas é que sobressai o papel de mediador e de remediador a ser desempenhado pelo Estado, de modo que ao cuidar apenas da sua arrecadação sem ter os olhos voltados para o futuro e para a defesa da atividade econômica, o Estado abandona este papel e age apenas como parte ocupante do polo ativo das relações tributárias.

2 A PANDEMIA E OS CONTRATOS PÚBLICOS E PRIVADOS: DO PACTA SUNT SERVANDA À TEORIA DA RELATIVIZAÇÃO

O sistema econômico liberal tem seu esteio na expectativa de que todos os contratos, pactos e avenças, serão rigorosamente cumpridos nos exatos termos em que prometido. O Direito, reconhecendo a necessidade de segurança e previsibilidade econômica, encampou a ideia e passou a garantir a tutela jurídica dos contratos, o que ficou materializado com a elevação do brocardo jurídico do pact sunt servanda à condição de princípio básico e geral do direito contratual.

Na noção jurídica do pact sunt servanda, com a significação de que os pactos devem ser sempre cumpridos, subjaz a ideia do princípio da seriedade das promessas, que de algum modo já criava a noção de que a estabilidade das relações sociais e, por consequência, da própria sociedade, dependia de um mínimo de seriedade na elaboração das promessas e na efetivação dos seus objetos. O contrato tem força de lei entre as partes, praticamente inadmitindo influências externas que se lhes altere o que foi inicialmente pactuado.

No Direito brasileiro, a liberdade contratual está no artigo 421 do Código Civil, em redação que foi alterada em 2019, na qual se preserva tal liberdade, mas sempre nos limites da função social do contrato.

Estes limites nasceram para fazer frente aos riscos a que as partes contratantes ficavam expostas como decorrência da aplicação absoluta da cláusula do pacta sunt servanda, de modo que se tencionou evitar os excessos próprios da obrigatoriedade do cumprimento absoluto doque antes fora pactuado.

O Código Civil Brasileiro já contemplava a função social do contrato reconhecendo a influência inevitável que os contratos e os seus cumprimentos ou não causam na sociedade, assim como também a função social da propriedade, conforme se lê no parágrafo único do artigo 2035: “Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.

Vê-se aí uma certa relativização do princípio do pacta sunt servanda, que praticamente abrandou os rigores eventualmente nascidos do contrato celebrado. Se é certo que o cumprimento dos contratos sempre representou a segurança jurídica nas negociações, não é menos certo que os excessos neste cumprimento podem enviesar a ideia de justiça subjacente àquela noção de segurança jurídica, como pode também alterar o significado de justiça sempre buscado pelo Direito.

Isso significa que o cumprimento dos contratos, apesar de toda a sua procedência e da tutela jurídica que sem dúvida deve ter, nunca pode ser analisado como uma regra sem exceção, pois haverá casos e situações determinantes de que se analise de acordo com as particularidades apresentadas. Esta relativização não é contrária àquela regra de cumprimento obrigatório dos contratos, devendo ser entendida como um parâmetro para a interpretação, já que um suposto excesso de justiça leva inevitavelmente a um resultado contrário, conforme ensina o brocardo jurídico summum ius, summa iniuria, sempre traduzido como “suma justiça, suma injustiça”, a dizer que o rigorismo, ou o máximo do direito, está longe de ser o caminho para se atingir o máximo de justiça.

Por isso que, paralelo ao princípio do pacta sunt servanda os ordenamentos jurídicos sempre trazem também o princípio contratual do Rebus Sic Standibus, que, de um modo bem geral, significa “estando assim as coisas”, e mais especificamente, que um contrato é sempre pactuado de acordo com as situações que se apresentam no momento em que se pactua, e que tais situações são as balizas determinantes da validade do que fora pactuado, de modo a justificar eventual descumprimento se e quando tais situações já não forem as mesmas.

Em vez de se interpretar a cláusula ou princípio do Rebus Sic Standibus como uma contrariedade à cláusula ou princípio do pact sunt Servanda, o correto é interpretá-los num mesmo contexto e de forma complementar, pois as mudanças de condições e da situação posta pode desequilibrar o que se achava antes dentro de um pleno equilíbrio, passando a onerar excessivamente somente uma das partes e exigindo que se adote mecanismos que levem ao restabelecimento do equilíbrio perdido.

O desequilíbrio contratual é sempre possível, embora não seja a regra nem se trate de hipótese querida por qualquer dos contratantes. Esta possibilidade não escapou da acuidade do legislador do Código Civil Brasileiro, que tratou de encampar no texto o remédio contra a onerosidade excessiva do contrato causada por fatos imprevisíveis supervenientes que, alheios à vontade e não causados por qualquer das partes, desequilibre a base econômica contratual e onere excessivamente as obrigações de uma das partes. As previsões estão nos artigos 317 e 478, com as seguintes redações:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Situações há nas quais a resolução já não seja possível ou não seja do interesse das partes, casos em que poderá ser evitada mediante a modificação nas condições contratuais. É assim que estabelece o artigo 479: “Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato”.

Tem-se aí o que a doutrina denomina de “Teoria da Imprevisão”, que tem como causa a ocorrência de um evento extraordinário e imprevisível, capaz de tornar insuportável a situação de um dos contratantes.

A efetivação desta teoria dar-se-á com o abrandamento dos rigores das cláusulas contratuais e com a flexibilização no cumprimento das obrigações de modo a não prejudicar a vida financeira de qualquer das partes e até a própria sobrevivência.

A pandemia da Covid-19 é fenômeno mundial que assola todos os continentes e que se enquadra nas definições utilizadas pelo Código Civil como evento extraordinário e imprevisível ensejador de revisões contratuais. É certo que, como fenômeno mundial que não escolheu clima, raça, continente, língua ou qualquer outro elemento próprio e específico para identificar uma parcela da população, fica difícil estabelecer uma ordem para se definir os maiores prejudicados. Mas, há uma certa unanimidade de que o setor econômico é e será um dos mais prejudicados, e que o prejuízo não será somente contemporâneo da pandemia, pois os seus reflexos serão sentidos mesmo depois de eventual erradicação.

Neste cenário, tem-se as condições definidas pelo Ordenamento Jurídico para que se pleiteie a aplicação da Teoria da Imprevisibilidade, que, sem dúvida, dada a magnitude do evento e  das profundas alterações por ele introduzidas na vida de cada pessoa do mundo e também na vidas das empresas, deve ser aplicada também de maneira bastante ampla em vez de resumida somente às revisões contratuais, porque se há de considerar que, se os contratos privados podem ter as suas condições mitigadas em razão da imprevisibilidade trazida pela pandemia, evidentemente que esta mitigação deve atingir todo tipo de obrigação, inclusive as devidas ao setor público, sob pena de o desequilíbrio sair dos contratos e se tornar regra nos relacionamentos entre o estado e os particulares.

3 DÍVIDA TRIBUTÁRIA, INICIATIVA PRIVADA E LIVRE CONCORRÊNCIA – POSSIBILIDADE DE CONVIVÊNCIA

O resultado das observações anteriores é que se deve analisar a dívida tributária conferindo-lhe um caráter relativo e não mais absoluto, desde que, evidentemente, dentro de um contexto que assim o permita. Sob certo aspecto, a dívida tributária assemelha-se à dívida privada, pois em ambas se tem um sujeito ativo, um sujeito passivo, um objeto e um vínculo ou liame permissivo de que se ligue um ao outro, e ambas as dívidas são decorrentes da prática de um ato anterior que lhes deram origem.

Enquanto que na dívida tributária tem-se restrição quanto à ocupação do polo ativo, que só pode ser ocupado por uma entidade tributante, ou no máximo por uma entidade parafiscal, o polo ativo da dívida privada pode ser ocupado por qualquer pessoa que, a justo título, a titularize.

Esta diferenciação, aparentemente singela, já é suficiente para estabelecer distintas naturezas para uma e outra, e também para que se atribua efeitos também diversos para cada uma delas. Do fato de a dívida tributária apresentar no polo ativo o Estado resulta para ela alguns privilégios, como por exemplo a preferência estipulada pelo artigo 186 do Código Tributário Nacional. Mas, traz também algumas restrições, que são as vedações à utilização de meios coercitivos indiretos como forma de se conseguir o pagamento (BRASIL, CTN, 1966).

Estes meios coercitivos indiretos são as chamadas sanções políticas, e são vedadas exatamente em razão daquele papel de agente regulador da atividade econômica outorgado constitucionalmente ao Estado.

O Estado, assim, ao mesmo tempo em que é sujeito ativo da dívida tributária, com plenos direitos ao seu recebimento, ele é também o encarregado de velar pela saúde do sistema econômico, de modo a garantir que os devedores sempre tenham condições de honrar as suas dívidas sem que para tanto comprometam a continuidade do seu empreendimento. Pode-se dizer que as medidas que Estado deve adotar para tanto podem ser classificadas como positivas, que são as políticas públicas implementadas para garantir eficácia aos princípios da livre concorrência e da livre inciativa; e podem ser negativas, representadas pela exigência de que o Estado abstenha-se de inviabilizar a continuidade do negócio, mesmo que isso redunde em aparente prejuízo em relação ao recebimento imediato da dívida tributária.

No âmbito tributário, os meios de que o Estado dispõe para impor o cumprimento das obrigações tributárias são coercitivos porque o Direito tributário é coerção, já que o pagamento do tributo, ainda que voluntário, nunca é espontâneo. Só que alguns destes meios ultrapassam a linha da coercitividade legal para adentrarem o campo da coercitividade arbitrária.

Estes meios são considerados arbitrariamente coercitivos porque, apesar de alguns deles estarem previstos em lei específica de cada entidade tributante, estas leis contrariam entendimento já manifestado pelo Supremo Tribunal Federal-STF e também os entendimentos de toda a doutrina especializada. Na práxis jurídico-tributária são estes meios conhecidos como sanções políticas.

Padilha (2015, p. 171), em obra específica a respeito das sanções no Direito Tributário, entende que “As medidas político-sancionatórias assim qualificam-se, quando instituídas não em prol da fiscalização tributária, para controle de fatos tributáveis, mas com a finalidade de constranger o contribuinte, por via indireta, ao recolhimento do tributo”. Machado, em lição um pouco mais específica e incisiva, afirma a inconstitucionalidade de medidas da espécie nos seguintes termos:

Em Direito Tributário a expressão sanções políticas corresponde a restrições ou proibições impostas ao contribuinte, como forma indireta de obrigá-lo ao pagamento do tributo, tais como a interdição do estabelecimento, a apreensão de mercadorias, o regime especial de fiscalização, entre outras. Qualquer que seja a restrição que implique cerceamento da liberdade de exercer atividade lícita é inconstitucional, porque contraria o disposto nos artigos 5º, inciso XIII, e 170, parágrafo único, do Estatuto Maior do País (MACHADO, 2012, p. 46-47).

A convicta afirmação de inconstitucionalidade decorre de entendimentos já sumulados pelo Supremo Tribunal Federal à vista de algumas das medidas consideradas como sanções políticas. A Súmula 547, por exemplo, veda que se impeça o contribuinte devedor de adquirir estampilhas, despache mercadorias ou exerça suas atividades profissionais, o que está de acordo com o tema 856 da repercussão geral: “Súmula 547 – Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”.

Já a Súmula 323 é manifesta quanto à proibição de apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos: “Súmula 323 – É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”, e a Súmula 70, que impede a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo: “Súmula 70 – É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo pra cobrança de tributo”.

Estas súmulas estão de acordo com alguns temas de repercussão geral, por exemplo o Tema-865 e o Tema-31, ambos relacionadas à supremacia do livre exercício da atividade econômica ou profissional, que não podem ser obstados mediante o uso de sanções políticas. Nestes temas verifica-se que

Tema 856 – É inconstitucional a restrição ilegítima ao livre exercício de atividade econômica ou profissional, quando imposta como meio de cobrança indireta de tributos (STF, Tema 856, 2021)

(…)

Tema 31 – É inconstitucional o uso de meio indireto coercitivo para pagamento de tributo – “sanção política” –, tal qual ocorre com a exigência, pela Administração Tributária, de fiança, garantia real ou fidejussória como condição para impressão de notas fiscais de contribuintes com débitos tributários (STF, Tema 31, 2021)

A violação da supremacia do livre exercício da atividade profissional ou econômica por meio de medidas tendentes ao recebimento de dívidas tributárias evidencia uma desproporcionalidade entre o meio e o fim, o que foi apontado pelo Ministro Gilmar Mendes nos debates travados durante a apreciação do RE-413.782-SC, relatado pelo Ministro Marco Aurélio. O Ministro Gilmar Mendes apresenta o que se segue: “Penso ser uma questão de proporcionalidade mais do que uma questão tributária”. (BRASIL, 2005). No voto, o Ministro esclareceu a desproporcionalidade ao afirmar que o Estado disporia de meios menos invasivos para a mesma finalidade.

Já no sentido da adequação, até poderia haver uma adequação entre meios e fins, mas certamente não passaria no teste da necessidade, porque há outros meios menos invasivos, menos drásticos e adequados para solver a questão. Por outro lado, é claro que a mantença deste modelo pode inviabilizar, conforme Vossa Excelência também destacou, o próprio exercício de uma lícita atividade profissional do recorrente (BRASIL, 2005).

Na verdade, mais importante do que se aplicar as súmulas é realmente aplicar os princípios, notadamente aqueles que informaram as edições das súmulas. Foi assim que se manifestou o Ministro Cezar Peluso, depois de apontar os fundamentos constitucionais determinantes das súmulas 70, 323 e 547, presentes nas Constituições de 1946 e 1967 que, segundo o Ministro, enunciam exatamente o que consta no inciso XIII do artigo 5º e parágrafo único do artigo 170 da Constituição atual.

Não se trata aqui de aplicar súmulas, mas aplicar o princípio constitucional que subjaz à motivação das súmulas. Noutras palavras, como bem antecipou o Ministro Gilmar Mendes, a ofensa é ao princípio da proporcionalidade, porque o Estado se está valendo de um meio desproporcional, com força coercitiva, para obter o adimplemento do tributo (BRASIL, 2005).

É certo, assim, que a dívida tributária tem caráter relativo ante a maior importância da livre iniciativa e do livre exercício de atividades econômicas ou profissionais, o que é determinante de uma convivência.

Sendo assim, o presente estudo procura discutir o caráter absoluto do sistema Bacen-Jud, e a possibilidade de que possa ele levar a economia para um ciclo de estagnação ou de retração, em franco prejuízo do crescimento e desenvolvimento econômicos.

3 O CARÁTER ABSOLUTO DO SISTEMA BACEN-JUD/ Sisba-jud EM TEMPOS DE PANDEMIA – mantendo a crise econômica?

Inicialmente faz-se de fundamental importância a explicação do sistema Bacen-Jud/ Sisba-Jud e de seu objetivo para, depois, discutir-se a sua efetividade para fomentar desenvolvimento econômico em contraponto com a inviabilidade de se mantê-lo como forma absoluta de garantia de recebimento da dívida tributária mediante a penhora de valores de propriedade das empresas, o que pode gerar situação inviabilizadora da continuidade do empreendimento e a impossibilidade de sua recuperação em período de crise econômica.

O Sistema Bacen-jud, agora Sisba-jud, de penhora on line de ativos financeiros pessoais e empresarias, foi criado pela Lei 11.382, de 06/12/2006 e incorporado ao Código de Processo Civil, onde figura no artigo 655-A. Trata-se de um sistema informatizado à disposição do Poder Judiciário para a comunicação virtual e instantânea com o sistema financeiro, mediante o qual os juízes expedem eletronicamente pedidos de bloqueios de valores, que são feitos imediatamente e já transferidos para uma conta judicial que fica à disposição do juízo.

Como se vê, trata-se de um mecanismo de penhoras implacável, cuja efetividade somente é obstada pela falta dos recursos a serem penhorados, situação cada vez mais presente em razão da falta de dinheiro que assola as empresas.

O Sistema Bacen-jud já foi uma evolução, pois representou a desnecessidade de tramitação de pedidos e de oferecimento de informações físicas, o que era sempre demorado e sujeito às limitações físicas e legais, dentre elas o sigilo bancário das pessoas e empresas. Mas, mesmo assim o Sistema ainda estava aquém da efetividade desejada, pois era necessário que o advogado, privado ou público, peticionasse ao juiz solicitando a busca de dinheiro nas constas bancárias dos devedores. Atendida a solicitação, era enviada uma ordem judicial para os bancos e instituições financeiras, durante as vinte e quatro horas seguintes, mantivesse rastreio nas contas e que bloqueasse valores eventualmente nela encontrados. Cessadas as vinte e quatro horas cessava-se a ordem.

A atualização da plataforma entrou em funcionamento de 08 de setembro de 2020 dando maior celeridade aos procedimentos para cumprimento dos pedidos de informações bancárias dos devedores com dívidas já reconhecidas pela Justiça. Dentre estas inovações está a maior validade para ordem judicial, que agora é de 30 (trinta) dias. Isto significa que, expedida a ordem judicial, os bancos e as instituições financeiras implementam o rastreio de valores nas constas dos devedores pelo prazo de 30 dias, e não mais 24 horas. É a chamada “teimosinha”, apelido dado agora à ordem judicial, que temia em permanecer no rastreio. Apesar de haver ainda vozes que se levantam no sentido de se exigir a perenidade da ordem judicial, o avanço não deixa de ser louvável.

A contrapartida da busca pela evolução e maior efetividade no Sistema é o maior cerco aos devedores, sem dúvida lídima medida para se fazer a justiça necessária, já que o caráter absoluto confere implacabilidade inigualável.

Não se tem dúvida quanto à importância, para o governo, de um sistema que assegure de forma eficiente os recebimentos das dívidas tributárias. Mas, o que se discute aqui é se esta importância é extensiva para o sistema econômico, e em que nível é esta extensão, isto é, procura-se saber se a satisfação sentida pelos governos ecoam também para as empresas, pois em tempos de crise, principalmente uma pandemia como a que se vive, sem precedentes na economia brasileira e mundial, é questionável se se deve dar a tal sistema um caráter absoluto, mantendo aquela prevalência do governo quanto ao recebimento dos créditos tributários sem se considerar o agravamento da situação financeira das empresas e a possibilidade de que muitas delas sucumbam.

A importância e os benefícios do sistema Bacenjud/Sisbajud não se restringem aos governos uma vez que as cobranças e os recebimentos efetivos das dívidas tributárias desempenham, em paralelo, forte papel de controle da livre concorrência e da livre iniciativa, porque as dívidas tributárias quando não solvidas pontualmente revertem-se, quase sempre, em favor da própria empresa inadimplente e em prejuízo dos seus concorrentes, pois acabam gerando para elas melhores condições de competitividade.

Sob este aspecto a procedência da criação e operacionalização do sistema Bacejud/Sisbajud são incontestáveis, pois conforme informa o Banco Central do Brasil, 

O sistema Bacen Jud 2.0 é um instrumento de comunicação eletrônica entre o Poder Judiciário e instituições participantes, com intermediação, gestão técnica e serviço de suporte a cargo do Banco Central. Por meio dele, os magistrados protocolizam ordens judiciais de requisição de informações, bloqueio, desbloqueio e transferência de valores bloqueados, que serão transmitidas às instituições participantes para cumprimento e resposta.(…) A padronização e a automação dos procedimentos envolvidos, no âmbito das varas ou juízos e das instituições participantes, reduz significativamente o intervalo entre a emissão das ordens e o seu cumprimento, incluindo-se eventuais ações subsequentes, comparativamente à prática de ofícios em papel (BACEN, 2015, p. 3).

Até 4 de setembro de 2020 funcionou o Bacen Jud, que foi substituído, a partir do dia 8 de setembro do mesmo pelo sistema SISBAJUD – Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário, operado pelo CNJ – Conselho Nacional de Justiça. (BACEN, 2021).

A nova plataforma foi lançada com a promessa de se conseguir maior eficiência e eficácia no bloqueio e transferência de valores. Em 2019, foram bloqueados quase R$ 56 bilhões, sendo aproximadamente R$ 30 bilhões convertidos em depósitos judiciais. No ano de 2020, até julho, os bloqueios foram de R$ 21,8 bilhões, sendo R$ 9,2 bilhões transformados em depósitos judiciais para o pagamento de dívidas reconhecidas pela justiça (MIGALHAS, 2021).

Conforme observa o Conselho Nacional de Justiça – CNJ o sistema permite:

a reiteração automática de ordens de bloqueio (conhecida como “teimosinha”), e a partir da emissão da ordem de penhora on-line de valores, o magistrado poderá registrar a quantidade de vezes que a mesma ordem terá que ser reiterada no SISBAJUD até o bloqueio do valor necessário para o seu total cumprimento. Esse novo procedimento eliminará a emissão sucessiva de novas ordens da penhora eletrônica relativa a uma mesma decisão, como é feito atualmente no Bacenjud (CNJ, 2021).

Este sistema de rastreio acaba que por confiscar valores que se encontrem em contas mantidas pelo CNPJ devedor, o que obriga a criação, pelas empresas, de um sistema paralelo de recebimentos e de pagamentos, apto, portanto, a um retrocesso institucional e a colocar em risco o próprio sistema bancário.

A maior eficiência do sistema deve-se exatamente a este mecanismo de operacionalização, que o torna implacável. Porém, se isso é válido e procedente em tempos de normalidade econômica, quando o equilíbrio orçamentário é a meta e o caminho a ser mantido, o mesmo não se pode dizer quando os tempos são outros, porque esta implacabilidade em favor do estado torna-se aparente e camufla um problema maior, já em gestação, que é o comprometimento do sistema econômico mediante o desaparecimento de grande parte dos seus agentes, o que, decididamente, não é papel do estado, nem gera motivos de comemoração.

Nestes tempos, deve o estado abandonar a meta do equilíbrio e voltar as atenções para as sobrevivências dele próprio e do sistema produtivo, garantindo a continuidade de ambos, Deodato (1976) apresenta

No orçamento de um país em depressão, o equilíbrio é questão secundária. Feito para o ano em vigor, a sua execução abrange, entretanto, um clico econômico. O déficit de um ano será compensado pelos excedentes dos anos posteriores (DEODATO, 1976, p. 2).

O governo, como integrante do sistema econômico, sofre também, é certo, os efeitos da crise econômica. Mas se deve atentar para o papel de agente normativo e de órgão regulador outorgado ao estado, cujo desempenho envolve o dever de incentivo de planejamento desse sistema, não sendo demais, por isso, afirmação de que se espera do estado muito mais do que uma simples participação paritária com os demais agentes econômicos.

Além disso, não se deve desconsiderar que a fonte dos recursos públicos está exatamente no setor privado, de modo que se euforizando a economia se tem, como consequência direta, um aumento desses recursos pela via da tributação, e, pelo contrário, reduzindo-se esta atividade econômica reduz-se, inevitavelmente, a tributação e a fonte de recursos públicos.

Evidentemente que haverá uma opção por parte da empresa em dar continuidade às suas atividades, que deve ser respeitada, porque se tratará da sua sobrevivência num estado de calamidade que afeta a todos. Ponto que não se deve desconsiderar é que sucumbindo as empresas, sucumbem todos os demais entes econômicos, inclusive o estado, porque se tem uma reação em cadeia.

Cabe ressaltar, no entanto, que o Brasil não vive exatamente um período de depressão nem de recessão econômica, apesar dos efeitos nocivos da calamidade criada pela pandemia. União, estados e municípios sentem os efeitos do momento econômico favorável através de repetidos aumentos de arrecadação, o que reforça que há condições para uma relativização na operacionalização do sistema de penhoras on line.

Recentemente alguns veículos da imprensa e o próprio governo comemoraram o aumento do número de empregos registrados pelo CAGED, 400 mil novos postos gerados em fevereiro de 2021, para alguns, como o Ministro da Economia, sinônimo de retomada do crescimento (AGÊNCIA BRASIL, 2021).

        Entretanto, importante se faz observar que o CAGED mede a criação de empregos com carteira o que representa apenas algo próximo a 40% do mercado de trabalho, parcela esta mais qualificada e protegida por contratos formais, A PNAD contínua que mede o desemprego de forma mais ampla apontou para um indicador de 14,2% para o mês de janeiro de 2021, representando uma alta em relação ao mês anterior (IBGE, 2021a).

        Outro dado significativo é a previsão de crescimento do PIB pelo Boletim Focus divulgado pelo próprio BACEN com as expectativas do mercado acerca da economia. A expectativa inicial, que era de um crescimento de 3,52% para o ano de 2021 subiu para 3,96%. Apesar de não ser ainda suficiente para cobrir a queda de 4,1% registrada em 2020 e de todos os anos anteriores desde 2014, não deixa de ser uma notícia importante exatamente porque dada em pleno vigor da pandemia, comprovando que o estado tem sim condições de relativizar o sistema de penhoras on line.

4 OS INTERESSES SOCIAIS PRÓPRIOS DA CONTINUIDADE DA ATIVIDADE EMPRESARIAL

A função social da empresa apresenta-se com relevância no texto constitucional brasileiro, destacando-se o artigo 5º, XXIII , e no artigo 170. Sendo assim, se a empresa tem esta função social, faz-se necessário discutir a importância da continuidade da sua atividade em momentos de crise, uma vez que ela é parte do sistema econômico, geradora de emprego e produtos.

Como foi visto no tópico anterior, apesar do momento vivido com a pandemia, os entes federados tem apresentado aumento da arrecadação, o que torna mais forte da perspectiva econômica e social a importância de avaliar a manutenção em caráter absoluto de cobranças que possam, no momento, levar uma empresa ao seu fim.

Empresas que antes se apresentavam de forma lucrativa e em dia com suas mais diversas obrigações podem passar por momentos que não consigam arcar com as mesmas.

Na discussão interdisciplinar com a ciência econômica, optou-se neste artigo pela utilização da teoria Keynesiana. Keynes entendia que na ausência de consumo e investimentos privados o setor público deveria o fazer justamente para manter a atividade econômica, utilizando-se de política monetária e fiscal expansivas[3] até que a economia retomasse o crescimento e fosse possível uma nova redução da participação do Estado (KEYNES, 2012), verifica-se que é o pensamento oposto a manter uma tributação que possa levar ao final da atividade da empresa.

Consumo e Investimento são os elementos que compõem a renda de um país. Estímulo à demanda resultarão em um PIB maior quando a economia for recessiva, assim como, se não houver demanda agregada haverá recessão (KRUGMAN, 2011).

Keynes (2012) discutiu ainda a necessidade de política monetária que estimulasse o investimento na atividade produtiva, uma vez que o empresário compara a eficiência marginal do capital (taxa de retorno esperada) aos juros encontrados na economia (retorno no mercado financeiro), sendo assim, se a tributação excessiva e em quaisquer condições pode representar um elemento decisivo para o não investimento produtivo. O Investimento produtivo apresenta um efeito multiplicador, mas o desincentivo à produção que uma carga tributária exacerbada pode representar um efeito negativo maior ainda.

Verifica-se assim que não somente na discussão jurídica mas também na econômica a manutenção da atividade produtiva se faz com grande importância. Também para Keynes a manutenção dos níveis de demanda levaria a manutenção do emprego.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A principal conclusão e de que o sistema Bacen-jud/Sisba jud deve ser relativizado e não interpretado em caráter absoluto.

Como se percebe, o precedente firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso da indústria de cigarros American Virginia), além de ser em si mesmo criticável, não implicou, de uma forma ou de outra, alteração da jurisprudência daquele tribunal a respeito das sanções políticas como um todo.

Tanto que inúmeros outros julgados, nos quais se reitera o teor das Súmulas 70, 323 e 547 da Corte, foram proferidos posteriormente. As premissas das quais se partiu, para admitir o fechamento da citada indústria tabageira, são de verificação excepcionalíssima, relacionadas à extrafiscalidade do IPI incidente sobre o tabaco e à nocividade desse produto, não se prestando a justificar a complacência com a generalização do uso das sanções políticas, tudo em nome de uma suposta defesa da concorrência.

Por isso mesmo, são inconstitucionais os regimes especiais de fiscalização, tanto o previsto na Lei 9.430/96, como os previstos em leis e decretos estaduais, os quais se mostram como restrições desproporcionais e injustificáveis ao direito à livre iniciativa e ao princípio do devido processo legal. Por mais reprovável que seja a inadimplência tributária, ela não justifica a adoção, pela Fazenda, de meios que configuram a realização de justiça de mão própria, margeando o controle de legalidade. que deve ser provocável diante de toda cobrança do crédito tributário.

São inconstitucionais, também, por ofensa à legalidade, visto que as sanções aplicáveis aos “devedores contumazes” encontram-se previstas em atos infralegais, constando de lei em sentido estrito, quando muito, apenas a definição daqueles sujeitos às sanções que o Executivo poderá estabelecer posteriormente. Desse modo, além de substancialmente incompatível com a Constituição, as normas que veiculam sanções políticas, no caso dos devedores contumazes, são inválidas também do ponto de vista formal.

Verificou-se também que usando uma análise conjunta e interdisciplinar com a ciência econômica, por meio da visão macroeconômica de Keynes, tal sistema fode levar além de um efeito multiplicador negativo a que as empresas não realizem novos investimentos, em muitos casos podendo até não sobreviverem, o que se apresenta de forma extremamente negativa para a sociedade como um todo.

Assim, confirma-se a hipótese inicial que tal cobrança em situações como a vivida atualmente deve ser relativizada.

REFERÊNCIAS

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[1] Advogado, mestre em Direito Tributário pela UNIMAR- SP e em Educação pela UNESP- Marília e doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP.

[2] Formada em Economia pela UNESP-Araraquara, Mestre em Economia pela PUC-SP e Doutora em Educação (política e gestão) pela UNIMEP; docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da UNIMAR. Delegada Municipal do Conselho Regional de Economia CORECON SP para o Município de Marília – SP

[3] Em linhas gerais a política monetária expansiva consiste na redução dos juros básicos da economia e no aumento da oferta monetária com maior disponibilidade de crédito, enquanto a política fiscal expansiva pode reduzir a carga tributária e aumentar gastos para estimular a economia. Importante observar que Keynes defendeu o uso de tais políticas de forma cíclica como elemento a estimular a recuperação da economia.