CONSUMIDORES HIPERVULNERÁVEIS: QUEM SÃO E POR QUE NECESSITAM DE UMA PROTEÇÃO AINDA MAIOR?

CONSUMIDORES HIPERVULNERÁVEIS: QUEM SÃO E POR QUE NECESSITAM DE UMA PROTEÇÃO AINDA MAIOR?

1 de fevereiro de 2022 Off Por Cognitio Juris

HYPER VULNERABLE CONSUMERS: WHO ARE THEY AND WHY DO THEYNEED EVEN GREATER PROTECTION?

Cognitio Juris
Ano XII – Número 38 – Edição Especial – Fevereiro de 2022
ISSN 2236-3009
Autores:
Amurielly de Souza Rodrigues[1]
Markus Samuel Leite Norat[2]

RESUMO: Esta pesquisa tem por objetivo uma análise dos consumidores hipervulneráveis e a proteção dada a eles pelo Código de Defesa do Consumidor. O consumidor já carrega consigo uma condição de vulnerabilidade e é essa condição que justifica um Código específico para a sua proteção na relação consumerista, afastando o princípio da liberdade contratual. Em alguns casos, o consumidor pode também ser considerado hipossuficiente e obter mais algumas vantagens no decorrer do processo. Porém, o consumidor ainda pode ser classificado como sendo uma pessoa hipervulnerável e é esse o ponto principal da pesquisa. Ela é baseada em um estudo, bibliográfico e jurisprudencial, para definir os consumidores que se enquadram nessa situação de hipervulnerabilidade. Fazem parte de grupo: gestantes, crianças, idosos, enfermos, portadores de necessidades especiais, analfabetos, etc. O Código de Defesa do Consumidor considera prática abusiva se prevalecer da hipervulnerabilidade do consumidor para o forçar a adquirir produtos e serviços. A prática de condutas abusivas acarreta a nulidade dos atos praticados e a reparação dos danos materiais e morais por ela causada.

Palavras-chave: Direito do Consumidor. Hipervulnerabilidade. Prática Abusiva.

ABSTRACT: This research aims to analyze hyper vulnerable consumers and the protection given to them by the Consumer Defense Code. The consumer already carries with him a condition of vulnerability and it is this condition that justifies a specific Code for his protection in the consumer relationship, moving away from the principle of contractual freedom. In some cases, the consumer may also be considered low sufficient and gain some more advantages during the process. However, the consumer can still be classified as being a hyper vulnerable person and this is the main point of the research. It is based on a bibliographic and jurisprudential study to define consumers who fall into this situation of hypervulnerability. The group includes: pregnant women, children, the elderly, the sick, people with special needs, illiterate people, etc. The Consumer Defense Code considers it an abusive practice if it takes advantage of the consumer’s hypervulnerability to force him to purchase products and services. The practice of abusive conduct entails the nullity of the acts performed and the reparation of material and moral damages caused by it.

Keywords: Consumer Law. Hypervulnerability. Abusive Practice

1 INTRODUÇÃO

O Código de Defesa do Consumidor – CDC representa um sistema de proteção para a pessoa considerada mais “fraca” na relação de consumo. Anteriormente, essa relação era tratada pelo Código Civil que tratava as partes como iguais. Porém, a partir do CDC tivemos o reconhecimento da condição de vulnerabilidade do consumidor e da necessidade de protegê-lo nas relações de consumo.

No presente trabalho serão expostas as formas de proteção para os consumidores que possuem uma condição de vulnerabilidade ainda maior do que a presente nos consumidores em geral, os chamados hipervulneráveis. Também será analisado quem são as pessoas que podem se enquadrar nesse grupo.

O objeto do estudo é a hipervulnerabilidade do consumidor. Entender esse conceito, as consequências dele na relação de consumo e, por fim, os seus efeitos no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no CDC que é o responsável por regulamentar a relação entre consumidor e fornecedor.

A questão a ser analisada neste trabalho é o tratamento diferenciado que os consumidores hipervulneráveis recebem juridicamente. Seria ele realmente necessário para reequilibrar a relação de consumo ou sua utilização causaria um ônus desnecessário para o fornecedor?

A escolha do tema ocorreu com a observação de propagandas cada vez mais direcionadas para pessoas que possuíam algum tipo de deficiência de entendimento ou problemas de saúde. Também não é raro ver no dia a dia consumidores idosos vítimas de golpes contratuais que a promessa é uma, mas o contrato dispõe em um sentido totalmente diferente. 

O objetivo geral é realizar um estudo sobre os consumidores hipervulneráveis e a proteção a eles ofertada pelo nosso ordenamento jurídico. Entendendo as pessoas que se enquadram nesse conceito para a partir daí compreender os motivos que fazem com que eles precisem de uma proteção especial.

Com relação ao objetivo específico, a finalidade é analisar a vulnerabilidade dos consumidores nas relações de consumo, fazer a diferenciação entre vulnerabilidade e hipossuficiência, entender o conceito de hipervulnerabilidade, o seu regulamento pelo CDC e os entendimentos jurisprudenciais sobre o tema.

Notaremos a presença de consumidores como gestantes, crianças, idosos, enfermos, portadores de necessidades especiais, analfabeto, dentre aqueles que são considerados hipervulneráveis. Veremos a norma do CDC que classificaa como prática abusiva a conduta do fornecedor que se prevalece da fraqueza ou ignorância do consumidor para os forçar a adquirir seus produtos ou serviços.

A vertente metodológica utilizada é a qualitativa, o método de procedimento é o monográfico; com abordagem hipotético-dedutivo, através de pesquisa indireta através de livros, sites da internet, jurisprudências entre outros.

2 O CONSUMIDOR E A SUA VULNERABILIDADE INTRÍNSECA

O primeiro passo para compreendermos sobre a hipervulnerabilidade do consumidor é o domínio da característica da vulnerabilidade. Por isso, antes mesmo de tratarmos especificamente da hipervulnerabilidade dos consumidores, precisamos tratar dos detalhes da sua condição de vulnerabilidade e o papel dela no conceito de consumidor.

 Temos o Código de Defesa do Consumidor – CDC como uma construção do direito pós-moderno que surgiu para reequilibrar as partes envolvidas nas relações de consumo. Anteriormente essas relações eram regidas pelo Direito Civil e se baseavam na igualdade entre as partes, e na liberdade contratual, sem uma intervenção estatal. Nesse sentido, para Tartuce (2020, p. 4), “o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor constitui uma típica norma pós-moderna, no sentido de rever conceitos antigos do Direito Privado, tais como o contrato, a responsabilidade civil e a prescrição”.

A questão do contrato é o ponto mais importante para o nosso objetivo. O CDC tem a função de equilibrar a relação entre o consumidor e o fornecedor, dando uma proteção especial ao consumidor. Isso acontece porque o consumidor se encontra em posição de desvantagem em relação ao fornecedor. Nas palavras de Khouri (2020, p. 27):

O dirigismo contratual dirige a proteção da norma para a “defensa de los débiles”. Essa orientação visa a equilibrar as relações contratuais, que, sem a intervenção estatal, tenderiam a ser injustas, desequilibradas, prejudicando “los débiles”. O CDC é resultado desse reconhecimento. Outro não é objetivo do disposto no art. 4º, I, quando diz que a “Política Nacional das Relações de Consumo” (caput) se fundamenta no “reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (inciso I)”.

Fica claro que o ponto-chave para se justificar um tratamento especial para o consumidor é o reconhecimento da sua vulnerabilidade no mercado de consumo. Ou seja, a proteção dada ao consumidor é meio essencial para que ocorra uma efetiva paridade entre os sujeitos da relação de consumo. Essa paridade se mostra essencial para que ocorra uma liberdade contratual de fato e não apenas a exploração da parte mais “fraca” da relação.

2.1 DA VULNERABILIDADE

O art. 2º do CDC define como consumidor “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (BRASIL, 1990, p. 1). Por meio desse artigo se torna inegável a compreensão de que a pessoa jurídica também pode ser considerada consumidor e ser amparada pelas normas do CDC. Já o art. 4º do CDC, no seu inciso I, define como um dos princípios da política nacional das relações do consumo o “reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo” (BRASIL, 1990, p. 1).

Para considerar a pessoa jurídica como uma consumidora, o Superior Tribunal de Justiça recorre ao conceito de vulnerabilidade para concretizar a teoria do finalismo mitigado (BESSA, 2020, p.34). Essa teoria, em resumo, definirá se a pessoa jurídica se encontra em posição de vulnerabilidade ou não, de acordo com as situações presentes no caso em concreto. Caso não se identifique a condição de vulnerabilidade dela na relação em análise, essa relação não será classificada como relação de consumo e será regida pelo Código Civil.

Notamos aqui uma diferença da natureza da vulnerabilidade a depender do tipo de consumidor. Isso porque, enquanto a vulnerabilidade do consumidor pessoa física possui presunção absoluta, a vulnerabilidade da pessoa jurídica ou profissional, precisa de comprovação e só a partir dela será possível a utilização das normas do CDC para regulamentar a situação (ALMEIDA, 2021, p. 130).

Nas palavras de Bessa (2020, p. 8):

Vulnerabilidade, que é a razão de proteção de determinadas pessoas perante atividades desenvolvidas no mercado de consumo, serve, também, para solucionar os casos polêmicos relativos à incidência e aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

Por tanto, para se valer das normas do CDC se faz indispensável o atributo da vulnerabilidade da pessoa, seja ela física ou jurídica. E, apesar de na maioria dos casos esse atributo ser presumido, em outros, como nos que envolvem pessoas jurídicas, se faz necessária a sua comprovação no caso concreto.

2.2 VULNERABILIDADE VS. HIPOSSUFICIÊNCIA

A vulnerabilidade e a hipossuficiência são conceitos bastante confundidos quando tratam da relação consumerista. No tópico anterior, já estudamos de onde a vulnerabilidade do consumidor surge e que ela é elemento indispensável para se caracterizar uma pessoa como consumidora e sujeita aos regramentos do CDC. Com isso, agora podemos fazer a diferenciação entre esses dois conceitos.

A hipossuficiência, conforme explica Bessa (2020), está presente tanto na dificuldade do consumidor de provar os fatos constitutivos do seu direito, como nas dificuldades econômicas para custear o processo. Podendo decorrer tanto da posição de privilégio do fornecedor como dos próprios elementos do fato.

Já nas lições de Tartuce (2020, p. 29):

O conceito de hipossuficiência vai além do sentido literal das expressões pobre ou sem recursos, aplicáveis nos casos de concessão dos benefícios da justiça gratuita, no campo processual. O conceito de hipossuficiência consumerista é mais amplo, devendo ser apreciado pelo aplicador do direito caso a caso, no sentido de reconhecer a disparidade técnica ou informacional, diante de uma situação de desconhecimento, conforme reconhece a melhor doutrina e jurisprudência.

A hipossuficiência é caracterizada então pela desigualdade presente na relação entre fornecedor e consumidor. Essa diferença pode ser tanto técnica como informacional e deve ser considerada individualmente em cada uma das relações de consumo. Aqui já é possível notar que não é em todos os casos que haverá a presença da figura da hipossuficiência, diferente da vulnerabilidade que é elemento obrigatório para a configuração de uma relação de consumo.

Ainda sobre a semelhança e as diferenças nos conceitos de vulnerabilidade e de hipossuficiência, achamos importante destacar os ensinamentos de Almeida (2021, p. 130):

Apesar de ambos os institutos estarem relacionados com a fraqueza do consumidor perante o fornecedor em suas relações no mercado de consumo, a vulnerabilidade é fenômeno de direito material — com presunção absoluta — e a hipossuficiência é fenômeno de direito processual — com presunção relativa.

Desta forma, no plano do direito material, todos os consumidores pessoas físicas são considerados vulneráveis, mas na via processual nem todos são hipossuficientes, devendo a fragilidade ser demonstrada no caso concreto. É o que ocorre com a inversão no ônus da prova.

Vimos anteriormente que nem sempre a vulnerabilidade é dotada de presunção absoluta (nos casos em que o sujeito lesado é uma pessoa jurídica). Mas, também vimos que só é possível se valer da proteção e a regulamentação especial das normas consumeristas quando esse elemento estiver presente. Sendo assim, o consumidor sempre será alguém que seja vulnerável.

Por isso, se estivermos diante de uma relação consumerista, estamos tratando de uma relação com a presença de um sujeito vulnerável. Esse sujeito, que DEVE ser vulnerável, PODE ainda ser um sujeito hipossuficiente. Caso o consumidor em questão seja, além de vulnerável um hipossuficiente, ele terá, além da proteção especial já atribuída aos consumidores, alguns outros benefícios processuais que servem para equilibrar essa relação que estava ainda mais desigual do que quando se trata apenas de um consumidor vulnerável.

2.3 TIPOS DE VULNERABILIDADE

Agora que já entendemos a vulnerabilidade como requisito essencial para a caracterização de uma relação de consumo e conseguimos estabelecer a diferença entre ela e a hipossuficiência, podemos avançar e observar as perspectivas em que ela pode ser classificada.

Na visão de Almeida (2021), a vulnerabilidade pode ser classificada em quatro espécies, sendo elas: socioeconômica, jurídica, técnica e informacional. Veremos a seguir os critérios e as diferenças de cada um desses tipos de vulnerabilidade do consumidor.

2.3.1 Vulnerabilidade Socioeconômica

A vulnerabilidade socioeconômica, como já podemos notar pelo próprio nome, decorre de condições sociais e/ou econômicas. Ela pode ser vista tanto do lado da superioridade do fornecedor, como do lado da fragilidade do consumidor. Essas condições colocam o fornecedor em uma posição superior aos consumidores principalmente em decorrência da essencialidade do serviço ou o seu poderio econômico (THEODORO Jr., 2021, p. 8).

Outra nomenclatura utilizada para essa classificação é a de vulnerabilidade fática, que, nos ensinamentos de Bessa (2020), surge da superioridade econômica ou de condutas que dificultem ou impeçam a concorrência por parte do fornecedor. Ocorrem, por exemplo, em casos de monopólios onde só uma empresa detém o controle de um produto/serviço e o consumidor é obrigado a contratar com ele.

Um aspecto importante dessa espécie de vulnerabilidade é apresentado por Almeida (2021) que a considera uma modalidade aberta. Nesse sentido, uma vulnerabilidade expressa em um caso concreto que não consiga se encaixar em nenhuma das outras espécies, que trataremos a seguir, poderá ser facilmente encaixada como vulnerabilidade socioeconômica.

2.3.2 Vulnerabilidade Jurídica

Quando falamos em vulnerabilidade jurídica já temos a ideia de uma vulnerabilidade no âmbito processual e/ou jurídico. Porém, atualmente, essa espécie de vulnerabilidade já tem um campo de incidência bem maior. A doutrina inclusive já está a nomeando como vulnerabilidade científica. Assim, ela abrange, além das questões jurídicas, questões de outras áreas de conhecimento, como, por exemplo, questões de economia e contabilidade (ALMEIDA, 2021).

Na visão de Bessa (2020, p. 33), a disparidade entre as partes na área jurídica está bem definida, uma vez que o fornecedor é um litigante habitual e o consumidor é um litigante eventual, e, por isso, é muito mais afetado com “desgaste emocional, aborrecimentos e dedicação de importantes horas ao processo”.

Portanto, um dos pontos que demonstra a vulnerabilidade do consumidor está na facilidade da empresa que é uma figura habitual em processos. As grandes empresas geralmente já possuem pessoal e verba específicos para essas situações. Já o consumidor precisa de um sacrifício bem maior para entrar em juízo, que acaba por muitas vezes até resultando na desistência da busca pelo seu direito.

Por tanto, essa vulnerabilidade pode ser caracterizada tanto pela dificuldade jurídica que o consumidor tem como litigante eventual, como pela falta de conhecimentos específicos, como jurídicos, contábeis, econômicos, que permeiam as relações de consumo.

2.3.3 Vulnerabilidade Técnica

A vulnerabilidade técnica está relacionada com a falta de entendimento do consumidor no que diz respeito às especificidades do produto. A pessoa como consumidora não quer, e nem precisa, saber de detalhes sobre a tecnologia ou funcionamento do produto, ela apenas deseja usufruir dele. Essa falta de conhecimento, por outro lado, não pode ser utilizada pelo fornecedor para oferecer um produto ou serviço aquém do que é proposto e cobrado por ela.

Nesse sentido, explica Bessa (2020, p. 33) que:

O déficit de informação aumenta na mesma medida e velocidade do surgimento de produtos e serviços que incorporam novidades e avanços tecnológicos. A ausência de conhecimento das características e qualidades dos produtos dificulta, de outro lado, o direito de liberdade de escolha do consumidor (art. 6º, II), além de possibilitar, com maior intensidade, a indução a erro.

Sendo assim, essa vulnerabilidade está ligada à falta de entendimento por parte do consumidor de todas as características, tecnologias e pormenores que envolvem a fabricação do produto e/ou prestação de serviço. Esse desconhecimento torna o consumidor mais propício de ser enganado e induzido a erro. Mas, não se pode admitir que o fornecedor tire proveito dessa falta de conhecimento com o intuito de lesar o consumidor.

2.3.4 Vulnerabilidade Informacional

Se na vulnerabilidade técnica estávamos diante de uma vulnerabilidade por desconhecimento das tecnologias que envolvem o produto, na vulnerabilidade informacional estamos diante de uma vulnerabilidade que acontece por estar o consumidor refém das informações prestadas pelo fornecedor que tem o poder de controlá-las.

Essa vulnerabilidade “é caracterizada pelo déficit informacional do consumidor, atingido, muitas vezes, pela manipulação das informações prestadas pelo fornecedor” (THEODORO Jr., 2021, p. 9). O fornecedor deve disponibilizar informações verdadeiras e suficientes para que o consumidor saiba o que está adquirindo e que adquira o que realmente quer e não um produto diverso.

Muitos consideram que essa vulnerabilidade é integrante da técnica e não a consideram uma espécie autônoma. Realmente, como vimos, a diferença entre elas, apesar de existir, é muito tênue. Pelas lições de Almeida (2021, p. 131) temos que:

Quer a vulnerabilidade informacional seja considerada como modalidade autônoma de vulnerabilidade, quer como subespécie da vulnerabilidade fática ou até mesmo da técnica, o importante é deixar bem clara a sua relevância no mundo contemporâneo, em que o consumidor é constantemente persuadido em sua liberdade de opinião pelas técnicas agressivas da oferta e por ser o fornecedor o manipulador e conhecedor dessas informações, evidenciando uma relação completamente díspar e merecedora da proteção do mais frágil também no aspecto da informação.

Notamos que o essencial é entender que, no tocante à informação, o consumidor não está na mesma posição do fornecedor. O fato dela ser considerada uma espécie independente de vulnerabilidade ou dela estar inserida na vulnerabilidade fática ou técnica não se torna relevante, sendo apenas um detalhe quanto a sua classificação.

3 O CONSUMIDOR HIPERVULNERÁVEL

Vimos no capítulo anterior os detalhes sobre o conceito de vulnerabilidade, sua distinção da figura da hipossuficiência, além de conhecermos as diversas formas de manifestações da vulnerabilidade do consumidor. Esse capítulo será destinado à compreensão do instituto da hipervulnerabilidade. Iremos entender o seu conceito, quem nele se enquadra, e a proteção que é dada para esses consumidores que são considerados hipervulneráveis.

3.1 HIPERVULNERÁVEIS

Para começarmos a entender o conceito de hipervulneráveis devemos nos ater primeiramente a própria nomenclatura. A palavra hipervulnerável nos remete a uma condição de vulnerabilidade em grau superior ao habitual. E é nesse sentido as explicações de Almeida (2021, p. 131), que trazemos a seguir:

se já existe uma presunção legal de que os consumidores não profissionais são os vulneráveis da relação jurídica de consumo, foi identificada mais recentemente uma nova categoria de pessoas que se encontram na condição de hipervulneráveis, ou seja, aqueles cuja fragilidade se apresenta em maior grau de relevância ou de forma agravada.

A partir desse conceito conseguimos entender que realmente a hipervulnerabilidade consiste em uma condição de vulnerabilidade apresentada em um grau maior. Diferente da vulnerabilidade, que é requisito indispensável para a configuração de consumidor, a hipervulnerabilidade está presente só em uma parte dos consumidores que necessitam de uma proteção ainda mais atenta e específica em decorrência da sua situação.

Os próximos tópicos serão destinados a fixar quem são os consumidores que se enquadram no conceito de hipervulnerabilidade e qual é a proteção ofertada para eles pelo nosso ordenamento a fim de compensar essa fragilidade exacerbada.

3.2 QUEM SÃO?

A verificação dos consumidores que se enquadram no conceito de hipervulnerabilidade é questão que cabe à doutrina e à jurisprudência. No âmbito da doutrina, podemos começar a demonstrar os grupos de hipervulneráveis por intermédio da lista apresentada por Almeida (2021, p. 131) que apresenta os grupos dos seguintes consumidores como hipervulneráveis, sem descartar a presença de outros: gestantes, crianças, idosos, enfermos, portadores de necessidades especiais e analfabetos.

Seguindo nessa mesma linha, Bessa (2020, p. 87) conseguiu fazer um compilado de todos os grupos que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já consolidou como hipervulnerável, acompanhados do número do seu respectivo processo:

O Superior Tribunal de Justiça cunhou e utiliza o termo hipervulnerabilidade. A Corte já reconheceu sua presença em favor de crianças com relação a possível confusão de nomes em embalagens de produtos (REsp 1.188.105, 2013), pessoas com deficiência física (REsp 931.513, 2010), indígenas (REsp 1.064.009, 2011), pessoas com restrição ao glúten (celíacos) no tocante à informação e advertência nos produtos (REsp 586.316, 2009), pessoa com câncer no tocante a medicamentos que prometem a cura da doença (REsp 1.322.556, 2014).

Percebemos que há diferentes causas que fazem um consumidor ser hipervulnerável. Elas podem ser em virtude: da idade, nos casos de idosos e crianças; de condições de saúde, nos casos de pessoas com câncer, celíacas e enfermos em geral; pessoas com menos acesso à informação, como os índios e os analfabetos.

Mas, o que todas as causas possuem em comum é o fato de que elas provocam um desequilíbrio entre as partes na relação de consumo. Uma criança não tem entendimento o suficiente para entender os benefícios e malefícios de um brinquedo que passa em uma propaganda. Um celíaco não pode ser vítima de um produto que tem glúten, mas na embalagem fala que não.

Nesse sentido, mostramos a seguir o julgamento que considerou como abuso de direito uma propaganda enganosa do Cogumelo do Sol que prometia a cura do câncer:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PROPAGANDA ENGANOSA. COGUMELO DO SOL. CURA DO CÂNCER. ABUSO DE DIREITO. ART. 39, INCISO IV, DO CDC. HIPERVULNERABILIDADE. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANOS MORAIS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL COMPROVADO. 1. Cuida-se de ação por danos morais proposta por consumidor ludibriado por propaganda enganosa, em ofensa a direito subjetivo do consumidor de obter informações claras e precisas acerca de produto medicinal vendido pela recorrida e destinado à cura de doenças malignas, dentre outras funções. 2. O Código de Defesa do Consumidor assegura que a oferta e apresentação de produtos ou serviços propiciem informações corretas, claras, precisas e ostensivas a respeito de características, qualidades, garantia, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, além de vedar a publicidade enganosa e abusiva, que dispensa a demonstração do elemento subjetivo (dolo ou culpa) para sua configuração. 3. A propaganda enganosa, como atestado pelas instâncias ordinárias, tinha aptidão a induzir em erro o consumidor fragilizado, cuja conduta subsume-se à hipótese de estado de perigo (art. 156 do Código Civil). 4. A vulnerabilidade informacional agravada ou potencializada, denominada hipervulnerabilidade do consumidor, prevista no art. 39, IV, do CDC, deriva do manifesto desequilíbrio entre as partes. 5. O dano moral prescinde de prova e a responsabilidade de seu causador opera-se in re ipsa em virtude do desconforto, da aflição e dos transtornos suportados pelo consumidor. 6. Em virtude das especificidades fáticas da demanda, afigura-se razoável a fixação da verba indenizatória por danos morais no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais). 7. Recurso especial provido.

(STJ – REsp: 1329556 SP 2012/0124047-6, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 25/11/2014, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/12/2014, grifo nosso)

Diante de todo o exposto podemos observar que mesmo o consumidor não presente naquele rol apresentado, mas, que no caso concreto, possua um enorme desequilíbrio na sua relação poderá ser considerado como hipervulnerável. Uma vez considerado hipervulnerável, esse consumidor fará jus a todo o amparo legal que é ofertado para esse grupo e que será visto a seguir. 

3.3 PROTEÇÃO ESPECIAL

Vimos no início desse artigo que o CDC é resultado de um direito pós-moderno que veio para fazer com que as relações de consumo fossem dotadas de equilíbrio. Esse equilíbrio vinha sendo prejudicado devido a visível discrepância apresentada entre os fornecedores e consumidores nos contratos. O liberalismo contratual, presente no Código Civil, que era quem regia essas relações anteriormente, era uma das causas que acabavam por alimentar uma superioridade dos fornecedores nessa relação.

Com o CDC reconhecendo a vulnerabilidade do consumidor, um bom caminho já foi percorrido para fazer com que essa diferença de posição entre os sujeitos da relação de consumo acabasse. Porém, quando tratamos da hipervulnerabilidade, vimos que as pessoas que possuem essa condição se encontram em uma posição de desvantagem ainda mais expressiva do que os consumidores comuns.

Visando a proteção dos consumidores, encontramos o art. 39, IV, do CDC que disciplina ser considerado prática abusiva e, por isso, ser vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços” (BRASIL, 1990, p. 8).

O consumidor hipervulnerável está enquadrado nessas condições. No tópico anterior entendemos que entre os fatores que desencadeiam essa hipervulnerabilidade estão a idade, as condições de saúde e a dificuldade de acesso à informação. Sendo assim, o fornecedor que se utilizar da hipervulnerabilidade do consumidor se enquadra em uma espécie de prática abusiva.

Ao se configurar uma prática abusiva as consequências dessa conduta é a nulidade dos atos e a reparação dos danos ocasionados. Conforme as lições de Tartuce (2020, p. 4):

Além da consequente imputação civil para a reparação dos prejuízos suportados, o abuso de direito tem o condão de acarretar a nulidade dos atos e negócios correspondentes. Esse, aliás, é o espírito do art. 51 do CDC, ao consagrar o rol de cláusulas nulas por abusividade. A propósito, lembre-se de que, nos termos do art. 166, inc. II, do Código Civil, é nulo o negócio jurídico quando houver ilicitude do seu objeto, presente o ilícito nulificante, novamente na definição de Pontes de Miranda.

Notamos que a reparação do dano se baseia tanto no Código Civil como no Código de Defesa do Consumidor. Ela, obviamente, não acontece somente com consumidores hipervulneráveis. Porém, quando estamos diante de casos que envolvam esse tipo de consumidor ela será ainda mais fácil de ser identificada e necessária de ser coibida, conforme vemos no julgamento a seguir.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO REDIBITÓRIA C/C INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL – RELAÇÃO DE CONSUMO – ENTRAVES INDEVIDOS OPOSTOS À SOLICITAÇÃO DE ALTERAÇÃO CONTRATUAL – RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS INDEVIDAMENTE PELO CONSUMIDOR – MATÉRIA FÁTICA PRESUMIDA VERDADEIRA POR AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA – DANOS MORAIS CONFIGURADOS – DESCASO NO TRATO DE CONSUMIDORES HIPERVULNERÁVEIS – QUANTUM INDENIZATÓRIO – JUROS DE MORA – TERMO INCIAL – RELAÇÃO CONTRATUAL. Tendo sido presumida verdadeira a matéria fática alegada na inicial, por ausência de impugnação específica pela parte ré, o valor da restituição deve corresponder àquele indicado pela parte autora. A situação marcada pela criação de entraves indevidos ao pedido de alteração contratual formulado na via administrativa e que denota descaso no trato do consumidor, é causa inequívoca de dano moral, sobretudo, quando envolve consumidores hipervulneráveis. A indenização por danos morais deve ser arbitrada observando-se os critérios punitivo e compensatório da reparação, sem perder de vista a vedação ao enriquecimento sem causa e os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Consoante entendimento consolidado na jurisprudência do colendo Superior Tribunal de Justiça, em se tratando de relação contratual, a fluência dos juros de mora incidentes sobre o valor da indenização por danos tem como termo inicial a data da citação.

(TJ-MG – AC: 10000200727337001 MG, Relator: Mônica Libânio, Data de Julgamento: 01/09/2021, Câmaras Cíveis / 11ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 01/09/2021, grifo nosso)

Por meio desse julgado podemos compreender que a jurisprudência também protege os hipervulnerabilidade com um agravamento nas sanções relativas a condutas inapropriadas dos fornecedores. Esse agravamento ocorre justamente para tentar coibir a exploração dessa situação específica do consumidor que não poderá nunca ser vista e explorada como uma vantagem para o fornecedor.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho foi realizado para entender e assim conseguir explicar sobre o conceito da hipervulnerabilidade do consumidor. Para isso foi necessário primeiramente assimilar o conceito de vulnerabilidade, distinguindo-o do conceito de hipossuficiência.

Vimos que a vulnerabilidade é requisito indispensável para a configuração de uma relação de consumo. Essa relação tem uma disciplina mais favorável para o consumidor justamente por ele ser uma pessoa que possui uma posição de desvantagem na relação de consumo. Com isso, a proteção ao consumidor surge para realinhar os sujeitos da relação e os posicionarem de maneira paritária.

A vulnerabilidade pode ser classificada em quatro espécies, sendo elas: socioeconômica, jurídica, técnica e informacional. Cabe aqui pontuar que: atualmente a vulnerabilidade jurídica já vem sendo chamada de vulnerabilidade científica por abranger outras áreas do conhecimento além da jurídica; e a vulnerabilidade socioeconômica se trata de uma espécie coringa, se no caso concreto não for possível encaixar o consumidor em nenhuma das outras espécies ele se encaixará nela.

Com relação à hipossuficiência, vimos que ela, diferente da vulnerabilidade, não é elemento indispensável para se caracterizar uma relação de consumo. Na verdade, a caracterização de um consumidor hipossuficiente acarretará na obtenção de alguns benefícios para ele no decorrer do processo para compensar a sua condição.

Após fazer essa diferenciação conseguimos chegar no ponto principal do trabalho que é a condição de hipervulnerabilidade. O próprio nome já nos antecipa que o instituto se trata de uma condição de vulnerabilidade ainda maior do que o que deve estar presente para se configurar a relação de consumo. O que nos leva a entender que, assim como a hipossuficiência, a hipervulnerabilidade não está presente em todos os consumidores.

Os consumidores hipervulneráveis não estão definidos em um conceito fechado e podem surgir mais algum grupo que se encaixe nessa condição. Porém, conseguimos notar que entre os fatores que desencadeiam a hipervulnerabilidade estão: idade, condições de saúde e dificuldade de acesso à informação. Por isso, entre os grupos que já foram considerados hipervulneráveis estão: gestantes, crianças, idosos, enfermos, portadores de necessidades especiais, analfabetos e indígenas.

Para compensar essa situação de vulnerabilidade acentuada o CDC prevê como prática abusiva se prevalecer de fraqueza ou ignorância do consumidor, se aproveitando da sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para forçá-lo produtos ou serviços. Com isso, os atos decorrentes dessa prática serão considerados nulos e a deverá ser feito a reparação dos danos ocasionados.

Vale destacar, que por se tratar de consumidores hipervulneráveis, as decisões de reparação tendem a ser ainda mais fáceis de serem reconhecidas e sua aplicação é mais rigorosa por não se permitir o uso de uma situação de fragilidade do consumidor para se beneficiar indevidamente.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, F.B. Direito do Consumidor Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2021. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555592788/>. Acesso em: 10 ago. 2021.

BESSA, L. R. Código de Defesa do Consumidor Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2020. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530992132/>. Acesso em: 10 ago. 2021.

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[1] Graduada em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa.

[2] Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais; Mestrado em Direito; Pós-Graduação em Direito do Consumidor; Pós-Graduação em Direito da Criança, Juventude e Idosos; Pós-Graduação em Direito Educacional; Pós-Graduação em Direito Eletrônico; Pós-Graduação em Direito Civil, Processo Civil e Direito do Consumidor pela UNIASSELVI – Centro Universitário Leonardo da Vinci – ICPG – Instituto Catarinense de Pós Graduação; Pós-Graduação em Direito de Família; Pós-Graduação em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela ESA-PB – Escola Superior da Advocacia da Paraíba – Faculdade Maurício de Nassau; Pós-Graduação em Direito Ambiental pelo Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ; Pós-Graduação em Tutoria em Educação à Distância e Docência do Ensino Superior; Advogado; Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado da Paraíba; Coordenador Pedagógico e Professor do Departamento de Pós-Graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado da Paraíba; Professor convidado da Escola Nacional de Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça; Professor do Curso de Graduação em Direito no Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ; Membro Coordenador Editorial de Livros Jurídicos da Editora Edijur (São Paulo); Membro Diretor Geral e Editorial da Revista Científica Jurídica Scientia et Ratio; Membro Diretor Geral e Editorial da Revista Brasileira de Direito do Consumidor; Membro Diretor Geral e Editorial da Revista Brasileira de Direito e Processo Civil; Membro Diretor Geral e Editorial da Revista Brasileira de Direito Imobiliário; Membro Diretor Geral e Editorial da Revista Brasileira de Direito Penal; Membro Diretor Geral e Editorial da Revista Científica Jurídica Cognitio Juris, ISSN 2236-3009, www.cognitiojuris.com; Membro Coordenador Editorial da Revista Ciência Jurídica, ISSN 2318-1354; Membro do Conselho Editorial da Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, ISSN 2237-1168; Autor de livros e artigos jurídicos.