DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E VALOR SOCIAL DO TRABALHO: A CRISE DA PROTEÇÃO AOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E VALOR SOCIAL DO TRABALHO: A CRISE DA PROTEÇÃO AOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

1 de dezembro de 2021 Off Por Cognitio Juris

TECHNOLOGICAL DEVELOPMENT AND THE SOCIAL VALUE OF WORK: THE CRISIS OF SOCIAL RIGHTS PROTECTION IN CONTEMPORARY BRAZIL

Cognitio Juris
Ano XI – Número 37 – Dezembro de 2021
ISSN 2236-3009
Autores:
Juliana Coelho Tavares Marques[1]
Paulo Henrique Tavares da Silva[2]

RESUMO: O trabalho se volta ao exame dos efeitos do desenvolvimento tecnológico na aplicação dos direitos sociais fundamentais, ressaltando o caráter histórico desses direitos. Busca-se responder a seguinte questão: os direitos sociais, particularmente aqueles que se dedicam ao uso do trabalho humano, que vieram ao mundo para regular relações de produção industriais, têm a capacidade para adaptar-se ao desenvolvimento tecnológico? A pesquisa se utiliza das noções do materialismo histórico-dialético conjugado com o método hermenêutico, e como técnicas de pesquisa a bibliográfica e a documental. A hipótese fundamental discutida é a de que os direitos sociais possuem um núcleo essencial que precisa estar ajustado ao mundo contemporâneo a partir da conjugação de esforços entre categorias interessadas e Estado para proteção dos indivíduos.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Sociais. Desenvolvimento Tecnológico. Valor Social do Trabalho. 

ABSTRACT: The work focuses on examining the effects of technological development on the application of fundamental social rights, emphasizing the historical character of these rights. It seeks to answer the following question: do social rights, particularly those dedicated to the human labor, who raised to regulate industrial production relations, have the capacity to adapt to technological development? The research uses the notions of historical-dialectical materialism along with the hermeneutic method, and bibliographic and documentary research techniques are also used. The fundamental hypothesis discussed is that social rights have an essential core that needs to be adjusted to the contemporary world from the joint efforts between interested categories and the State to protect individuals.

KEYWORDS: Social Rights. Technological Development. Social Value of Work.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende abordar os efeitos do desenvolvimento tecnológico na aplicação dos direitos sociais fundamentais. Aparentemente, muito já escreveu sobre o tema, no entanto, o terreno que iremos palmilhar é diverso. Não se irá apontar a gênese dos direitos sociais como fruto do desenvolvimento tecnológico. Ao revés, é apontar o caráter histórico desses direitos a partir do desenvolvimento tecnológico.

O incremento nas técnicas da produção levou ao crescimento econômico exponencial vivenciado desde os primeiros momentos da revolução industrial, técnica e seu aparato teórico, a tecnologia, de mãos dadas, levou a humanidade a patamares  produtivos inimagináveis, ao longo de pouco mais de dois séculos de história. E nessa mesma toada, quanto mais o homem se apropriava de novos recursos tecnológicos para retirar da natureza cotas de excedentes produtivos vertiginosas, o trabalhador, peça-chave até então, estranhava-se cada vez mais. E coube Marx, de forma inédita para seu tempo, apontar os efeitos desse processo:  

Na determinação de que o trabalhador se relaciona com o produto de seu trabalho como [com] um objeto estranho estão todas estas consequências. Com efeito, segundo este pressuposto está claro: quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando (ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd) que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si próprio. (MARX, 2010, p. 81)  

O arcabouço jurídico que articula as forças produtivas deve compreender, naturalmente, esse movimento de transformação e gradual separação entre o homem e seu produto, regulando-o com fins de manter a integridade das relações de produção. Assim o foi quando permitiu a exploração desmesurada da força de trabalho, a partir de uma concepção de Estado Gendarme, quanto, mais adiante, diante das flagrantes contradições que essa mesma exploração produzia, construiu os alicerces dos direitos sociais, a partir a ideação da classe operária como sujeito de direitos e obrigações, moldando aquilo que futuramente seria o direito do trabalho em sua clássica versão, filho legítimo do Welfare State.  

Os direitos humanos, na versão urdida a partir da segunda metade do século XX, representam a proclamação de um conjunto de garantias mínimas civilizatórias, a partir das pautas apresentadas pelas nações vitoriosas nas duas grandes guerras anteriores e lançaram as bases do novo capitalismo que se instala de modo global a partir dali. Uma linguagem jurídica única, garantista, mesmo que de ponto de vista da efetividade, não pudesse reunir elementos de concretude. Almejava-se emprestar humanidade ao processo de acumulação voraz do capital.  

Ocorre que o desenvolvimento tecnológico é imune a tais sentimentos, por natureza. Através da introdução de novas tecnologias, pautas jurídicas inteiras são postas à prova. Tome-se como exemplo os direitos decorrentes da intimidade e da privacidade, alicerces do direito civil e derivados do núcleo da propriedade privada, questionados diuturnamente por sua transformação em mercadoria, dados que têm valor econômico na sociedade contemporânea, transacionados no mundo e submundo tecnológico.   

Mas aqui, conforme dito acima, iremos nos dedicar aos direitos sociais. Seguindo-se o mesmo raciocínio ora desenvolvido, emerge a seguinte questão de pesquisa: esses direitos, particularmente aqueles que se dedicam ao uso do trabalho humano, que vieram ao mundo para regular relações de produção industriais, têm a capacidade para adaptar-se ao desenvolvimento tecnológico?   

O século XXI minou os fundamentos do direito do trabalho clássico, a partir da deslocalização. A empresa deixou de ser um ente físico, visível, palpável, para se constituir, a exemplo do trabalho em plataforma, num ente despersonalizado, que tudo sabe e tudo vê.  

A própria prestação do trabalho, antes igualmente situada no tempo, partir da fixação de uma jornada, passa ocupar espaços inéditos, invadindo as casas dos trabalhadores, a partir do teletrabalho (e sua mais séria perversão: o home office). Por fim, o sentimento de pertença a uma classe trabalhadora, que animou historicamente os grandes movimentos grevistas do final do século XIX, liquidifica-se num sentimento egoísta, à luz da ideia de empreendedorismo e liberdade.  

Mesmo assim, remanesce, a olhos vistos, a precarização do trabalho humano. E nem se diga que este componente, o trabalho humano, perdeu a importância na contemporaneidade. Pelo contrário. A crise humanitária global que se abateu com a pandemia do SARS COV-2 deu-nos mostra de como a mão de obra se revela importante, suplantando as deficiências das máquinas, a partir dos entregadores motociclistas, ao extremo explorados pelas plataformas de teleatendimento.  

O modelo tradicional do contrato de emprego é igualmente questionado. E aqui reside outra questão assaz interessante. Em verdade, não se trata mais aqui de debater temas alusivos aos custos advindos desse modelo, discurso que e torna despiciendo, quando se observa que aqui a questão radica mesmo na adequação desse modelo de cooptação da força de trabalho aos novos figurinos produtivos.  

Não queremos nesse trabalho desqualificar o papel dos direitos humanos. Contudo, é preciso desmistificá-los, considerando a verdadeira extensão de sua historicidade, o que é diferente de sua relativização. Em verdade, o presente ensaio parte da hipótese de que tais direitos detêm um núcleo essencial (valores universalmente pactuados), que devem ser ajustados aos desafios contemporâneos, a depender da conjugação de esforços entre as categorias interessadas e o Estado, visando criar alternativas legais e jurisdicionais que levem à proteção dos indivíduos.  

Ressalta-se que a pesquisa se utilizará das noções do materialismo históricodialético, posto consideramos que estamos localizados naquele ponto de inflexão de Marx expõe na sua introdução à Crítica da Economia Política, ao propor que é por isso que a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegará à conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua condição já existem, ou, pelo menos, são captadas no processo do seu devir. (MARX, 2000, p. 52).  

Conjuga-se ao manejo das categorias materialistas, destinados à interpretação dos textos normativos, o método hermenêutico, com a utilização das técnicas de pesquisa bibliográfica e documental.  

Na busca pela consecução dos objetivos aqui propostos, relacionados à adequação ou não direitos fundamentais sociais atrelados à proteção do trabalho humano às novas realidades tecnológicas, divide-se a pesquisa nas seguintes partes: a reconstrução do modelo protetivo tradicional dos direitos sociais; os impactos do desenvolvimento tecnológico nesse mesmo modelo; e a constatação, a partir de casos concretos de que o temos não é o bastante para abarcar a complexidade do momento.

Espera-se que desse esforço advenham não um canto de fracasso acerca dos direitos humanos econômico-sociais, mas, a partir da concepção de como eles são, construam-se mecanismos efetivos para a proteção de seus núcleos fundamentais.  

DIMENSÕES DO MODELO PROTETIVO TRADICIONAL DOS DIREITOS SOCIAIS

Neste tópico examinam-se os alicerces históricos dos direitos sociais com enfoque naquele relacionado ao trabalho humano, demonstrando como ocorreu a construção do modelo jurídico protetivo tradicional, embasado na centralidade, na territorialidade e na categoria “classe”.

2.1 DEFINIÇÕES INICIAIS SOBRE OS DIREITOS HUMANOS E O ESTADO SOCIAL:

PERSPECTIVAS HISTÓRICAS E METODOLÓGICAS 

Para efetivar a análise proposta quanto aos direitos sociais, faz-se necessário antes traçar as premissas metodológicas importantes na definição de Direitos Humanos utilizada no decorrer deste ensaio. Um ponto de partida essencial para compreensão da proposta é a de que quando falamos em Direitos Humanos, estamos tratando-os como aqueles concretos, historicamente determinados, fruto das lutas sociais. 

Neste sentido, Bobbio (1992, p. 32) delimita os direitos humanos como aqueles que surgem da luta por emancipação diante das transformações das condições de vida. É essa a razão de se falar em “invenção histórica dos direitos humanos” como Lafer (2009) propõe. Assim, o ponto de partida do presente ensaio é que os direitos humanos são interpretados e aplicados na ordem jurídica posta (seja em esfera nacional, seja internacional), afastando-se completamente de qualquer perspectiva jusnaturalista sobre a questão e visando contemplar o exercício desses direitos em um plano concreto.

Um outro aspecto relevante é aquele que envolve a instrumentalidade dos Direitos Humanos. Neste sentido é Freitas (2012, p. 238), ao informar que os Direitos Humanos podem assumir a forma de um discurso prescritivo – o que deve ser (quando estampados nos textos das leis ou nas argumentações judiciais) ou ainda descritivo – um exame do que efetivamente o é. É justamente esta a perspectiva que este ensaio desenvolve.

Em um primeiro momento do desenvolvimento dos direitos humanos, estes eram individualmente afirmados e estavam a serviço de classes específicas (burguesia de um lado e de outro, o poder absolutista). Visavam, portanto, o combate ao Estado absolutista, focando-se em estabelecer limites ao abuso do poder para com os cidadãos. Conforme elucida Costas Douzinas (2009, p.100), os documentos revolucionários do século XVIII, servem de base para a noção de limitação de um Estado liberal que está preocupado com a efetivação e comprometido (ainda que por vezes apenas em um discurso retórico) com a positivação dos direitos naturais proclamados, como liberdade e igualdade. 

A interação entre governante e governados ganha um novo ingrediente no decorrer do século XIX: o exercício coletivo de direitos. Isso possibilitou o aparecimento de associações, partidos políticos, sindicatos, e, por conseguinte, reforça a preocupação com a proteção ao trabalho, objeto do nosso estudo. Contudo, foi com a influência das Revoluções Russa e Mexicana que no século XX, os textos constitucionais[3] passam a prever direitos sociais (os trabalhistas aí incluídos) na  qualidade de direitos fundamentais, lançando as bases do que se convencionou chamar de Estado Social.

Ao tratar sobre direitos sociais é necessário ainda definir o modelo jurídico econômico de Estado em que eles se desenvolvem: o Welfare State[4]. Neste paradigma intervencionista, o poder estatal nas relações privadas se agiganta. O Estado de Bem-Estar surge da decadência do modelo liberal nos anos de 1930, como alternativa de superação à crise de 29, e se baseia, no plano social, em pleno emprego e serviços sociais universais. Do ponto de vista jurídico, temos um incremento substancial da atividade legislativa com fins de política social (normas relativas ao direito do trabalho, saúde, seguridade social). Conforme Cappelletti (1999), nesta época também temos o desenvolvimento de um aparato administrativo de alto grau de complexidade, transmutando-se em estado administrativo e burocrático, mediador das relações e dos conflitos sociais.

Feita a digressão sobre o Welfare State, alerta-se que não se está a propor que a simples positivação garanta a efetivação dos direitos humanos, sendo, em verdade, apenas o ponto de partida para tanto. Com efeito, “apenas aqueles direitos adotados pela legislação (internacional ou nacional) foram introduzidos na história da instituição política e podem ser usados, enquanto durarem, para defender os indivíduos” (COSTAS DOUZINAS, 2009, p. 28). Canotilho (2003, p. 377), por sua vez, alerta que os direitos subjetivos do homem, em sua ótica, fundamentais, devem ser vistos como direitos assegurados juridicamente por meio da positivação em uma constituição, dando enfoque ao aspecto territorial, sendo este o locus ideal para que eles ganhem concretude, saindo do plano da simples aspiração e retórica política para ter consequências de norma jurídica.

Em resumo, pode-se dizer que a história dos direitos humanos pode ser dividida em 03 partes: a da aceitação pelo legislador das teorias, que leva a um reconhecimento e concretude em âmbito Estatal, com mitigação da característica de universalidade e, por fim, a etapa que se inicia com a Declaração de 1948, que ao mesmo tempo universaliza e positiva os Direitos Humanos (BOBBIO, 1992, p. 26).

2.1 O MODELO TRIPARTITE DE PROTEÇÃO AO TRABALHO CLÁSSICO: ESFERA INDIVIDUAL, COLETIVA E INTERNACIONAL.

O trabalho subordinado é fruto da modernidade e reflexo do industrialismo, o verdadeiro alicerce e principal característica da ordem social capitalista, o que justifica sua centralidade. O salário é fator de socialização: faz com que os indivíduos se sintam pertencentes à esfera pública (GORZ, 2007, p. 21). Uma das críticas mais duras ao direito do trabalho é aquela trazida por Edelman (2016), ao indicar que o direito do trabalho nada mais é do que o direito burguês. O que o autor propõe é que é falacioso acreditar que o direito do trabalho traz uma proteção plena ao trabalhador ou seja diferente dos outros direitos (como o de propriedade ou o civil, por exemplo) porque ele próprio é uma apropriação do discurso da classe operária pela burguesia.

A subordinação voluntária de sujeitos livres era um fenômeno visível, mas, que necessitava de um arcabouço jurídico que servisse de justificação para sua manutenção, sem que os humanos fossem tratados como mercadoria (o que acontecia no paradigma liberal). Assim, surge o contrato de trabalho, base das relações trabalhistas, sendo identificado como a dimensão individual da proteção ao trabalho.

O ideário da Revolução Francesa de fraternidade foi transmutado (de forma volitiva e intencional) para o mundo trabalhista através do seguinte paradoxo: “somos iguais, logo, submetidos a uma mesma ordem jurídica, que nos atribui um local particular a cada um” (SUPIOT, 2016, p.169) – unem-se os que trabalham, excluemse os que não trabalham. Nasce assim, um novo tipo de vínculo social: a solidariedade enquanto categoria econômica. 

Em outras palavras, surgem as classes como construções voltadas para o direito do trabalho: agrupamentos sindicais, divisão por atividade econômica, negociação coletiva através de coletivos de trabalhadores. Assim, a dimensão coletiva está presente até mesmo no exercício dos direitos individuais do trabalhador, lhe dando sustentação e mecanismos de efetivação. Os contratos de trabalho são, portanto, sui generis, possuindo tanto um espaço de liberdade individual, a ser pactuado entre as partes contratantes, quanto uma esfera pública e coletiva, a partir dos ditames legais de uma regulação normativa mínima, delimitada, à princípio, territorialmente.

O Direito do trabalho possui uma terceira dimensão: a internacional. Esta tem sua semente nas lutas sindicais no Pós- Revolução Industrial (século XIX). O embate tinha roupagem da limitação das horas de trabalho, mas, o que se desejava com a internacionalização dos debates trabalhistas, em verdade, era a instituição de um patamar de direitos trabalhistas básicos que pudessem ser exigidos dos países integrantes do comércio global. É no século XX, em 1919, que surge a Organização Internacional do Trabalho (OIT) adicionando ao conteúdo da paz universal, a justiça social. O Tratado de Versalhes, texto normativo que sustenta a fundação da OIT,

“ressalta a tríplice justificação da consagração do Direito do Trabalho (então ainda abrangendo a Previdência Social), visando à universalização das leis socialtrabalhistas: humanitária, política e econômica” (SUSSKIND, 2000, p. 102). 

A pressão do movimento de internacionalização dos direitos, foi frutífera, com reflexos tanto no plano individual, no sentido da implementação de standards internacionais protetivos mínimos dentro dos contratos de trabalho individuais, quanto no plano coletivo, a partir da nova postura dos Estados envolvidos, que positivaram diversas normas internacionais em seu ordenamento jurídico interno, reforçando, mais uma vez, a relação entre território e concretização de direitos sociais. 

A OIT atualmente tem mais de 190 Tratados Internacionais (que precisam ser ratificados pelos países membros para serem vinculantes), entre Convenções e Protocolos e 206 Recomendações (sem caráter vinculante)[5]. Percebe-se que a OIT tem aspirações inclusive de criação de uma verdadeira legislação trabalhista universal, que trate sobre direitos fundamentais do trabalhador, equidade, e proteção ao meio ambiente do trabalho, políticas públicas voltadas para seguridade social e combate ao subemprego e discriminação. Todavia, na prática, o que se percebe é o caráter de soft law das normas da OIT, que ou dependem da boa vontade dos países membros para sua ratificação e aplicação dentro de seu território, ou, que sequer tem caráter vinculante.

OS NOVOS MUNDOS DO TRABALHO: DESTERRITORIALIZAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO DO TRABALHO EM NUVEM

O mundo do trabalho está em constante ebulição e suas formas se modificam de acordo com as necessidades da sociedade em que está inserido. Assim, o que  vislumbramos atualmente é um cenário de fragmentação, complexificação e heterogenização da classe operária. Isto se dá, entre outros fatores, em virtude da desterritorialização e pela descentralização do trabalho em nuvem decorrente da Quarta Revolução Industrial. Não é possível mais tratarmos os trabalhadores como classe única e ligada a produção fabril.

Rememora-se que as Revoluções Industriais alteram substancialmente as formas que o trabalho é desempenhado, além da economia e da sociedade como um todo. A Primeira Revolução Industrial (meados do século XVII) teve como propulsor o surgimento da máquina a vapor e o incremento de sua utilização nas produções têxteis e sua consequente mecanização. A Segunda Revolução Industrial (segunda metade do século XIX), teve como motor a eletricidade, que foi inclusive democratizada para a população em geral. A Terceira Revolução Industrial (meados do século XX) ficou conhecida como “Era da Eletrônica”, sendo esta sua pedra fundante. Foi nesse momento que a tecnologia da informação chegou ao chão de fábrica e surgiu a internet para permitir que a rede de computadores atingisse lugares cada vez mais distantes. Nesse norte, Castells (2016), informa que com a internet nossa sociedade passou do modelo presencial para o modelo digital.

Desde 2010 estamos vivenciando, a nível mundial, a Quarta Revolução Industrial (SCHWAB, 2016), que representa um novo passo na relação entre a sociedade e a tecnologia e é capaz de causar profundas mudanças econômicas, sociais e culturais. A revolução digital é caracterizada por meio da crescente interação entre os meios físico, digital e biológico, através da internet, inteligência artificial, biotecnologia, robótica, tecnologias neurais, internet das coisas, blockchain, aprendizado de máquina, big data, além da rapidez e da onipresença. 

O mundo 4.0 é reconhecido por suas 4 principais características: volatilidade (instabilidade quanto aos desafios a serem enfrentados); incerteza (causa e efeito de ações são desconhecidos de forma prévia); complexidade (a situação tem inúmeras variáveis e interconexões, mas, devido a enorme quantidade de dados disponíveis é impossível processá-los integralmente); e ambiguidade (não há como se amparar no passado para tomar decisões futuras) (BENNET; LEMOINE, 2014). Sublinhe-se que sociedade e tecnologia são faces da mesma moeda, e em conjunto com o capitalismo global concretizam um novo estilo produtivo, comunicativo e de vida. 

Leva-se em consideração também a conclusão de Fukuyama (2003), de que mais do que nunca é preciso pensar concretamente e com um enfoque prático sobre como as instituições podem diferenciar usos positivos e negativos das tecnologias, buscando um meio termo entre a permissividade total e o banimento integral de seus usos. 

O mundo do trabalho não fica imune a este processo: destroem-se postos de trabalhos manuais e fabris, surgem novos postos de trabalhos que requerem novas habilidades. Conforme Klaus Schwab e Nicholas Davis (2018, p. 37), “as novas tecnologias trouxeram mudanças relacionadas à cooperação e competição que, por sua vez, criaram sistemas inteiramente novos de produção, troca e distribuição de valor”. Essa tendência de digitalização foi intensificada pela pandemia de COVID19 deflagrada em 2020 pela OMS, quando empresas e trabalhadores do mundo inteiro se viram obrigados a paralisar o trabalho presencial para adoção de trabalho remoto, substituindo o espaço físico pelo virtual. Assim, é impossível não se questionar: quem é a classe trabalhadora hoje? 

Antunes traz o conceito de “proletariado digital”: a acentuada precarização se torna regra geral, e a empresa moderna baseada na flexibilidade do capital, não tem jornada ou espaço laboral pré-definido. Assim, temos como panorama para o trabalho no século XXI:

Em pleno século XXI, mais do que nunca, bilhões de homens e mulheres dependem de forma exclusiva do trabalho para sobreviver e encontram,  cada vez mais, situações instáveis, precárias, ou vivenciam diretamente o flagelo do desemprego. Isto é, ao mesmo tempo que se ampla o contingente de trabalhadores, e trabalhadoras em escala global, há uma redução imensa dos empregos; aqueles que se mantêm empregados presenciam a corrosão dos seus direitos sociais e a erosão de suas conquistas históricas, consequência da lógica destrutiva do capital, que, conforme expulsa centenas de milhões de homens e mulheres do mundo produtivo (em sentido amplo), recria, nos mais distantes e longínquos espaços, novas modalidades de trabalho informal, intermitente, precarizado, “flexível”, depauperando ainda mais os níveis de remuneração daqueles que se mantém trabalhando (ANTUNES, 2018, p. 26).

De acordo com Marques e Cecato (2020, p. 38-39) o que se pode concluir é pela necessária criação de novos marcos normativos regulatórios que sejam compatíveis com as novas relações de trabalho já que “o aumento das formas atípicas de trabalho no mercado de trabalho, como as formas de subordinação indireta, teletrabalho e trabalho intermitente, etc, demandam mudanças em diversas áreas”. 

A INSUFICIÊNCIA DO MODELO PROTETIVO TRADICIONAL E A REDEFINIÇÃO DA PROTEÇÃO AO TRABALHO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Levando em consideração o modelo protetivo tradicional que embasa os direitos sociais, cabe primordialmente Estado normatizar o procedimento de desenvolvimento tecnológico e seu impacto no crescimento empresarial, considerando, inclusive, os fluxos migratórios de capital e transferência de tecnologia que caracterizam o movimento da globalização.

No ordenamento jurídico brasileiro, a função regulatória e normativa do Estado está disposta no artigo 174 da Constituição Federal, estatuindo: “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”. 

Observe-se que a atuação estatal, assim como a ordem econômica, conforme preceituam os artigos 3º e 170 da Carta Maior, serão sempre pautadas na livre iniciativa, dignidade da pessoa humana, valorização do trabalho, na redução das desigualdades regionais e sociais, na livre concorrência, entre outros. Eis aqui as balizas principiológicas a serem respeitadas no curso da intervenção estatal na área de desenvolvimento tecnológico aplicado, inclusive no que concerne ao mundo do trabalho.

Conforme propõe Araújo (2018, p. 134), para uma compreensão material da constituição, o Estado deve sempre se pautar em uma racionalidade ético-jurídica, promovendo e reconhecendo os valores albergados na ordem jurídica e instrumentalizando-os através de políticas públicas.

No âmbito trabalhista, ter um Estado forte presente representava a segurança de ter standards para garantir que a classe não seria mercantilizada, e que os sujeitos do contrato de trabalho seriam protegidos em sua dignidade por um patamar civilizatório mínimo. E foi pautado nisso que o sistema de proteção social brasileiro se desenvolveu: através de um contrato de trabalho único, impositivo e de caráter misto entre o publico e o privado. É interessante notar que como o arcabouço protetivo trabalhista nasce em plena Revolução de 30, ter um Estado Intervencionista e corporativista reduziu sobremaneira a legitimidade das lideranças trabalhistas e seu papel reivindicador.

Ocorre que o modelo regulatório trabalhista tradicional é anacrônico para a sociedade digital em que vivemos e não acompanham a dinamicidade e complexidade das relações trabalhistas. É o que propõe Everaldo Gaspar: 

[…] apontam para práticas negociadoras vivenciadas ao longo de muitos anos pelo Direito do Trabalho – as negociações coletivas por empresas, ramos de atividade, nacionais e transnacionais. Experiências que servirão para demonstrar a inaptidão das práticas estatais tradicionais para acompanhar a dinâmica e a complexidade das relações socais em geral, e das relações individuais e coletivas do trabalho, em particular (ANDRADE, 2005, p. 162).

  Sobre a questão, alerta Wolney de Macedo Cordeiro (2019), que a regulação estatal tradicional baseia sua instrumentalidade a partir das categorias do trabalho centralizado e territorialmente localizado, sem maiores preocupações com as interações externas. Todavia, com o incremento da descentralização produtiva na pós-modernidade e a quebra desses paradigmas, é essencial a criação de estruturas regulatórias aptas a conceder um nível de proteção social adequado.

A fim de ilustrar a dificuldade do judiciário de assimilar e equilibrar os desafios normativos dos direitos sociais perante os novos arranjos empresariais com um patamar protetivo mínimo, utilizam-se neste ensaio dois exemplos, o primeiro, de índole individual: o caso da plataforma digital Uber (a escolha deste aplicativo se deu em virtude do fenômeno da “uberização” – baluarte da tentativa de autonomização dos contratos de trabalho e da utilização de inovações disruptivas nas formas de produção); e o segundo, de índole coletiva: a aplicação das normas coletivas para trabalhadores em regime de teletrabalho.  

Logo ao chegar no Brasil, em 2014, o Uber causou uma verdadeira revolução na forma de transporte dos brasileiros, que antes era dominada pelos táxis e alternativos de um lado e do outro os serviços públicos de transporte. O fenômeno da utilização desse aplicativo demonstrou que seria possível a subversão integral dos requisitos clássicos da relação de emprego, a partir de uma relação triangular de intermediação entre motoristas e passageiros, deixando a relação em uma zona gris entre o contrato de emprego (relação regida pelo direito do trabalho) e a prestação de trabalho (relação regida pelo direito civil).

É interessante notar que essa instabilidade sobre a uberização é fenômeno mundial, à exemplo do que ocorre nos tribunais holandeses. Neste país, em 2018, a corte de Amsterdã ao julgar um caso relativo ao aplicativo de entrega Deliveroo considerou que eles seriam o equivalente no direito brasileiro a prestadores de serviço, já que poderiam recusar encomendas, trabalhar para outras plataformas e estavam cientes desde o início da contratação sobre as condições de trabalho. Meses depois a mesma corte alterou seu entendimento para considerar que esses entregadores mereciam o reconhecimento de vínculo com o aplicativo, decisão que foi confirmada pelo Tribunal Superior daquela jurisdição em fevereiro de 2021.

A divergência também pode ser facilmente verificada através dos posicionamentos judiciais, muitas vezes dissonantes, que ora decidem pela existência de vínculo empregatício e ora decidem pela autonomia do motorista, com implicações inclusive na competência da Justiça do Trabalho para se manifestar sobre o assunto nos Tribunais Brasileiros. 

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) em agosto de 2019, decidiu em sede do Conflito de Competência nº 164.544 – MG (2019/0079952-0) que o juízo competente para processar e julgar causas envolvendo motoristas do aplicativo Uber seria da Justiça Comum, dada a natureza de prestação de serviço: 

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INCIDENTE MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS AJUIZADA POR MOTORISTA DE APLICATIVO UBER. RELAÇÃO DE TRABALHO NÃO CARACTERIZADA. SHARING ECONOMY. NATUREZA CÍVEL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO

ESTADUAL. […] A pretensão decorre do contrato firmado com empresa detentora de aplicativo de celular, de cunho eminentemente civil. 3. As ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma. 4. Compete a Justiça Comum Estadual julgar ação de obrigação de fazer c.c. reparação de danos materiais e morais ajuizada por motorista de aplicativo pretendendo a reativação de sua conta UBER para que possa voltar a usar o aplicativo e realizar seus serviços. 5. Conflito conhecido para declarar competente a Justiça Estadual. (grifos nossos)

De outro lado, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), que vinha formando jurisprudência por meio de suas 4ª e 5ª turmas no sentido de inexistência de vínculo empregatício[6], seguindo o mesmo norte interpretativo do STJ, de autonomia dos motoristas do Uber perante a plataforma, está, agora, em vias de condenar a plataforma ao reconhecimento do vínculo empregatício, conforme voto do relator Min. Mauricio Godinho Delgado, já proferido, em decisão inédita no processo RR – 10035302.2017.5.01.0066 cujo julgamento está em curso e previsto para o próximo dia 15 de dezembro de 2021.   

Quanto a questão da uberização, finalmente, é interessante notar que pela primeira vez, em julho de 2021 foi feita uma pesquisa pelo IBOPE que constatou que 70% dos trabalhadores preferem um modelo de trabalho flexível, com possibilidade de prestar o serviço para diversas plataformas, ao invés de ter a carteira assinada. Por outro lado, os trabalhadores têm feito paralisações clamando por melhores condições de trabalho, como por exemplo: aumento no valor da corrida, diminuição no tempo de espera nos restaurantes, seguro de vida e contra roubos, entrega de EPIs – kits de higienização e licença remunerada para quem contrair o coronavírus.

Um outro caso que demonstra a insuficiência do modelo protetivo tradicional dos direitos sociais é aquela relativa a aplicação das normas coletivas ao trabalhadores em teletrabalho. Em breve síntese, nosso direito sindical é limitado pelo princípio da territorialidade[7], que proíbe a existência de mais de um sindicato na mesma base territorial. 

Não há legislação específica quanto a questão aplicada ao teletrabalho e os posicionamentos judiciais sobre o tema são bastante divergentes, deixando os empregadores com sua proteção comprometida diante da insegurança jurídica. Como exemplo, temos um único precedente de uma única turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), no processo AIRR 212747220145040008, sob relatoria do Min. Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, que define o local da prestação de serviços como sendo a base para aplicação da norma coletiva:

[…] 3. NORMA COLETIVA APLICÁVEL. LOCAL DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. SÚMULA 374 DO TST. A decisão revela-se em plena consonância com a jurisprudência desta Corte Superior, no sentido de que o enquadramento sindical de empregado pertencente à categoria diferenciada (propagandista-vendedor) deve ser definido pela regra da base territorial do local da prestação dos serviços, nos termos do art. 8º, II, da CF (TST – AIRR: 212747220145040008, Relator: Alberto Luiz Bresciani De Fontan Pereira,

Data de Julgamento: 07/04/2021, 3ª Turma, Data de Publicação: 09/04/2021)

Todavia, há posicionamentos de Tribunais Regionais do Trabalho, à exemplo do TRT01, que no julgamento do Processo de n. 0011000-54.2014.5.01.0001, entendeu que as normas coletivas do local do estabelecimento, independentemente de qual seja o local da prestação de serviços, é que deve ser aplicado, permitindo assim a mitigação do princípio da territorialidade.  

Observe-se que nenhum dos dois posicionamentos garante a proteção necessária ao trabalhador. O primeiro, ao definir que as normas coletivas são a do local da prestação de serviço, traz consigo o problema de que o empregado, toda vez que volitivamente mudar seu local de residência, vai estar submetido a uma nova convenção coletiva, que por vezes sequer a empresa contratante vai estar presente nas negociações. Além disso, essa perspectiva ignora o fato de que se pode trabalhar de qualquer lugar do mundo sem que seja necessário morar no mesmo país em que a empresa está sediada (fenômeno chamado de anywhere office), e isto não está até o presente momento regulado pela CLT.

O entendimento de que as normas coletivas do local do estabelecimento, independentemente de qual seja o local da prestação de serviços também desconsidera um aspecto importante: as normas coletivas são pensadas localmente, levando em conta as peculiaridades daquela realidade. Isso significa que determinados benefícios previstos para a categoria de um local, podem não ser suficientes para proteger empregados de outro local.

O descompasso entre a atuação e as novas formas de funcionamento de mercado e da sociedade tem reflexos na intervenção estatal especialmente quanto a sua oportunidade, momento, forma e justificativa (BAPTISTA; KELLER, 2016, p. 138). Bennett (2013, p. 6) diagnostica três aspectos que desafiam a normatização estatal:   conexão regulatória (harmonização do arcabouço normativo já existente com o cenário fático atual); problema de andamento (risco de regulação abrangente demais ou muito cautelosa, capaz de inviabilizar a tecnologia); e o momento mais eficiente para regulação, se logo quando a disrupção acontece ou se após o seu estabelecimento na sociedade. Daí a importância da construção de novas alternativas regulatórias, uma vez que os modelos tradicionais não acompanham as transformações havidas na economia.

Nota-se, então, que a velocidade do progresso tecnológico e suas consequências econômicas e sociais ensejam uma nova forma da norma se compatibilizar com a realidade fática, num jogo entre regulação que permita a inovação, mas que também não ponha em risco aos seus usuários. Nesse sentido é o alerta de Tranter (2017, p.19) de que as tecnologias disruptivas estabelecem uma agenda urgente de reforma legal para que seja possível gerenciar os riscos e consequências do novo paradigma tecnológico.

O que não se pode esquecer é que o desenvolvimento tecnológico não é face distinta da promoção do trabalho digno. É por isso que a perspectiva deste ensaio é a de que os direitos sociais possuem um núcleo essencial que é universalmente pactuado e este precisa ser ajustado aos desafios do avanço tecnológico, a partir de uma congregação de esforços entre Estado e todos os demais interessados. 

O conceito de trabalho decente (OIT, 1999), sumariza a missão histórica da OIT de garantir trabalho produtivo de qualidade a homens e mulheres, através dos seus quatro objetivos estratégicos: respeito aos direitos fundamentais no trabalho, promoção de emprego produtivo e de qualidade, ampliação da proteção social e fortalecimento do diálogo social[8].

O standard mínimo do trabalho digno, alinha-se e é central ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 8 (ODS 8) que traz o ideal de promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos. Inclusive, a meta 8.3 traz especificamente a preocupação com a criatividade e a inovação, ao dispor como objetivo promover políticas orientadas para o desenvolvimento que apoiem as atividades produtivas, geração de emprego decente, empreendedorismo, criatividade e inovação, e incentivar a formalização e o crescimento das micro, pequenas e médias empresas, inclusive por meio do acesso a serviços financeiros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Olhar para trás. Talvez seja esse o hábito mais recorrente quando lidamos com os direitos humanos. As instituições do direito do trabalho clássico sempre se afiguram como um bote salva-vidas a que se recorre em momento de catástrofe.   

O problema é quando simplesmente não podemos mais fazer uso daquilo, naquele figurino, não apenas porque a moda mudou, mas tudo aquilo que está entorno não se ajusta mais aquelas concepções. O impulso da tecnologia transformou a sociedade, as relações de produção e a mentalidade dos indivíduos.  

Assim mesmo, deve-se lutar não pela eternização do passado, mas pela evolução daquilo que foi experenciado e trouxe bons resultados. Colhemos aqui o exemplo do Welfare State praticado pelos países nórdicos, a nos dar exemplos de que uma sociedade mais solidária, transparente e responsável, voltada para um consumo não predatório, pode, realmente, criar um sentimento de comunidade diverso daquele vivenciado numa sociedade que não valoriza o trabalho humano.

Se não cabem mais os arquétipos do trabalhador e do empregador, ambos situados numa empresa localizada espacialmente, cada um com papéis pré-definidos a cumprir e com um tempo destinado à prestação de serviços. Ainda podemos afirmar a indispensabilidade do trabalho do homem como elemento transformador da natureza. Por mais que a tecnologia teime em mediar e ocultar isso, o “homem ainda é a medida de todas as coisas”, como definia Protágoras.  

     O trabalho humano, deslocalizado e descentralizado, ainda carece de medidas efetivas de proteção. E a via que se abre aquela dos direitos humanos. Sua elasticidade conceitual é a residência de seu vigor. Dali se pode ver que o núcleo essencial de qualquer discurso protetivo é a preservação do núcleo essencial da dignidade da pessoa humana.  

Olhar para frente, preservando a essência do passado, é a fórmula que se afigura mais acertada para ajustarmos a proteção social aos desafios de um mundo cercado pelo egoísmo e a desesperança.  

   Um grande trabalho nos aguarda, estamos somente no começo da jornada.

REFERÊNCIAS

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ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, Boitempo, 2018.

ARAÚJO, Jailton Macena de. Constituição, Cidadania e Trabalho: premissas para oreconhecimento de uma racionalidade estatal pautada na solidariedade. Direito, Estado e Sociedade, v. 52, p. 134-158, 2018. Disponível em: 

http://direitoestadosociedade.jur.pucrio.br/media/art%206%20direito%2052.pdf  

BAPTISTA, Patrícia; KELLER, Clara Iglesias. Por que, quando e como regular as novas tecnologias? Os desafios trazidos pelas inovações disruptivas. Revista de Direito Administrativo (RDA), Rio de Janeiro, v. 273, p. 123-163, set./dez. 2016. Disponível em:https://doi.org/10.12660/rda.v273.2016.66659. 

BENNETT, Lyria Moses, How to Think About Law, Regulation and Technology: Problems with ‘Technology’ as a Regulatory Target (2013). (2013) 5(1) Law, Innovation and Technology1-20, UNSW Law Research Paper No. 2014-30.

Disponível em : https://ssrn.com/abstract=2464750. Acesso em: 10.01.2021 BENNET, Nathan; LEMOINE, James. What VUCA really means for you. Harvard Business Review (january-february 2014). Disponível em: https://hbr.org/2014/01/whatvucareallymeansforyou.\    

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992.

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[1] Doutoranda em Direito em Ciências Jurídicas do Programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas do CCJ/UFPB, na área de concentração em Direitos Humanos e Desenvolvimento. Mestre em Direito Econômico (UFPB). Membra da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (ANNEP) e da Academia Brasileira de Meios Adequados à Solução de Conflitos (ABMASC).  Professora Universitária. Advogada. Email: juliana.coelho@academico.ufpb.br .

[2] Doutor e Mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela UFPB; professor permanente e Coordenador Acadêmico do PPGD/UNIPÊ; professor adjunto do DDPr da UFPB; Juiz do Trabalho. CV: http://lattes.cnpq.br/8783276658095596

[3] Neste ponto nos referimos, por exemplo, à Carta política do México (1917) e a Constituição de Weimar (1919).

[4] Com a derrocada do Welfare State, houve um desequilíbrio entre trabalho produtivo e gastos assistenciais. Assim, foi proposta uma agenda baseada em limitação do papel do estado, desmonte do direito do trabalho, com aumento dos subempregos precários e flexibilizados, que serviam como mecanismo de “expiação de culpa” para os que recebiam benefícios assistenciais, período que ficou conhecido como Anti-Estado de Providência, ou Workfare State (MOSER, 2011). 

[5] Cf. https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:1:0::NO  

[6] Neste sentido são os processos 10555-54.2019.5.03.0179(Julgado pela 4ª Turma sob relatoria do Min. Ives Gandra Martins Filho); 1000123-89.2017.5.02.0038 (Julgado pela 5ª Turma sob relatoria do Min. Breno Medeiros); 10575-88.2019.5.03.0003 (Julgado pela 4ª Turma sob relatoria do Min. Alexandre Luiz Ramos).  

[7] Art. 8º – CRFB – É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

II – é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município;

[8] Cf https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalhodecente/langpt/index.htm