ANÁLISE DOS PROJETOS DE LEI SOBRE FAKE NEWS E OS LIMITES DO DIREITO PENAL
10 de dezembro de 2022ANALYSIS OF THE FAKE NEWS LAW PROJECTS AND THE LIMITS OF CRIMINAL LAW
Artigo submetido em 20 de novembro de 2022
Artigo aprovado em 28 de novembro de 2022
Artigo publicado em 10 de dezembro de 2022
Cognitio Juris Ano XII – Número 44 – Dezembro de 2022 ISSN 2236-3009 |
RESUMO: Este trabalho analisa o conteúdo dos sete projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional com a proposta de alterar o Código Penal para tipificar o crime de fake news. Dada a natureza dos crimes cometidos pela internet, é possível evidenciar fragilidade dos projetos quanto à conceituação do que sejam “fake news” e ainda a delimitação de outros elementos essenciais para a sua tipificação. Por isso, sustentamos a tese da intervenção mínima como marco teórico para acomodar as Fake News em outras legislações pertinentes, a fim de valer a natureza fragmentária do Direito Penal, em consonância com a subsidiariedade primária de políticas públicas que previnam e combatam o fenômeno da desinformação sistêmica.
Palavras-chave: Direito Penal; Intervenção Mínima; Fake News; Projetos de Lei.
ABSTRACT: This work analyzes the content of the seven bills that are being processed in the National Congress with the proposal to change the Penal Code to typify the crime of fake news. In order to consider the nature of the crimes committed over the internet, it is possible to show the fragility of the projects regarding the conceptualization of what the “fake news” are and also the delimitation of other essential elements for their classification. Therefore, we support the thesis of minimal intervention as a theoretical framework to accommodate Fake News in other relevant legislation, in order to assert the fragmentary nature of Criminal Law, in line with the primary subsidiarity of public policies that prevent and combat the phenomenon of misinformation systemic.
Key-words: Criminal Law; Minimum Intervention; Fake News; Law Projects.
INTRODUÇÃO
Talvez já tenhamos chegado em um dado momento da humanidade em que seja impensável realidade social sem a convivência com as Tecnologias da Informação e Comunicação – TIC’s, presentes em praticamente todas as esferas da vida cotidiana, em maior ou menor medida. Esses artefatos estão a serviço da civilização em uma dual capacidade de, por um lado, otimizar as atividades tecnicistas atribuídas ao corpo e ao intelecto e, ao revés, potencializar condutas danosas.
Em um processo globalizante que cada vez mais se reafirma pela interconectividade em rede e ainda que se retroalimenta pela produção e consumo de dados e informação, é inafastável o seu reflexo no âmbito jurídico. A internet trouxe à baila uma infinidade de novos campos de discussão alinhada ao ordenamento que, em parte, exige rever o Sistema, em outra, atualizá-lo. E quanto a esta perspectiva, não há um só ramo jurídico que não seja impactado. No que pese este trabalho, lançamos luz ao fenômeno das Fake News, questão que, a título de exemplo, pode facilmente ser alinhada ao Direito Penal, Eleitoral, uma leitura atenta frente à Constituição, enfim, temos um objeto que nos descortina desde os princípios e garantias fundamentais – como a liberdade de expressão, por exemplo – ou ainda a busca por transparência, um ideário tão caro ao exercício da democracia participativa.
Antecipadamente, pedimos ressalva quanto ao uso da nomenclatura “fake news”, pois ainda não temos um fenômeno completamente exato e bem definido, carecendo delimitações para a sua terminologia ou até mesmo o seu formato e processo. Em tempo, no entanto, para conformar seu uso neste trabalho, usaremos como marco referencial sua adoção nos Projetos de Lei que tramitam no Congresso Nacional, compreendendo-o como um processo sistêmico de produção e disseminação de “notícias falsas”, conforme tradução meramente cognata ao termo. Essa compreensão se materializa na proliferação de conteúdo maliciosamente viciado e deformado a fim de atingir outrem por ataque à honra ou ameaça à integridade física e emocional (bullying, por exemplo), e ainda a contextos coletivos, como é o caso de interferências em processos eleitorais.
Para abarcar o fenômeno na órbita do ordenamento jurídico, o judiciário brasileiro já vem tratando algumas ações em conformidade com o regramento vigente. Como essa situação ainda não é tipificada, na grande maioria das vezes, é preciso que se concretizem os elementos pressupostos a crimes já previstos, pois, em boa proporção, eles circundam nos tipos penais de violação à honra por Calúnia (Art. 138), Difamação (Art. 139) e Injúria (Art. 140). Mas a depender da natureza da conduta, a interpretação ainda pode levar a crimes como Incitação ao Crime (Art. 286) e até Apologia ao Crime (Art. 287).
As possibilidades na seara Panal ainda se alargam quando o agente dissemina conteúdo imputando a terceiro crime que o sabe ser inocente, numa evidente motivação à instauração de procedimento oficial, o que configura Denunciação Caluniosa (Art. 339). Nessa última hipótese, se o caso concreto tiver finalidade eleitoral, o Art. 326-A do Código Eleitoral também pode ser almejado. No curso de 2020, a Pandemia em decorrência do vírus da Covid-19 suscitou uma verdadeira babel de informação e conteúdo relacionado ao surgimento, a proliferação, à doença propriamente dita, e às medidas para sua contenção e enfrentamento, conforme destaca Junior et al (2020, p. 2):
Atualmente, o mundo está atento à situação e à propagação do novo coronavírus, o SARS-CoV-2, causador da COVID-19, que infectou mais de 500 mil pessoas em todo o mundo (na data de 26 de março de 2020). Nesse momento, o mundo inteiro busca formas de conscientizar a população acerca da gravidade da pandemia de modo a tranquilizá-la quanto às ações que devem ser tomadas a nível individual e coletivo para o combate desse vírus. Porém, para além dessa atividade, os órgãos de saúde e a imprensa mundial estão dispondo de mais esforços para desmentir o alto número de informações falsas que vêm sendo criadas e compartilhadas na internet em diversas redes sociais. (JUNIOR, João, et al., 2020, p.2)
Com essa sobrecarga de conteúdo, uma parcela deles se sobressaiu pela motivação duvidosa e, por isso, vem à tona o artigo 41 da Lei de Contravenção Penal (Decreto-Lei 3.688/1941), que atribui a contravenção por “provocar alarme, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto”.
Com base nas hipóteses mencionadas até então, é possível encontrarmos uma tendência de enquadramento do fenômeno das fake news no âmbito penal, ainda que em alguns casos as direcionem para outros diplomas. Esse mesmo movimento acontece com as propostas emergidas no Congresso Brasileiro, em suas duas casas, visto que uma significativa parcela dos Projetos de Lei já propostos versam sobre conteúdo penal. Em meados de 2018, o Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional[4] se reuniu para analisar a minuta de 14 textos em tramitação sobre o tema das fake news e, a partir deles, propor iniciativas que possam auxiliar no processo de legislação sobre a matéria.
Desse total, a metade propõe alteração do Código Penal Brasileiro (Decreto Lei nº 2.848/1940). São eles: PL 9.838/2018; PL 9.761/2018; PL 473/2017; PL 9.884/2018; PL 9.554/2018; PL 9.931/2018; e PL 8.592/2017. As demais sete propostas se dividem na orbita da legislação Eleitoral (Lei Nº 4.737/1965), Marco Civil da Internet – MCI (Lei Nº 12.965/2014) e Lei de Segurança Nacional (Lei Nº 7.170/1983).
A problematização da matéria não se esgota apenas no legislativo. Em meados de 2020, o ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, Alexandre de Moraes, instaurou de ofício o Inquérito 4.781[5] com o fulcro de apurar os indícios de organização e financiamento de atos públicos contra a democracia e ataques às instituições de Estado, tais quais o próprio Supremo, o Congresso. O procedimento fora recebido com críticas quanto à competência da Corte para instaurar Inquérito e conduzir ação penal pública.
A Procuradoria-Geral da República – PGR pediu arquivamento do inquérito, o que foi parcialmente acatado por Moares, mas, ao mesmo tempo, determinou a abertura de uma nova investigação, desta vez, para apurar a formação de uma organização criminosa montada para a divulgação de fake News.
Para vencer as divergências, é inequívoca a urgência no Legislativo para ampliar o debate e regular a matéria. Neste turno, no entanto, observemos que há uma tendência nas propostas apresentadas até então em alocar as fake news ao diploma penal, por lógica, evidenciando à matéria penas mais severas. Vale salientar, porém, que, em larga escala, os casos delituosos cometidos por meio da internet já encontram preceitos no ordenamento jurídico, inclusive no próprio tipo penal, e legislações correlatas como o Código Civil e o recente Marco Civil da Internet.
Para defender a acomodação dos desvios cometidos na internet, sobretudo as fake news, em outros ramos do Direito é preciso iniciar elucidando a distinção conceitual para a função da internet nas execuções de ilegalidade. Às vezes, entendida enquanto “meio”, ou seja, o caminho e suporte pelo qual se comete as condutas e, às vezes, o próprio fenômeno delituoso propriamente dito. Aqui, partimos da primeira compreensão de modo a afasta a hipótese de atribuir à internet a condição de tipo criminal – como se a “coisa” se sobrepusesse ao humano.
Isso porque é preciso compreender a internet como um elemento fenomenológico cujas implicações conjecturais estão além do artefato propriamente dito, mas sim inserida no contexto mais amplo da cibercultura, a ser entendida como:
[…]conjunto tecnocultural emergente no final do século XX impulsionado pela sociabilidade pós-moderna em sinergia com a micro informática e o surgimento das redes telemáticas mundiais; uma forma sociocultural que modifica hábitos sociais, práticas de consumo cultural, ritmos de produção e distribuição da informação, criando novas relações no trabalho e no lazer, novas formas de sociabilidade e de comunicação social. Esse conjunto tecnologias e processos sociais ditam hoje o ritmo das transformações sociais, culturais e políticas nesse início de século XXI. (LEMOS e LÉVY, 2010, p. 21–22)
O fenômeno das fake news é um elemento insidioso das relações sociais neste cenário de interconectividade a mediar a relação do homem via rede mundial de computadores. Um processo inevitável, como dito inicialmente, e por isso também inadiável o debate que vise a tomada de medidas no ramo jurídico a fim de sanar os conflitos danosos à convivência.
- Análise dos Projetos de Lei sobre fake News.
Um caminho possível para compreender o que o legislador brasileiro pretende tipificar com a criminalização das fake news se dá a partir de uma análise esquematizada do conteúdo dos sete projetos que tramitam com proposta de alteração do Código Penal. À priori, é possível concluir que, em regra, os textos seguem a mesma estruturação: iniciam com a definição do que sejam as fakes news, estipulam as penas e apontam os potenciais agravantes.
Iniciamos esta análise pelo aspecto da delimitação do conceito, este talvez seja o elemento mais importante neste momento de proposição e discussão das propostas, haja vista a necessidade de clareza e exatidão no objeto material que se visa punir; na delimitação das ações e na identificação dos agentes da conduta, que se apresentam peculiares no contexto da cibercultura, mascada pela audiência vasta e difusa.
Detalhamos os artigos que tratam da conceituação de fake news em quatro partes: (1) o núcleo, a partir do destaque do verbo que estrutura a ação a ser condenada; (2) o meio, ou seja, os suportes, artefatos e mecanismos utilizados na execução da ação; (3) os agentes, identificados ativos e passivos no processo; e, por fim, (4) o conteúdo a ser delineado na condição de “falso”.
Os Projetos de Lei não apresentam grandes divergências quanto ao espírito das ações puníveis, que se materializam na combinação de verbos como “criar”, “oferecer”, “publicar”, “veicular”, “distribuir”, “propagar”, “difundir” e “compartilhar”. É possível inferir que o legislador busca coibir basicamente três fases no processo de fake news: a feitura, a visibilidade e a difusão do material delituoso. Apenas o PL 9.761/2018 é destoante dos demais ao trazer a previsão punitiva do ato omissivo, incluindo no núcleo o “não remover” o conteúdo.
No contexto da rede mundial de computadores, estabelecer os limites do que seja o meio, aqui entendido como suportes e artefatos, é extremamente importante, pois somente assim é possível distinguir o que seriam condutas exclusivas à natureza da internet, como a distribuição de dados maliciosos para o controle de outras máquinas – os vírus, por exemplo; ou, em outro sentido, o que seriam crimes comuns, já tipificados, mas executados sob as potencialidades da rede, como é o caso da pornografia infantil ou até mesmo os crimes contra a honra.
Vencido esse esclarecimento, vale salientar que apenas três propostas fazem textualmente esta previsão e, mesmo assim, deixam a desejar. Uma delas é PL 9.761/2018 que inclui os meios eletrônicos e os impressos; outros dois (8.592/2017 e 9.884/2018) trazem de forma aberta a expressão “qualquer meio de comunicação”. Os demais são omissos, o que pode facilmente deixar brechas para imprecisão ou redundância de previsão legal em outros diplomas normativos.
No que diz respeito aos agentes do pretenso tipo penal, três textos destacam, enquanto agente ativo da conduta, aqueles que sabem ou deveriam saber que o conteúdo é “falso”. No outro polo, quando da tentativa de determinar os agentes passivos, ou seja, os que seriam vitimados pela conduta, os textos refletem uma característica da audiência na rede, sendo ela sempre de ampla dimensão, difusa, e, por vezes, imprecisa.
O PL 9.884/2018, por exemplo, fala em “a terceiros” de forma genérica. Ainda mais embaraçosos são os PL’s 473/2017, 9.884/2018 e 9.554/2018 ao se valerem de enunciados que confundem o que poderia ser um impacto em conteúdo de dimensão simbólica ou agentes. Isso acontece pelo uso de expressões vagas e pouco cognatas como acontece em “que afetem interesse público relevante”.
Essa situação se repete no PL 8.592/2017 e de forma ainda mais gravosa, se considerado o trecho “capaz de atingir um número indeterminado de pessoas”. Ante esses exemplos, cabe a pergunta: quem seria o violado e o que seria o bem jurídico tutelado nesses casos? E contrapartida, apenas em algumas poucas propostas são incluídas na redação a figura do agente protegido contra a conduta delituosa em fragmentos que estabelece a ação contra “pessoa física ou jurídica”.
As imprecisões nas propostas ainda vão além e esbarram também na tentativa de estabelecer quais seriam o conteúdo propriamente dito “fake news” a materializar o tipo penal. Para resolver esse problema, algumas das propostas partem dos verbetes “informação” e “notícia” acrescidos de “que sabem ser falsa”. Mesmo não aprofundando, por ora, a discussão quanto ao conceito de “notícia”, tão pertinente ao campo da comunicação e, mais especificamente, ao jornalismo, ainda assim podemos suscitar aqui a incongruência da expressão.
Esse gênero da comunicação encontra substância em narrativas objetivas, clara e direta sobre um fato, de tal modo que, se é notícia, não se permite a falsidade dos dados e informações, pois, se incorrer no contrário, não é notícia. Adelmo Genro Filho, um dos preconizadores no estudo acadêmico do jornalismo brasileiro, oferece–nos uma definição que passa por uma “forma de apropriação do conhecimento cristalizada na singularidade dos fenômenos, como uma forma de compartilhamento das imediaticidades” (FILHO apud OLIVEIRA, 2017, p. 174).
As ambiguidades nas definições sobre tais conteúdos ainda pairam pelo campo filosófico e moral, vide o PL 9.884/2018 que traz em seu artigo o enunciado “que possa modificar ou desvirtuar a verdade” para dar contorno ao que seria o conteúdo fake news. Ora, sem prolongada digressão, duas questões são imperativas nesse excerto: de qual verdade estamos falando? Quem estabelece essa verdade? Essas questões que perpassam sensivelmente a seara da liberdade de expressão e a livre manifestação do pensamento, sob o risco de recairmos na vala da censura.
Avançando a análise para o aspecto das penalidades, todos os sete PL’s estabelecem à privação de liberdade como pena criminal, variando entre as possibilidades de “detenção” e “reclusão” e, em cinco propostas, acrescidas de multa.
O projeto mais severo é o 9.884/2018 que prevê “reclusão de dois a quatro anos, e multa”. As propostas das penas privativas de liberdade variam entre a previsão mínima de três meses ao máximo de quatro anos. Já quanto às multas, nenhuma redação destaca valor, deixa em aberto.
Mediante o exposto, as propostas em discussão no Congresso por meio dos supracitados projetos de lei com ementa para alterar o Código Penal a fim de tipificar as fake news, precisam ter o debate ampliado, dada a importância do tema, e ainda a urgência em sanar lacunas que, enquanto não sucumbidas, distanciam o fenômeno da órbita do Direito Penal.
2. Direito Penal, ultima ratio às fake news.
O Direito está para a sociedade como uma estrutura molar na garantia dos direitos e deveres capazes de assegurar a preservação harmônica do valor de comunidade, agindo no controle social dos anseios pactuados pela ordem cultural, econômica e política.
Para tanto, o Direito Penal cumpre sua natureza na proteção aos bens mais valiosos e invioláveis estabelecidos por uma dada sociedade, ao ponto de atribuir aos tipos delituosos as mais severas penas. Nesse bojo, o controle social instituído pelo Direito Penal tem o protagonismo do Sistema de Justiça Criminal estendido para a atuação igualmente impactante do legislador, porque deste se roga a capacidade de positivar os anseios socais.
Conforme Juarez Cirino dos Santos, o rol de atores envolvidos na política de controle social estabelecida pelo Direito Penal se inclui também à atuação da família, das empresas, educação, partidos políticos, sindicatos, meios de comunicação, enfim, a sociedade civil organizada. Isso só acontece devido a capacidade transitória e mutável do comportamento, dos costumes e dos valores embutidos na comunidade.
Observamos anteriormente que os Projetos de Lei que transitam no Congresso Nacional com ementa sobre fake news datam de iniciativas demasiada recente, entre 2017 e 2018. No entanto, o contexto histórico do falseamento e manipulação maliciosa de dados e informações é milenar, vide em outros tempos a rede de boatarias, mentiras e ataques a honra, independente do suporte ou circunstâncias.
Agora, no entanto, tratamos desta questão considerando, sobretudo a sua dimensão envolvida pela rede mundial de computadores, cuja natureza alterou a noção social de tempo e espaço: a desinformação delituosa transpassa à audiência em um imediatismo quase incontrolável e chega a lugares inimagináveis pelo fluxo da rede. Eis a questão de um antigo costume/problema frente aos novos tempos/novas tecnologias.
Provocado, agora arrogamos do legislador a positivação deste fenômeno que, no entanto, acende um alerta para a cautela quanto a tendência em lhe direcionar a uma tipificação penal. Ora, se por lado cabe ao Direito Penal acomodar o rol dos bens jurídicos tutelados conforme o estabelecido pela sociedade, em contrapartida, igualmente atua no sentido de assegurar a distância de tantos outros valores e circunstâncias imunes à severidade penal. Isso porque
O Direito Penal e o Sistema de Justiça Criminal constituem, no contexto desta formação econômico–social, o centro gravitacional do controle social: a pena criminal é o mais rigoroso instrumento de reação oficial contra as violações da ordem social, econômica e política institucionalizada, garantindo todos os sistemas e instituições particulares, bem como a existência e continuidade do próprio sistema social, como um todo. (SANTOS, 2018, p. 9–10).
O limite a essa severidade se dá no estrito cumprimento de escolha dos bens jurídicos tutelados. No Estado Democrático de Direito, a escolha dos bens tutelados afasta de qualquer diploma normativo o ataque à dignidade da pessoa humana, valor constitucional absorvido dos anseios globais em defesa dos direitos humanos.
Os bens jurídicos estão fundados nos direitos e garantias fundamentais e se segmentam pela regulação das leis ordinárias que mediam as relações econômicas, civis, políticas e afins, cabendo ao Direito Penal a tutela dos bens mais caros a um povo, ou seja, as “realidades ou potencialidades necessárias ou úteis para a existência e desenvolvimento individual e social do ser humano” (SANTOS, 2018, p. 5).
Nesse bojo, acomodam–se a proteção à vida, à integridade e saúde corporal, à honra, à liberdade individual, o patrimônio, à sexualidade, à família e à administração pública. Por consequente, a violação a esses tipos penais recai as penas mais severas do ordenamento, sendo elas a privação de liberdade, restrição de direitos e penas de multa.
Assim, é de extrema valia a exatidão na delimitação do tipo, não havendo espaço para embaraço quanto ao objeto, incerteza ou amplitude na caracterização dos agentes delituosos e dos violados, tampouco opacidade quanto aos meios ou circunstâncias mediante as quais se estabelece o crime. São requisitos inevitáveis para se acomodar no direito penal, que, por sua vez, sedimenta–se no princípio constitucional da legalidade, afinal, “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (CF 1988, Art. 5º, XXXIX).
Tomando por base a análise apresentada no tópico anterior, é evidente a fragilidade dos elementos apresentados para tipificar as fake news no diploma penal. Basta para isso retomarmos o quão não consensual é o conceito do que sejam as ditas “fakes news”; de que modo e em quais meios elas se concretizam; e ainda a dificuldade em apreender de forma concreta e objetiva os agentes do tipo. Mediante tais condições, paira a imprecisão quanto o bem jurídico tutelado e, como dito por SCOLANZI (2012, s/n):
O bem jurídico se posiciona como um dos fundamentos do Direito Penal democrático, de maneira que o estudo e a compreensão do fenômeno de seleção dos valores sociais a serem tutelados pelo sistema de controle penal se fazem absolutamente oportuno. (SCOLANZI, 2012, s/n)
Com tese da fragilidade dos projetos de lei, temos assim uma situação incompatível com a ordem social estabelecida a partir da proteção aos bens jurídicos do Direito Penal, pois este detém–se ao que a doutrina classifica de bem existencial, ou seja, aquilo elevado à categoria de indispensável à sociedade, sendo igualmente útil e necessário ao ser humano, como nos adverte dos Santos (2018).
Outrossim, a determinação destes bens sob a égide máxima do Direito Penal deve obediência a princípios norteadores repousados entre os limites do espírito constitucional e as transformações do tempo:
3. Princípio da Intervenção Mínima
É com base no princípio da legalidade que o Direito visa traduzir os anseios sociais e, assim, exercer sua pretensa função em assegurar a ordem. No entanto, nem tudo cabe na lei, e, quando se acomoda nela, também enfrenta limites.
A intervenção mínima é um dos princípios estruturantes do Direito Penal, sendo um freio sensível com a finalidade de inibir o exagero nas tipificações penais do que pode ser revertido em outras medidas ou em outras áreas do direito; e ainda evitar o retrocesso civilizatório a níveis de profundo constrangimento à dignidade da pessoa humana, conforme assevera Nucci (2018):
[…] o direito penal não deve interferir em demasia na vida do indivíduo, retirando-lhe autonomia e liberdade. Afinal, a lei penal não deve ser vista como a primeira opção (prima ratio) do legislador para compor os conflitos existentes em sociedade e que, pelo atual estágio de desenvolvimento moral e ético da humanidade, sempre estarão presentes. Há outros ramos do direito preparados a solucionar as desavenças e lides surgidas na humanidade, compondo-as sem maiores consequências. (NUCCI, 2018, p. 175)
Dada a sua natureza subsidiária e fragmentária, apoia–se na proporcionalidade das penas e das condutas, fazendo–se o último recurso a ser acionado na proteção dos bens jurídicos. Ensina–nos Santos (2018) que, por subsidiário, supõe–se “a atuação principal de meios de proteção mais efetivos do instrumental sociopolítico e jurídico do Estado” (SANTOS, 2018, p.5) e que, por ser fragmentado, “não protege todos os bens jurídicos definidos pela Constituição da República e protege apenas parcialmente os bens jurídicos selecionados para a proteção penal” (SANTOS, 2018, p. 6).
Ou seja, não se pretende o subterfúgio quanto ao problema das fake news ou tampouco negligenciar a importância do debate e necessidade de positivação, sobremaneira depois das incontáveis suspeitas de processos eleitorais impactados por ações em massa de disparos de conteúdos maliciosos e até mesmo o aumento de judicialização de casos com elementos a partir de informações fraudulentas.
O fenômeno das fake news é danoso à sociedade e, no entanto, precisa de medidas para além da aprovação de leis que, ainda que severas, podem resultar em medidas inócuas ou simplistas. O problema é mais complexo e passa diretamente por políticas públicas de formação, prevenção e combate, ou seja, a legislação é um fator importante, mas não apenas o único.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alinhar as fakes news ao ordenamento jurídico nacional, de certo, não é uma missão das mais fáceis ao legislador, ainda assim indispensável, sobretudo a partir da necessidade de fragmentar as circunstâncias do fenômeno conforme o diploma mais compatível com os casos concretos.
Desse modo, temos o Marco Civil da Internet, o Código Civil, a Legislação Eleitoral, Lei dos Direitos Autorais, Lei de Segurança Nacional e tantas outras que podem abarcar a mediação do fenômeno com menor risco de incorrer a danos maiores em valores democráticos reafirmados pela cibercultura, vide a maior participação no debate público, a transparência e afins.
As soluções para essas questões não serão imediatas, nem conclusivas, e exigirão uma força tarefa dos governos, do parlamento e da sociedade civil. Uma saída, talvez, seja pelas políticas públicas em prol da adoção de boas práticas no espaço digital. Pelo menos essa é a proposta inicial da União Europeia.
Uma comissão composta por especialistas do território europeu concluiu no início de 2018 um relatório propositivo de combate ao que denominaram de “desinformação”. O documento, traduzido para o Português como “Combater a desinformação em linha: uma estratégia europeia”, ultrapassa a discussão das fakenews e inclui no processo as informações falsas, imprecisas ou enganosas a fim de causar danos.
Quatro princípios dão sustentação à estratégia: (1) transparência quanto à origem e forma do material produzido; (2) diversidade de informação permitindo a tomada de decisões dos cidadãos; (3) credibilidade, que passa por marcadores de fiabilidade e confiança do conteúdo; e (4) inclusão no sentido de ações que que elevem o nível de literacia midiática.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Coletânea Básica Penal. 8ª. ed. Brasília, DF: Senado Federal, Coordenação de Edições e Técnicas, 2017.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, Coordenação de Edições e Técnicas, 2016.
DE SOUSA JÚNIOR, João Henriques et al. Da Desinformação ao Caos: uma análise das Fake News frente à pandemia do Coronavírus (COVID-19) no Brasil. Cadernos de Prospecção, v. 13, n. 2 COVID-19, p. 331, 2020.
EUROPEAN COMMISSION. A multi-dimensional approach to disinformation Report of the independent High level Group on fake news and online disinformation. Março 2018. Disponível em: < http://ec.europa.eu/newsroom/dae/document.cfm?doc_id=50271>. Acesso em: 20 de mai. de 2019.
LEMOS e LEVY. O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia. São Paulo: Paulus, 2010. Coleção Comunicação.
NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
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SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. 8ª ed. Florianópolis: Tirant lo Blansh, 2018.
SCOLANZI, Vinícius Barbosa. Bem jurídico e Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3129, 25 jan. 2012. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/20939>. Acesso em: 22 de mai. De 2019.
Verdade despedaçada. Harvard Business Review Brasil. São Paulo: RFM Editores, v. 96, n. 12, p. 25–57, dez. 2018. ISSN 2359–6090. BRASIL. Congresso Nacional. Parecer CCS nº 01/2018. Analisa projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional sobre o tema das fake News. In.: Conselho de Comunicação Social, 2018. Disponível em: < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/133519 >. Acesso em: 15 de mai. de 2019.
[1] Mestre em Cognição, Tecnologias e Instituições pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (PPgCTI/Ufersa) e graduado em Comunicao Social – Jornalismo e em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern). Jornalista do quadro efetivo da Assessoria de Comunicação da Ufersa.
[2] Bacharel em Engenharia Civil pela Universidade Potiguar – UnP, Especialista em Geoprocessamento e Georreferenciamento pela Universidade Federal Rural do Semiárido – Ufersa, Técnico em Edificações pelo Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia – IFRN, Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.
[3] Mestre em Educação pela Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe – UFS. Especialista em Ciências Criminais pela Faculdade Social da Bahia. Advogado.
[4] Home Page do Conselho de Comunicação Social <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/conselhos/-/conselho/ccs>
[5] Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/inq4781decisao27setembro.pdf. Acessado em 25 de jul. 2021.