AUTONOMIA DA PACIENTE E LIBERDADE PROFISSIONAL DURANTE O TRABALHO DE PARTO

AUTONOMIA DA PACIENTE E LIBERDADE PROFISSIONAL DURANTE O TRABALHO DE PARTO

31 de julho de 2023 Off Por Cognitio Juris

PATIENT AUTONOMY AND PROFESSIONAL FREEDOM DURING LABOR

Artigo submetido em 12 de julho de 2023
Artigo aprovado em 18 de julho de 2023
Artigo publicado em 31 de julho de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 48 – Julho de 2023
ISSN 2236-3009

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Autor:
Luiz Cordeiro Mergulhão Silva[1]
Joseval Martins Viana[2]

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Resumo: O presente artigo tem por objetivo realizar uma análise sobre os direitos da parturiente à informação e à autonomia durante o trabalho de parto, mas de forma a não perder de vista a liberdade profissional dos especialistas em saúde, ante sua competência técnico-científica. Visa, portanto, apresentar e analisar a solução preventiva para a dicotomia autonomia do paciente–liberdade profissional já existente no ordenamento jurídico brasileiro de modo a superar as dificuldades que são encontradas no exercício efetivo dos direitos das gestantes. Bem como situar os profissionais acerca da legislação atinente às escolhas das parturientes quanto à via e mesmo local de parto.

Palavras-Chave: Autonomia do Paciente. Direito a Informação. Liberdade profissional. Biodireito. Bioética. Parto humanizado. Cesárea. Parto Domiciliar. Doulagem.

Abstract: The present article aims to conduct an analysis of the rights of the parturient to information and autonomy during labor, while also considering the professional freedom of healthcare specialists in light of their technical and scientific competence. Therefore, it seeks to present and analyze the preventive solution to the existing dichotomy between patient autonomy and professional freedom within the Brazilian legal framework, in order to overcome the challenges faced in the effective exercise of the rights of pregnant women. Additionally, it aims to provide healthcare professionals with an understanding of the legislation related to the choices made by parturients regarding the mode and even the location of childbirth.

Keywords: Patient Autonomy. Right to Information. Professional freedom. Bioright. Bioethics. Humanized parturition. Cesarean. Home parturition. Doulage.

INTRODUÇÃO

O Brasil possui um índice de 88% de cesarianas na saúde suplementar e de 46% na rede pública.[3] Para algumas pessoas essa informação não assusta, já que, sendo o parto natural algo tão doloroso, nada mais justo que libertar a mulher dessa forma arcaica e insegura de dar à luz, produto de uma imposição machista de religiosos que interpretam literalmente – como os críticos –, o texto de Gênesis 3:16: “com dor parirás teus filhos”.[4]

A cesárea, portanto, seria não só a alternativa moderna como a única maneira eficaz de evitar as dores e complicações clínicas do parto, tanto para as mulheres como para os nascituros, devendo então seu acesso ser propagado e defendido como direito fundamental na rede pública de saúde, assim como já o é (conforme os números) na rede privada.

Mas, ao verificarmos as recomendações da OMS surge a primeira dúvida séria à essa mentalidade. De fato, ao adentrarmos na seção sobre taxas de cesárea do sítio virtual da Organização Mundial da Saúde nos deparamos com a seguinte informação:

“Desde 1985, a comunidade médica internacional considera que a taxa ideal de cesárea seria entre 10% e 15%. Porém as cesáreas vêm se tornando cada vez mais frequentes tanto nos países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento. Quando realizadas por motivos médicos, as cesarianas podem reduzir a mortalidade e morbidade materna e perinatal. Porém não existem evidências de que fazer cesáreas em mulheres ou bebês que não necessitem dessa cirurgia traga benefícios. Assim como qualquer cirurgia, uma cesárea acarreta riscos imediatos e a longo prazo. Esses riscos podem se estender muitos anos depois de o parto ter ocorrido e afetar a saúde da mulher e do seu filho, podendo também comprometer futuras gestações. Esses riscos são maiores em mulheres com acesso limitado a cuidados obstétricos adequados.”[5]

Conforme os especialistas da área da saúde não há evidências científicas sobre os benefícios de uma cesárea eletiva, antes, sendo a cesárea uma cirurgia ela envolve riscos, há possibilidades de danos à saúde da mulher e do recém-nascido.

Na tentativa de ir ao encontro das recomendações da OMS o Brasil instituiu uma Política Pública de Humanização do Parto através de portarias do Ministério da Saúde (citamos entre outras a Portaria 569/2000 e a Portaria 572/2000), que estabelece formas de priorização do parto natural no SUS e políticas de remuneração mais vantajosa ao parto vaginal na rede privada.

Contudo, os profissionais de saúde brasileiros ainda estão presos ao modelo hospitalocêntrico, iniciado nos anos 40, que os leva à uma posição autoritária e vertical na relação com os pacientes, em especial com as parturientes, de forma que mesmo a política de humanização do parto muitas vezes apresenta o parto normal no SUS como mais uma das inúmeras imposições médicas que, ao invés de garantir melhor atendimento e restaurar o protagonismo da parturiente, agrava a questão de cerceamento da autonomia, ressaltando a imagem de que a opção indiscriminada pela cesárea seria a única solução para o término da violência obstétrica na rede pública.

De outro lado, na rede privada, muitas mulheres com maior acesso à informação têm manifestado a escolha pelo parto vaginal e encontrado obstáculos à realização de sua vontade por parte da equipe médica.

Diante deste quadro de descontentamento com os serviços prestados pelos profissionais de saúde, seja na rede pública, seja na rede privada, onde o denominador comum é o desrespeito à autonomia da parturiente, muitas gestantes em melhores condições socioeconômicas, e melhor informadas, têm não só optado por realizar seu parto em casas especializadas em parto vaginal, como até mesmo optado por parir na própria residência, com assistência de uma doula ou enfermeira obstétrica e não de médicos.[6]

Tais decisões, entretanto, não são tomadas somente porque a medicina tem evidenciado que a prática indiscriminada de cesáreas pode causar complicações para a saúde da mulher e das crianças nascidas por meio de intervenção cirúrgica, mas porque desta forma a mulher se sente protagonista do próprio parto, sentimento reforçado com o parto ambientado no próprio lar em companhia do familiar, que dificilmente teria acesso à sala de parto em um hospital.

Entretanto, a falta de informação, tanto sobre os aspectos clínicos do parto dito natural, quanto, principalmente, dos direitos da parturiente, ainda leva a maioria a desejar a cesárea, ou simplesmente aceitar passivamente os ditames do obstetra para qualquer procedimento apresentado no momento do parto (uso de fórceps, episiotomia, contenção de membros, etc). E onde não há ignorância sobre os direitos e os aspectos clínicos surge o conflito entre a gestante e os profissionais da saúde.

Isto pois, nos leva a, ademais da vontade da parturiente, incluir na equação a liberdade do profissional, habilitado que está tecnicamente para apresentar diagnósticos e prognósticos, bem como prestar os auxílios de forma adequada à parturiente.

Com o presente trabalho visamos conceituar o Parto Humanizado corretamente, identificar quais princípios jurídicos devem nortear a atuação dos profissionais de saúde, além de colaborar com uma maior divulgação informativa dos direitos da gestante, com seus possíveis limites, de modo que a devida orientação aos profissionais da saúde e parturientes possa servir para a harmonização das escolhas, evitando assim que o momento do parto, único para os emocionalmente envolvidos, venha a se tornar o dissabor de um conflito judicial em razão de algum dano, mesmo que somente moral, perpetrado pela equipe.

Não cabe, é claro, neste artigo discutir o mérito clínico e eficácia das opções e técnicas de parto, e se nos preocupamos em citar conceitos de medicina e enfermagem é para utilizar-se dessas definições para adequadamente tratar as implicações jurídicas do tema, pois desenvolvê-lo de forma diversa seria tratar as leis e regulamentações de modo desconexo com as realidades que elas pretendem normatizar.

1 CONCEITO DE PARTO HUMANIZADO

O Parto Humanizado pode ser definido clinicamente como modelo opositor ao modelo hospitalocêntrico de atenção ao parto e ao nascimento, que propõe mudanças baseadas no

“incentivo ao parto vaginal, ao aleitamento materno no pós-parto imediato, ao alojamento conjunto (mãe e recém-nascido), à presença do pai ou outro acompanhante no processo do parto, à atuação de enfermeiras obstétricas na atenção aos partos normais e, também, à inclusão de parteiras leigas no sistema de saúde nas regiões nas quais a rede hospitalar não se faz presente. Recomenda, também, a modificação de rotinas hospitalares consideradas como desnecessárias e geradoras de risco, custos adicionais e excessivamente intervencionistas no que tange ao parto, como episiotomia, amniotomia, enteróclise (enema), tricotomia e, particularmente, parto cirúrgico tipo fórceps ou cesáreas.”[7]

A Organização Mundial da Saúde ressalta ainda que para realização do Parto Humanizado se deve respeitar os seguintes direitos da parturiente:

“estar acompanhada durante o trabalho de parto e o parto por alguém de sua escolha; ser informada pelos profissionais sobre os procedimentos que serão realizados com ela e o bebê; adotar a posição que desejar no momento da expulsão; caminhar e fazer movimentos durante o trabalho de parto; receber líquidos e alimentos durante o trabalho de parto, sem excessos; receber massagens ou outras técnicas relaxantes; utilizar roupas confortáveis durante o trabalho de parto; tomar banhos mornos; receber o bebê para mamar imediatamente após o parto; ser chamada pelo nome e conhecer a identidade dos profissionais que a estão atendendo.”[8]

Não se trata, então, de um mero naturalismo radical absolutamente contrário à intervenção médico-cirúrgica, que imponha a via vaginal como único método eficaz para a parturição, mas de estabelecer protocolos médicos que respeitem autonomia, e a integridade física e moral da gestante, tentando diminuir as intervenções desnecessárias e que possam causar dano, mesmo moral, ao recém-nascido e à parturiente, como bem coloca Fernanda Maria de Jesus S. Pires Moura:

“humanizar o parto é dar liberdade de escolhas à mulher e prestar atendimento focado em suas necessidades.”[9]

Contudo, muitas vezes médicos e enfermeiros obstétricos, por sua formação tecnicista e tecnocrática, podem agir em desrespeito a esses direitos, de duas formas, conforme o tipo de protocolo que estejam seguindo.

Em hospitais pertencentes à planos de saúde e clínicas particulares a equipe médica pode se opor ao parto vaginal por enxergá-lo como inseguro para a gestante, ou mesmo quando o aceita, termina por praticar medicalizações e intervenções muitas vezes desnecessárias, ou contrárias à vontade da gestante, como aplicação de ocitocina, ou realização de episiotomia.

Por outro lado, na rede pública, a equipe médica intenta, sem a devida atenção aos direitos da paciente, ou mesmo o preparo pré-natal adequado, a realização exauriente de um parto vaginal, quase que sob coação, em ambiente pouco acolhedor, para somente após longo sofrimento, cansaço e insucesso, intervir com uma cesárea, apesar dos apelos constantes da parturiente, tornando a experiência traumatizante.

Diante destas duas realidades, só podemos concluir, com o médico-obstetra Ricardo Jones:

“que sem a devolução do protagonismo para a mulher não existe humanização do nascimento. Enquanto elas não puderem escolher livremente a posição para parir, sua companhia, o local, sua roupa, suas tradições e suas inúmeras vontades, apenas estará sendo reproduzida uma história de abusos e interferências desnecessárias, que não procede num mundo que se propõe democrático e igualitário”.[10]

Mas como conciliar e harmonizar os direitos da parturiente com a liberdade profissional e os protocolos científicos a que os médicos e enfermeiros devem se submeter para atender eficazmente sua paciente? O que o médico deve fazer diante da escolha pela cesárea se a própria OMS não recomenda a prática indiscriminada? O que fazer diante da escolha pelo parto vaginal se as evidências clínicas do caso concreto indicam a necessidade de uma cesárea?

Diante deste conflito aparente entre deveres dos profissionais de saúde e direitos da paciente, onde a liberdade profissional e a autonomia da parturiente se chocam, a única saída para evitar a apropriação indevida do corpo da gestante, a chamada violência obstétrica, é o conhecimento e a aplicação dos princípios ético-jurídicos que normatizam a atuação de todos os profissionais da saúde, bem como as ferramentas jurídicas à disposição dos profissionais.

2 AUTONOMIA DA PARTURIENTE E LIBERDADE PROFISSIONAL

No contexto dos cuidados e atendimentos médico-hospitalares à mulher gestante e parturiente

“historicamente, as decisões acerca da saúde da mulher estiveram fundamentadas nos sistemas paternalistas da assistência à saúde, nos quais os prestadores do cuidado decidem pelos pacientes.”[11]

Essa conduta, porém, se dá com violação ao Princípio da Autonomia do Paciente tal qual é insculpido nos artigos 15 do Código Civil, e artigos 22 e 31 do Código de Ética Médica, em decorrência do qual, uma vez que o paciente tem direito de escolher ser submetido ou não a determinado tratamento, tem também a mulher direito de optar pela via, e demais procedimentos realizados em torno do parto, pois se:

“A cesárea e o parto natural são as alternativas disponíveis (…), infere-se que a gestante tenha o direito de analisar os riscos e benefícios para livremente optar.”[12]

É o que também observa o jurista português Jorge Rosa de Castro ao tratar da imposição de métodos à parturiente por parte dos profissionais de saúde:

“a equipa médica, na lógica operatividade do princípio bioético da autodeterminação da grávida, não pode impor-lhe o seu standard of care, sob pena até de poder estar a cometer um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários.”[13]

Contudo essa Autonomia da Paciente parece conflitar diretamente com a Liberdade Profissional, que é um dos princípios fundamentais da atividade médica, conforme o inciso XVI do Capítulo I do Código de Ética Médica:

“Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.”

Problema pontuado pelo mesmo jurista em sequência:

“Todavia, entendo também que a grávida não pode exigir que o parto seja feito nas suas condições: não pode a equipa médica ser obrigada a violentar a consciência profissional dos seus elementos, omitindo procedimentos que têm por necessários ou fazendo outros que consideram inúteis ou prejudiciais, seja à grávida, ao feto ou a ambos. É que a obrigação de diligência que o médico assume para com os pacientes tem sempre por pressuposto que a possa cumprir de acordo com a sua boa consciência médica.”13

Assim sendo, se profissional de saúde tem liberdade para atuar apenas dentro da margem do consentimento dado pela parturiente, não intervindo naquilo que a grávida não consente, estaria privando sua paciente do atendimento que considera clinicamente mais adequado e indiretamente contribuindo para um agravamento da saúde tanto dela quanto do nascituro.

Como bem observa Genival Veloso de França:

“A licitude de um ato médico está na sua inquestionável necessidade e não na dependência da vontade de uma pessoa.”

Então, este conflito de normas se dá, aparentemente, não só entre a autonomia e a liberdade do profissional, como também com relação aos demais princípios do exercício da medicina, quais sejam: a não-maleficência, beneficência e justiça (distribuição dos riscos na escolha do tratamento).

Entretanto, é necessário frisar que o Direito à Autonomia não tem o condão de opor-se à técnica profissional ou desmerecer a formação científica de médicos e enfermeiros, nem de fazer com que o médico simplesmente obedeça aos ditames do paciente, e sim garantir que a atuação dos profissionais de saúde será exercida de forma ética e sem arbitrariedades, incluindo a parturiente no processo decisório de acordo com as opções que o caso concreto apresenta, ou seja, em consonância com todos os demais princípios éticos da medicina.

Então, como efetivamente evitar que ocorra este conflito entre a vontade da mulher e a liberdade do profissional? Como incluí-la no processo decisório, vez que ela não possui os conhecimentos técnicos? O que fazer quando a mulher deseja um procedimento e o médico percebe claramente que ele causará danos (o que fere o princípio da não maleficência)? Ou que o tratamento desejado será inócuo (ferindo o princípio da beneficência)? Ou simplesmente que importará num risco desnecessário em proporção ao bem desejado (o que fere o princípio da justiça)?

Ora, dentro do que realmente se conceitua como um Parto Humanizado, as intervenções médico-cirúrgicas têm um papel a desempenhar justamente por não serem apresentadas como única via possível, nem como escolhas arbitrárias dos profissionais.

Podemos dizer que isto se deve à observância rigorosa de outro dever ético, o Dever de Informação, que conduz à harmonização entre médico e paciente.

3 DIREITO À INFORMAÇÃO E O PRINCÍPIO DA HARMONIZAÇÃO

Primordial para o Parto Humanizado é o Direito à Informação da gestante, que se traduz em um Dever ao médico e demais profissionais da saúde.

Sendo a prática da medicina, legalmente considerada, um dever contratual, e nos casos de Saúde Suplementar, protegido pelo Código de Defesa do Consumidor, tem o médico por força de Lei (artigo 123, inciso III do Código Civil, e artigo 6º, inciso III do Código de Defesa do Consumidor) e do Código de Ética Médica (artigo 34 do Código de Ética Médica), o dever de informar devidamente a sua paciente acerca dos procedimentos cabíveis ao seu estado de saúde concreto, de quais ela tem direito de escolher, e quais são os riscos que cada um possa acarretar.

Ademais, o Conselho Federal de Medicina considera, através da Recomendação 1/2016, que

“receber esclarecimento e informação adequados é direito fundamental do paciente, estabelecido no mesmo patamar hierárquico da liberdade, da igualdade e da dignidade humanas.”

Bem como o Conselho Nacional de Saúde, através da Resolução 553/2017, estabelece como uma de suas diretrizes que o paciente, quer em atendimento na rede de saúde privada, quer na rede de saúde pública, receba:

“a informação a respeito de diferentes possibilidades terapêuticas de acordo com sua condição clínica, baseado em evidências e a relação custo-benefício da escolha de tratamentos, com direito à recusa, atestado pelo usuário ou acompanhante.”

Entretanto, alguns estudos da área de enfermagem demonstram que o desconhecimento sobre os direitos da parturiente parte muitas vezes da própria equipe médica e acarretam violações que apenas tardiamente são percebidas pelas vítimas.[14]

As mesmas pesquisas demonstram que apesar de desconhecer as normas garantidoras de seus direitos as parturientes vivenciam sensações de sofrimento moral que acarretam danos, o que evidentemente as faz buscar por si mesmas as informações de que necessitavam antes, e uma vez conscientizadas a posteriori as chances de conflito judicial aumentam devido à frustração.

Deste modo podemos notar que a informação corretamente transmitida para a parturiente auxilia enormemente na harmonização e estabelecimento da confiança na relação médico-paciente, o que evitará dissabores futuros, especialmente se o médico, observando as necessidades clínicas do caso concreto, ajudar a paciente a concluir por si mesma como elaborar seu plano de parto em adequação aos prognósticos médicos.

Portanto, a abordagem correta e conforme ao princípio da Informação desde o pré-natal auxiliaria a paciente a se conscientizar dos eventuais limites do próprio corpo e do corpo do nascituro (quer seja com relação ao parto vaginal, quer seja quando à intervenções cirúrgicas), e escolher opções razoáveis ao seu caso concreto, de modo tal que, mesmo se o trabalho de parto culminar em uma intervenção médico-cirúrgica este não estaria excluído do conceito de Parto Humanizado, haja vista que, graças à observância do dever de informação, a autonomia da paciente foi respeitada, e se harmonizou com a liberdade profissional e demais preceitos éticos da medicina.

Importante frisar que tais informações devem englobar não apenas uma descrição dos procedimentos a serem adotados, mas também os direitos relacionados a esses procedimentos e ao tratamento médico-hospitalar como um todo, quais sejam, o Direito à Autonomia, ou seja, o direito de recusar determinados procedimentos e não ser submetida a tratamento contra a própria vontade, preconizado pelo artigo 15 do Código Civil e pelos artigos 22 e 31 do Código de Ética Médica; o direito de ter um acompanhante consigo durante o pré-parto, parto, e pós-parto, conforme dita a Lei 11.108 de 2005; e o direito a um tratamento respeitoso e ético por parte da equipe médica, preconizados na garantia de preservação à sua intimidade e honra nos ditames do artigo 5º, inciso X da Constituição, direito que se traduz pela diminuição de toques íntimos desnecessários e ausência de comentários desrespeitosos para com a dor do parto e as necessidades fisiológicas da gestante.

Ou seja, a observância do Dever de Informação, auxilia a impedir o conflito entre a Autonomia da Paciente e a Liberdade Profissional, já que uma vez conscientizada dos próprios limites fisiológicos a mulher optará racionalmente por alternativas indicadas pelo médico, confiando que as escolhas apresentadas por ele são as melhores opções clínicas ao seu caso concreto.

Em síntese parte-se do pressuposto de que a parturiente, ainda que não possua conhecimento técnico-científico, como os profissionais de saúde, tem esta falta conhecimento devidamente suprida pelas informações corretamente fornecidas pelos profissionais que a assistem. Desta forma suas escolhas são feitas de modo informado e esclarecido, ou seja, com a devida consciência acerca de riscos e consequências caso opte por não realizar procedimento recomendado, ou realizar procedimento que tenha menos possibilidade de sucesso.

4 TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO E PLANO DE PARTO

O consentimento do paciente, deve ser manifestado aos profissionais de saúde durante todo procedimento médico-hospitalar. Normalmente, para os fins previstos no artigo 15 do Código Civil e nos artigos 22 e 31 do Código de Ética Médica, é suficiente que ele seja dado de forma verbal aos médicos e enfermeiros, e registrado em prontuário e anotações da enfermagem.

Contudo, procedimentos de maior complexidade, que exijam invasão e acarretem maiores riscos, necessitam de uma materialização mais formal, ou seja, a assinatura de um Termo de Consentimento Informado (que difere do Consentimento Livre e Esclarecido exigido para pesquisas e experimentos médico-científicos, sobe o qual não discorreremos).

Longe de ser um mero entrave burocrático regulado pelo Conselho Federal de Medicina, este documento comprova materialmente que o paciente foi não só devidamente informado acerca dos riscos acarretados pelo procedimento, como também sobre as alternativas de tratamento, e, portanto, sua escolha foi devidamente embasada pelo auxílio prestado pelo profissional médico.

Como bem pontua Genival Veloso França:

“este documento apresenta-se como um guia especialmente elaborado para auxiliar os médicos em sua nobre missão de agir, com o máximo de atenção e zelo, em benefício de seus pacientes.”[15]

Daí vê-se a importância de que o médico redija o termo de acordo com as necessidades individuais de cada paciente, considerando que cada pessoa apresenta, devido seu nível social e de formação acadêmica, um grau diverso de dificuldade para compreender as informações fornecidas pelos profissionais de saúde. É, portanto, completamente irregular a impressão de um modelo padrão para todos os casos semelhantes.

Aplicado ao caso concreto do parto, fica evidente que a redação e assinatura do Termo de Consentimento somente se dará em caso de cesárea, ou outra intervenção mais invasiva. Mas, caso a cesárea, ou episiotomia, ou outro procedimento se dê em meio a uma emergência ou urgência, onde não é possível obter a assinatura, ou sequer o consentimento verbal da parturiente?

No caso de intercorrências no parto que necessitem de intervenções mais simples, e a paciente esteja plenamente consciente, é fácil obter um consentimento verbal e anotá-lo no prontuário e nas anotações de enfermagem. Mas em casos de emergências mais graves, onde a paciente sequer esteja consciente, ou mesmo consciente, seria inviável pensar em burocracias para enfim realizar um procedimento que a salve?

Nestes casos é evidente que a atuação do médico estará escudada pela ressalva dada pelo próprio artigo 22 do Código de Ética Médica que comina a obrigação de respeitar a vontade e obter consentimento escrito do paciente “salvo em caso de iminente risco de morte”.

Entretanto, não é tão simples. A parturiente, mesmo no caso em que esteve totalmente consciente, pode alegar posteriormente que foi impelida a aceitar o procedimento ditado pelo profissional devido à violenta emoção da parturição, ou que foi coagida pelo medo inculcado infundadamente, e ao esquadrinhar seu prontuário (a que tem direito de acesso), poderia, com auxílio da opinião de outro profissional, descobrir que era cabível uma manobra menos invasiva, e em ato de revolta pessoal ingressar com um litígio judicial contra o seu obstetra.

Novamente estamos diante da questão do conflito da liberdade profissional com a autonomia do paciente, com o agravante de colocar o médico na encruzilhada de precisar escolher entre cometer uma infração ética e civil, ou incorrer em crime de omissão de socorro.

Por este motivo dissemina-se a ideia, ainda pouco popular, de elaborar o Testamento Vital, documento reconhecido em cartório de registro civil ou de notas, onde o paciente pré-ordena a manifestação de sua vontade para os casos de emergências e urgências, avisando, assim formalmente, ao profissional de saúde a quais procedimentos não permite ser submetido, ainda que esteja em risco sua vida. Com a exibição de tal documento tanto o paciente tem sua autonomia preservada durante emergências e urgências, quanto o médico se exime de incorrer em omissão de socorro por não praticar manobra ou procedimento que, por mais que visse como eficaz, o paciente não permitiria caso estivesse plenamente consciente.

Semelhante à ideia de Testamento Vital, contudo mais popular, é a elaboração do Plano de Parto. Um documento menos formal, visto que elaborado pela gestante e seu obstetra, mas, em caso de ausência de Testamento Vital que verse especificamente sobre situação de emergência durante o parto, com os mesmos efeitos jurídicos apesar de não haver registro ou reconhecimento notarial.

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia em conjunto com a Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Rio Grande do Sul o definiu como:

“um plano de orientação à paciente sobre a evolução do trabalho de parto e as possíveis medidas que podem se tornar necessárias para dar segurança ao parto. Não deve ser utilizado como um cardápio de escolhas simples. Deve ser elaborado pela gestante com a orientação do obstetra como objetivo almejável, sendo prestados esclarecimentos quanto às eventuais limitações e impossibilidades.”[16]

O Plano de Parto, então, reveste-se de todas as formalidades ético-jurídicas para o fim de delimitar a atuação do médico que assiste o parto e preservar a autonomia da parturiente: é elaborado de modo harmônico pela paciente e pelo médico; a parturiente manifesta suas escolhas de acordo com as informações fornecidas pelos profissionais de saúde; as possíveis intercorrências são expostas e avaliadas pelos profissionais e pela paciente; apresentam-se opções de manobras e procedimentos clínicos que se realizarão no parto de modo que, na eventualidade de ocorrerem, a parturiente já terá previamente manifestado seu consentimento ou dissentimento sobre sua realização.

Portanto, elaborar e seguir à risca o Plano de Parto, juridicamente isenta a atuação do profissional do enquadramento em omissão de socorro, e oferece à parturiente segurança de que não terá sua autonomia violada, de modo que seria interessante torna-lo legalmente revestido das formalidades do Testamento Vital, haja vista que a tendência da FREBASGO é rejeitar a vinculação do profissional ao Plano, especialmente em caso de emergência atendida por médico diferente do que assistiu a gestante em seu pré-natal.[17]

5 O DIREITO AO ACOMPANHANTE

Como vimos acima a elaboração de um Plano de Parto, assim como um Testamento Vital, pré-ordena o consentimento ou dissentimento da gestante diante das intercorrências, e mesmo diante de emergências ou urgências. Mas, como garantir que na ausência de um Plano de Parto, ou na possibilidade de haver uma intercorrência não prevista nele, a opção apresentada pelo médico foi aceita livremente pela gestante? Visto que a assinatura de um Termo de Consentimento Informado obtida em meio aos estertores da parturição, das violentas emoções e ansiedades provocadas pela expectação, poderia ser contestada a posteriori, caso a parturiente se sinta lesada, por uma episiotomia que se viu obrigada a aceitar, por exemplo.

Outrossim, as próprias sensações vivenciadas durante o parto, somadas à estar em ambiente estranho (sala de parto), em meio à pessoas de quem não se é íntimo (equipe médica), por si só já provocam fragilização e insegurança emocional e psicológica.

Segundo Diego Rodrigues, considerando que a mulher vivencia

“sensações de insegurança e ansiedade diante da nova realidade que se aproxima, fragilizando-a e colocando-a em situação de vulnerabilidade emocional, fato que intensifica a necessidade da presença de uma pessoa de sua relação de companheirismo, atenção e afetividade.”

Para resolver então, este duplo dilema, quer do ponto de vista da necessidade da gestante, quer da segurança jurídica quanto ao consentimento obtido pelo médico, a legislação consolidou o direito ao acompanhante com a Lei 11.108 de 2005.

Sim, pois embora o legislador tenha pensado primariamente em prover amparo psicológico à parturiente durante este momento de extrema delicadeza que é a hora do parto, forneceu também um garante da autonomia da gestante, que dá também segurança jurídica ao médico e demais profissionais da saúde.

Podemos assim interpretar tendo em vista que a presença do acompanhante transmite à mulher a segurança psicológica de que sua autonomia será defendida por este caso necessário, bem como, diminui o reflexo de emoções negativas, como medo e insegurança, que a levaria tomar decisões que tardiamente interpretaria como precipitadas.

Assim sendo, os profissionais da saúde podem ser auxiliados pelo acompanhante na obtenção do consentimento para alguma manobra ou técnica imprevista a que a gestante se oponha por algum temor, e também, mediante o testemunho do acompanhante, ter segurança de que o consentimento desta não está eivado de algum vício devido à violenta emoção.

Contudo, infelizmente, muitos profissionais de saúde e hospitais têm visto o acompanhante como um intruso, quando não vedam a sua presença na sala de parto.

Por outro lado, apenas a presença do acompanhante não basta. É necessário que este conheça os direitos da gestante e a tenha acompanhado durante o seu pré-natal para que entenda os procedimentos que serão realizados e possa ser um verdadeiro apoio para parturiente à hora de vivenciá-los, e não um mero expectador passivo.

6 A ATUAÇÃO DA DOULA

As doulas, segundo a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) do Ministério do Trabalho, são profissionais que

“visam prestar suporte contínuo a gestante no ciclo gravídico puerperal, favorecendo a evolução do parto e bem-estar da gestante.”[18]

Assim sendo, não se confunde a doulagem com o serviço das parteiras leigas, regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 8.778/1946, pois a doula não atua no processo de parto em si, mas em torno da evolução do parto visando auxiliar a gestante com a manutenção de um ambiente de parto tranquilo e saudável, a encontrar posição de parto confortável, usar técnicas de relaxamento para diminuir as dores do parto, bem como outras técnicas naturais de diminuição da dor, e auxílio com o progresso da parturição.

Mas, além deste reconhecimento como atividade econômica, inexiste qualquer regulamentação à profissão no país, o que faz com que muitos profissionais da saúde as enxerguem com desconfiança.

Alguns municípios, como São Paulo, através da Lei Municipal 16.602/2016 de São Paulo, e Ribeirão Preto, através da Lei Municipal n° 14.444/2020, e mesmo alguns Estados, como Santa Catarina através da Lei 16.869/2016, têm promulgado normas cominando aos hospitais a obrigação de admitir entrada de uma doula na sala de parto sem prejuízo do direito ao acompanhante, e até mesmo tramita projeto de Lei Federal (PL 376/2019) dispondo sobre a mesma matéria.

A passos mais lentos têm tramitado iniciativas de regulamentar e formalizar definitivamente a profissão.

Dentre estes, o que aparenta ser mais promissor é o Projeto de Lei Federal n.º 8.363/2017, que em seu artigo 2º, descreve a doula como:

“profissional habilitada em curso para esse fim que oferece apoio físico, informacional e emocional à pessoa durante seu ciclo gravídico puerperal e, especialmente, durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, através de suporte contínuo, visando uma melhor evolução desse processo e o bem-estar da parturiente, ressalvando o disposto da Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, código 3221–35.”

E continua em seus incisos descrevendo pormenorizadamente as atividades para as quais essa profissional está habilitada.

Ainda que com ressalvas, devido à falta de regulamentação da profissão, inexiste oposição da FEBRASGO aos projetos de lei e às leis que obrigam hospitais a admitir presença de doula.

Contudo, nos parece que estes entes federativos se precipitaram de forma equivocada com esses projetos de lei, posto que, embora o hospital esteja obrigado a permitir sua presença na sala de parto, a falta de regulamentação da profissão e de uma forma de certificação da competência profissional da doula coloca os médicos e enfermeiros diante de um dilema ético-disciplinar consistente na omissão (art. 1º, 7º e 33 do Código de Ética Médica, e 113 do Código de Ética da Enfermagem) caracterizada em entregar sua paciente aos cuidados de pessoa não-qualificada, ainda que a atuação dessa pessoa seja relativo somente à realização de manobras para favorecimento da progressão do trabalho de parto. É, a nosso ver, temerário obrigar o hospital e seus profissionais a esse constrangimento antes de regulamentar satisfatória e minimamente a doulagem.

Entretanto, como observa Petrucce:

“a presença das doulas pode ser uma excelente estratégia de suporte na redução das taxas de cesariana no país e o suporte contínuo por elas deve não somente ser permitido, mas incentivado pelos obstetras e instituições públicas e privadas envolvidas com a assistência às gestantes”.[19]

A única solução para este dilema, parece ser, acatar a legislação existente, permitindo a presença de doulas onde haja legislação em vigor, mas ajustar os limites de atuação desta com a equipe de forma harmônica até que a legislação regulamentadora definitiva seja promulgada. Isto porque, além de ser inadmissível que a doula venha a intervir no tratamento oferecido pela equipe médica ditando protocolos de atuação a esta, a falta de regulamentação da profissão não dá aos profissionais da saúde um parâmetro seguro para confiar suas pacientes aos cuidados dela.

Sua atuação no ambiente hospitalar, então, deve se limitar a apenas oferecer suporte emocional à parturiente e puérpera, na mesma medida e forma do acompanhante, executando suas demais funções apenas mediante avaliação e permissão da equipe médica assistente da gestante.

7 A QUESTÃO DO PARTO DOMICILIAR NO BRASIL

Ainda mais espinhoso que o trabalho das doulas é a questão do parto domiciliar.

Como dissemos acima, muitas vezes o tratamento dispensado pelo médico ao parto natural faz com que as mulheres busquem formas alternativas ao modelo hospitalocêntrico.[20] Uma destas formas é o Parto Domiciliar Planejado.

Embora a FEBRASGO não recomende a realização de partos em ambiente outro que não seja o hospitalar,[21] e os Conselhos Regionais de Medicina tenham sistematicamente vedado a médicos obstetras assistirem essa forma de parto (Resolução 193/2019 do CRM-SC, Parecer 2602/2017 do CRM-PR, Resolução nº 111/04 do CRESMESP) em atenção à Recomendação 1/2012 do Conselho Federal de Medicina, a Organização Mundial de Saúde, em atenção ao Princípio da Autonomia do Paciente orienta

“Respeito à escolha da mãe/casal sobre o local do parto, após ter recebido informações”.[22]

Outrossim, mais em atenção à realidade de muitos municípios, que em razão do respeito à autonomia das pacientes, o Ministério da Saúde estabelece diretrizes de atenção e assistência ao parto domiciliar até mesmo realizado por parteiras leigas (profissão melhor regulamentada que a doulagem).[23]

Ainda na contramão dos conselhos de classe médica, o Conselho Federal de Enfermagem, através do Parecer Técnico n.º 3/2019, permite aos profissionais de enfermagem especializados em obstetrícia a assistência aos partos domiciliares.

Esta dicotomia na regulamentação dos profissionais de enfermagem ocorre por força da Lei n.º 7.498/86 e do Decreto 50.387/61, ainda vigente, que permitem ao enfermeiro obstetra a realização do parto sem distócia, assim como ao regular a profissão de enfermagem, de modo secundário, permitem a participação das parteiras leigas no processo de parturição. Ou seja, os enfermeiros podem assistir parturientes em partos vaginais, sem necessidade legal da presença de um médico.

A única dificuldade legal apresentada, então, para casos do parto vaginal em domicílio está na questão do registro de nascimento, que alguns entes federativos têm resolvido dando aos enfermeiros obstétricos, que assistam o parto domiciliar, fé-pública para fazer a declaração de nascido vivo que normalmente seria emitida por um hospital (é o caso da Lei Estadual 17.580/2018 de Santa Catarina).

Em decorrência destes regulamentos e orientações conflitantes temos que reconhecer que o médico que assista esta forma de parto está sujeito a instauração de procedimento ético-disciplinar em seu Conselho de classe, bem como não possui, por estar agindo de forma contrária às recomendações do Conselho Federal de Medicina e da FEBRASGO, qualquer defesa ante uma responsabilização civil em caso de processo judicial por erro médico ocorrido nesta modalidade de atendimento.

Entretanto, havendo legislação federal que permita a atuação dos enfermeiros obstétricos em partos sem intercorrência e sem intervenção médica, complementada por resolução do Conselho Federal de Enfermagem, legislações estaduais, e protocolos do Ministério da Saúde, também nos resta reconhecer que a força das normas dos Conselhos Regionais de Medicina têm apenas eficácia para seus associados, e, quiçá, em virtude das leis existente, possa até ter sua validade jurídica questionada ante a hierarquia das normas.

Outrossim, o grande problema destas recomendações e resoluções das entidades médicas, está no respeito à autonomia, conforme exposto acima.

Pois se de um lado, pode, e deve, o médico informar sua paciente dos riscos envolvidos na escolha dessa modalidade de parto, deve também, após a escolha desta, respeitá-la, e auxiliá-la com a diminuição adequada dos riscos, conforme a orientação da própria OMS.

É louvável, então, que o Conselho Federal de Enfermagem tenha notado esta necessidade de respeitar a decisão das parturientes e se antecipado a permitir que seus profissionais se colocassem à disposição da mulher que escolheu modalidade de parto. E, por mais que entendamos as ressalvas técnico-científicas da oposição a essa forma de parto, seria ideal não privar as mulheres que optam conscientemente por planejar o parto em domicílio da assistência de um profissional médico.

CONCLUSÃO

A liberdade dos profissionais de saúde existe em decorrência das prerrogativas da técnica e do conhecimento médico-científico, contudo não se pode permitir que a técnica relegue a dignidade para segundo plano, de modo que a parturiente seja tratada de forma mecânica e quase que automatizada pelos profissionais.

Ainda que não possua conhecimento técnico científico a parturiente é um ser humano, dotado de inteligência, sentimentos e direitos de personalidade decorrentes de sua humanidade. Deve ter sua autonomia respeitada, e a única maneira de garantir esta autonomia é fornecer-lhe as informações adequadas para as tomadas de decisão, assim, as escolhas sobre via, local, instrumentos e técnicas usados, presença de acompanhante e doula, serão não só conscientes, como verdadeiramente voluntárias, e não de um modo que o médico e os enfermeiros sejam mero executores de suas vontades, mas de um modo que a relação entre paciente e profissionais de saúde seja horizontal e harmônica, baseada no respeito mútuo e na dignidade da pessoa humana.

Em suma, deixar para trás o modelo hospitalocêntrico e autoritário não importa em abandono dos métodos cientificamente comprovados, pois a humanização do parto não se trata unicamente da liberdade de escolha sobre a via, local, posição e acompanhantes do parto, mas de tornar a mulher protagonista e atriz principal do ato mais exclusivo de sua própria feminilidade de forma que a experiência da parturição seja saudável, não apenas enquanto isentos de intercorrências danosas, mas enquanto favoreça um completo bem-estar físico, mental e social à mulher.

REFERÊNCIAS

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CARVALHO, Vanessa Franco de; KERBER, Nalú Pereira da Costa; AZAMBUJA, Eliana Pinho de; BUENO, Fabiely Fialho; SILVEIRA, Rosemary Silva da; e BARROS, Alessandra Mendes de. Direitos das parturientes: conhecimento da adolescente e acompanhante. Revista Saúde e Sociedade, vol.23, no.2. São Paulo: USP, 2014.

CASTRO, Jorge Rosa de. O parto naturalista na perspectiva do Direito: o conflito grávida/feto. Acta Obstétrica Ginecológica Portuguesa, vol.11 n.º 1. Coimbra: FSPOG, 2017

CURSINO, Thaís Peloggia; e BENINCASA, Miria. Parto domiciliar planejado no Brasil: uma revisão sistemática nacional. Revista Ciência e Saúde coletiva, vol. 24, n.º 4. Rio de Janeiro: ABRASCO, 2020.

FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA. Recomendações. Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/716-recomendacoes-febrasgo-parte-ii-local-para-o-parto-seguro. Acesso em 21 Jjul 2020.

FRANÇA, Genival Veloso. Direito Médico. 15ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

LEGUIZAMON JÚNIOR, Teodoro; STEFFANI, Jovani Antônio; e BONAMIGO, Elcio Luiz. Escolha da via de parto: expectativa de gestantes e obstetras. Revista Bioética, vol. 21, n.º 3. Brasília: CFM, 2013.

MEDEIROS, Renata Marien Knupp; SANTOS, Inês Maria Meneses dos; e SILVA, Leila Rangel da. A escolha pelo parto domiciliar: história de vida de mulheres que vivenciaram esta experiência. Revista de Enfermagem da Escola Anna Nery, vol.12 no.4. Rio de Janeiro: Escola Anna Nery, 2008.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Parto e Nascimento Domiciliar Assistidos por Parteiras Tradicionais. O Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais e Experiências Exemplares. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, Declaração sobre a Taxa de Cesáreas. Disponível em: https://www.who.int/reproductivehealth/publications/maternal_perinatal_health/cs-statement/pt/. Acesso em 20 abr. 2020.

PETRUCCE, Luiz Fernando Fernandes; OLIVEIRA, Lara Rodrigues de; OLIVEIRA, Victor Rodrigues de; e OLIVEIRA, Sebastião Rodrigues de. Humanização no atendimento ao parto baseada em evidências. Revista FEMINA, Vol. 45 – nº4. São Paulo: FEBRASGO, 2017.

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PREVIATTI, Jaqueline Fátima; e SOUZA, Kleyde Ventura de. Episiotomia: em foco a visão das mulheres. Revista Brasileira de Enfermagem, vol. 60, no. 2. Brasília: ABEn, 2007.

RODRIGUES, Diego Pereira; ALVES, Valdecy Herdy; PENNA, Lucia Helena Garcia; PEREIRA, Audrey Vidal; BRANCO, Maria Bertilla Lutterbach Riker; e SOUZA, Rosangela de Mattos Pereira de. O Descumprimento da Lei do Acompanhante como Agravo à Saúde Obstétrica. Revista Texto & Contexto – Enfermagem, vol.26, no.3. Florianópolis: UFSC, 2017. SECRETARIA DE SAÚDE DO ESTADO DA BAHIA. Recomendações da OMS na Assistência ao Parto Natural. Disponível em: http://www.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2017/09/RECOMENDACAO_PARTO_NORMAL_OMS.pdf. Acesso em 22 jul. 2020.


[1] Pós-graduado em Direito Médico e da Saúde pela Faculdade Legale

[2] Doutor em Ciências da Saúde pelo Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC. Coordenador da Pós-Graduação de Direito Médico do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC

[3] CURSINO, Thaís Peloggia e BENINCASA, Miria. Parto domiciliar planejado no Brasil: uma revisão sistemática nacional. Revista Ciência e Saúde coletiva, vol. 24, no.4. Rio de Janeiro: ABRASCO, 2020.

[4] Cabe aqui fazer notar que a Igreja católica reconhece a legitimidade moral do uso das técnicas científicas para eliminar a dor do parto: “O parto normal é uma função natural e, portanto, deveria produzir-se sem dor. […] A ciência e a técnica podem, pois, servir-se das conclusões da psicologia experimental, da fisiologia e da ginecologia […] com o fim de eliminar as fontes de erros dos reflexos condicionados dolorosos, e de fazer que o parto seja o menos doloroso possível; a Escritura não o proíbe”. (PIO XII, papa. Discurso Sobre o Parto Natural Sem Dor, Vaticano: L’Osservatore Romano, 1956)

[5] ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, Declaração sobre a Taxa de Cesáreas. Disponível em: https://www.who.int/reproductivehealth/publications/maternal_perinatal_health/cs-statement/pt/. Acesso em 20 abr. 2020.

[6] CURSINO, Thaís Peloggia e BENINCASA, Miria. Parto domiciliar planejado no Brasil: uma revisão sistemática nacional. Revista Ciência e Saúde coletiva, vol. 24, no.4. Rio de Janeiro: ABRASCO, 2020.

[7] DINIZ, Carmen Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. in PETRUCCE E OUTROS, Luiz Fernando Fernandes. Humanização no atendimento ao parto baseada em evidências. Revista FEMINA, Vol. 45 – nº4. São Paulo: FEBRASGO, 2017.

[8] ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, Maternidade Segura: Assistência ao parto normal: um guia prático. Genebra: OMS, 1996, in CARVALHO E OUTRAS, Vanessa Franco de. Direitos das parturientes: conhecimento da adolescente e acompanhante. Revista Saúde e Sociedade, vol.23, no.2. São Paulo: USP, 2014.

[9] MOURA, Fernanda Maria de Jesus S. Pires, in CARVALHO E OUTRAS, Vanessa Franco de. Direitos das parturientes: conhecimento da adolescente e acompanhante. Revista Saúde e Sociedade, vol.23, no.2. São Paulo: USP, 2014.

[10] JONES, Ricardo. Memórias de um homem de vidro: reminiscências de um obstetra humanista. in MEDEIROS E OUTRAS, Renata Marien Knupp. A escolha pelo parto domiciliar: história de vida de mulheres que vivenciaram esta experiência. Revista de Enfermagem da Escola Anna Nery, vol.12 no.4. Rio de Janeiro: Escola Anna Nery, 2008.

[11] BUSANELLO E OUTROS, Josefine. Participação da mulher no processo decisório no ciclo gravídico-puerperal: revisão integrativa do cuidado de enfermagem. Revista Gaúcha de Enfermagem, vol.32, no.4. Porto Alegre: UFRGS, 2011.

[12] LEGUIZAMON JÚNIOR E OUTROS, Teodoro. Escolha da via de parto: expectativa de gestantes e obstetras. Revista Bioética, vol. 21, n.º 3. Brasília: CFM, 2013.

[13] CASTRO, Jorge Rosa de. O parto naturalista na perspectiva do Direito: o conflito grávida/feto. Acta Obstétrica Ginecológica Portuguesa, vol.11 no.1. Coimbra: FSPOG, 2017

[14] Dentre muitos estudos destacamos para embasar as informações deste artigo: RODRIGUES E OUTROS, Diego Pereira. O Descumprimento da Lei do Acompanhante como Agravo à Saúde Obstétrica. Revista Texto & Contexto – Enfermagem, vol.26, no.3. Florianópolis: UFSC, 2017; MEDEIROS E OUTRAS, Renata Marien Knupp. A escolha pelo parto domiciliar: história de vida de mulheres que vivenciaram esta experiência. Revista de Enfermagem da Escola Anna Nery, vol.12 no.4. Rio de Janeiro: Escola Anna Nery, 2008; e BUSANELLO E OUTROS, Josefine. Participação da mulher no processo decisório no ciclo gravídico-puerperal: revisão integrativa do cuidado de enfermagem. Revista Gaúcha de Enfermagem, vol.32, no.4. Porto Alegre: UFRGS, 2011.

[15] FRANÇA, Genival Veloso. Direito Médico. 15ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2019, pág. 33.

[16] FEBRASGO/SOGIRGS, Fórum de Assistência Obstétrica. Carta de Porto Alegre. Porto Alegre: FEBRASGO/SOGIRGS, 2015.

[17] FEBRASGO/SOGIRGS, Fórum de Assistência Obstétrica. Carta de Porto Alegre. Porto Alegre: FEBRASGO/SOGIRGS, 2015.

[18] MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, Classificação Brasileira de Ocupações – CBO. http://www.mtecbo.gov.br. Acesso em 21 jul. 2020.

[19] PETRUCCE E OUTROS, Luiz Fernando Fernandes. Humanização no atendimento ao parto baseada em evidências. Revista FEMINA, Vol. 45 – nº4. São Paulo: FEBRASGO, 2017.

[20] “O atendimento pré-natal diferenciado, proporcionado pela enfermeira obstétrica, foi valorizado na fala de todas as depoentes. Das seis entrevistadas, cinco delas iniciaram o acompanhamento pré-natal com médico obstetra, porém, devido à insatisfação com a conduta intervencionista e autoritária recebida, elas se sentiram motivadas a buscarem um atendimento mais humanizado.” (MEDEIROS E OUTRAS, Renata Marien Knupp. A escolha pelo parto domiciliar: história de vida de mulheres que vivenciaram esta experiência. Revista de Enfermagem da Escola Anna Nery, vol.12 no.4. Rio de Janeiro: Escola Anna Nery, 2008).

[21] FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA. Recomendações. Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/716-recomendacoes-febrasgo-parte-ii-local-para-o-parto-seguro. Acesso em 21 jul. 2020.

[22] SECRETARIA DE SAÚDE DO ESTADO DA BAHIA. Recomendações da OMS na Assistência ao Parto Natural. Disponível em: http://www.saude.ba.gov.br/wp-content/uploads/2017/09/RECOMENDACAO_PARTO_NORMAL_OMS.pdf. Acesso em 22 jul. 2020.

[23] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Parto e Nascimento Domiciliar Assistidos por Parteiras Tradicionais. O Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais e Experiências Exemplares. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.