A LIVRE CONCORRÊNCIA NO BRASIL E A SEGURANÇA REGULATÓRIA: UMA ANÁLISE DO INFINDÁVEL CASO NESTLÉ-GAROTO

A LIVRE CONCORRÊNCIA NO BRASIL E A SEGURANÇA REGULATÓRIA: UMA ANÁLISE DO INFINDÁVEL CASO NESTLÉ-GAROTO

28 de julho de 2022 Off Por Cognitio Juris

FREE COMPETITION IN BRAZIL AND REGULATORY SAFETY: AN ANALYSIS OF THE ENDLESS CASE NESTLÉ-GAROTO

Cognitio Juris
Ano XII – Número 41 – Edição Especial – Julho de 2022
ISSN 2236-3009
Autores:
Emerson Ademir Borges de Oliveira[1]
Jamile Nazaré Duarte Moreno Jarude[2]
Valdeci Antonio de Almeida[3]

Resumo: O presente estudo buscou discutir a análise realizada pelo CADE sobre o Ato de Concentração n.º 08012.001697/2002-89 que trata da aquisição da empresa de chocolates Garoto pela Nestlé e que até a presente data não houve pacificação nem administrativa nem judicial. Para tanto, foram abordadas as questões relacionadas aos parâmetros adotados pelo órgão de controle, com fundamento na legislação concorrencial e antitruste, notadamente pela perspectiva da Análise Econômica do Direito para a verificação quantitativa do estudo colocado em exame. Nesta pesquisa utilizou-se o método dedutivo, com base em pesquisa bibliográfica e em legislação nacional. Conclui-se que por si só já é longa e interminável, que tal circunstância traz insegurança tanto jurídica quanto regulatória.

Palavras-chave: Setor alimentício; Concorrência; Segurança Jurídica; Segurança Regulatória.

Abstract: This study sought to discuss the analysis carried out by CADE on the Concentration Act n.º 08012.001697/2002-89, which deals with the acquisition of the chocolate company Garoto by Nestlé and that to date there has been no administrative or judicial pacification. To this end, issues related to the parameters adopted by the control body were addressed, based on competition and antitrust legislation, notably from the perspective of the Economic Analysis of Law for the quantitative verification of the study put under examination. In this research, the deductive method was used, based on bibliographic research and national legislation. It is concluded, without delving into the theme, which in itself is long and endless, that this circumstance brings both legal and regulatory uncertainty.

Keywords: Food sector; Competition; Legal Security; Regulatory Security.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa objetivou discutir sobre a análise realizada pelo CADE, no ano de 2002, sobre o Ato de Concentração n.º 08012.001697/2002-89 que previa a aquisição da Chocolates Garotos S/A pela Nestlé Brasil Ltda, empresas que atuam no ramo de chocolates. A análise da fusão ocorreu em face da previsão expressa da Lei n.º 8.884/1994 (BRASIL, 1994) que dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica. A partir daquele momento, atos semelhantes ao caso Nestlé-Garoto deveriam ser submetidos à apreciação do órgão de defesa econômica, em razão dos parâmetros concorrenciais e empresariais utilizados, calcado em pontos de vistas diferentes para a busca da solução do impasse. Tal caso tornou-se conhecido como o marco e fundamento para a revisão da legislação antitruste no Brasil.

A Garoto foi adquirida pela Nestlé em fevereiro 2002 e, em março daquele ano, o registro foi submetido à apreciação do CADE que, em fevereiro de 2004, por maioria dos votos, decidiu pela desaprovação da transação em razão da elevada concentração e de “efeitos deletérios” nos mercados de chocolates e coberturas de chocolates, com a determinação de desinvestimento parcial. A decisão do CADE foi submetida à reapreciação, mantendo-se seu entendimento. Isso porque, para o CADE, a Nestlé detinha, à época, 34% do mercado de chocolate no Brasil e, a partir da fusão, passaria a ter 58%, porcentagem essa muito superior à segunda concorrente, no caso, a Lacta, que restou com 33% do mercado. Tal circunstância desencadeou o início da discussão judicial – processo nº 0015018-08.2005.4.01.3400 (BRASIL, 2005) – com pedido de liminar pela Nestlé para a suspensão da determinação de desinvestimento parcial, acolhida pela Justiça Federal.

No mérito, a sentença declarou aprovado o ato de concentração, tornando sem efeito a decisão de desconstituição da operação de aquisição da Garoto pela Nestlé. O CADE, por sua vez, apelou da sentença e, por uma reviravolta, a 5ª Turma do TRF-1ª Região decidiu de modo a não anular toda a atividade administrativo-judicante realizada pelo CADE e determinou que houvesse nova apreciação quanto ao desinvestimento parcial. No decorrer desses anos, nem o Poder Judiciário e nem o CADE resolveram o impasse, motivo este que traz à tona a antiga discussão sobre a liberdade de concorrência e de iniciativa como regra e a intervenção estatal como exceção, regime este previsto, inclusive, no artigo 173 da Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988).

A atuação dos órgãos reguladores, portanto, deve estar calcada em conceitos técnicos e independentes dos demais Poderes, embora o CADE seja dependente de recursos orçamentários estatal para o exercício da defesa da concorrência. Qualquer ação retardatária sob a insígnia de que a iniciativa privada deva ser tutela pelo Estado, como forma de proteger o interesse público, colocará em risco a própria ordem econômica e seus princípios basilares, previstos no artigo 170 da Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988).

Para a pesquisa utilizou-se o método dedutivo, com base em pesquisa bibliográfica e em legislação nacional, que tangencia, em especial, na análise transdisciplinar entre Direito e Economia.

 

1 O USO DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO PELO CADE PARA O JULGAMENTO DA FUSÃO

O princípio constitucional regente da ordem econômica tem por finalidade guardar a livre concorrência por meio da repressão e prevenção ao abuso do poder econômico nos mercados de bens e serviços. Assim, a defesa da concorrência é o objeto tutelado tanto pela extinta Lei nº 8.884/1994 (BRASIL, 1994) quanto pela legislação vigente Lei nº 12.529/2011 (BRASIL, 2011). E o papel do Estado é o de propiciar o cumprimento da lei e o ambiente em que os agentes econômicos ofertem e procurem produtos e serviços em disputa entre si.

Ao CADE, nesse aspecto, incumbe aplicar a Lei de Defesa da Concorrência indicando os meios, atos e estratégias que os agentes econômicos devem empregar na exploração de sua atividade econômica, assegurando-a livre, mas coibindo o abuso do poder econômico. Isso não significa, como bem destaca Ramos (2015), atuação estatal para regular e garantir a eficiência, com maior qualidade dos produtos e serviços e menores preços. Mas, para que tal circunstância se concretize, necessária se faz a análise econômica e Mackaay e Sztajn ensinam:

A análise econômica do direito, usando conceitos da ciência econômica, atualiza uma racionalidade subjacente das normas jurídicas e os principais efeitos previsíveis de suas mudanças. Propõe leitura das regras jurídicas que as avalie pelos seus efeitos de estímulo e pelas mudanças de comportamento das pessoas em resposta aos mesmos. Oferece elementos para julgamento iluminado das instituições jurídicas e das reformas propostas. (2020, p.665)

O estudo de quantitativos para apurar a rivalidade entre as empresas se demonstrou muito importante para o caso Nestlé-Garoto, pois, além de estar previsto no artigo 54, § 1º, inciso III, da lei n.º 8.884/1994 (BRASIL, 1994), relacionava a participação acentuada de duas empresas no mercado, o que, por si só, estimularia e facilitaria a adoção de condutas cartelizadas caso a fusão implicasse em eliminação da concorrência, o que forçaria o CADE a não autorizar a operação.

A regulação pode limitar as liberdades de iniciativa e concorrência quando não apresentar elementos que efetivamente potencializam o abuso de poder econômico – pode-se caracterizar, em outras palavras, em abuso regulatório, notadamente quando para o julgamento do caso Nestlé-Garoto pelo CADE diversos pareceres foram favoráveis à fusão das empresas. Nesse sentido, o parecer apresentado pela Profa. Elizabeth Farina, no ano de 2003, consultora contratada pela Nestlé mostrava que: (i) Com base no modelo de Oliver Willianson, análise das eficiências geradas pela operação, redundando em reduções de custo, são mais do que suficientes para compensar elevações de preços decorrentes de aumento do poder de mercado com a operação; (ii) A elevação de preços não é uma estratégia ótima para as empresas no presente caso e que ganho de eficiência deverá ser compartilhado com o consumidor por meio da redução de preços; (iii) Utilizando a Teoria dos Jogos, como “O Dilema dos Prisioneiros”, a estratégia ótima tanto para a Nestlé/Garoto como para a Kraft, será reduzir os preços.

Ao analisar o modelo do excedente total proposto por Willianson (1968), Amato ressalta que:

O modelo do excedente total proposto em Willianson (1968) trabalha com a hipótese de que uma fusão tenha que ser analisada a partir do excedente gerado para a sociedade como um todo e não apenas para o consumidor. Assim, caso o excedente do consumidor + excedente do produtor seja maior depois do que antes da fusão, esta é considerada benéfica para a sociedade. O modelo não classifica a transferência de renda entre os participantes algo prejudicial desde que o todo seja beneficiado. (2012, p. 34)

Na visão do Conselheiro Relator do Ato de Concentração, a menção aos jogos tidos como “Dilema dos Prisioneiros” estaria equivocada, pois não se aplicaria às estratégias ali enumeradas. Assinalou, então, que a utilização dos faturamentos como parâmetro para análise da operação seria questionável, pois o crescimento do faturamento não garante aumento de lucro.

A Kraft (Lacta), por meio do Prof. Fábio Kanczuk, utilizou o modelo de simulação de Bertrand com produtos diferenciados e o equilíbrio não-cooperativo de Nash, que foi descrito como modelo adequado pelo Conselheiro Relator, uma vez que tratava de mercados diferenciados em uma estrutura de concorrência monopolística, onde seu principal resultado demonstrava que as reduções de custos variáveis deveriam ocorrer na ordem de 12% para evitar elevações de preços.

Ao analisar a metodologia para a avaliação das eficiências destacou-se que as barreiras à entrada no mercado de chocolates eram bastante elevadas, ao ponto de que a rivalidade remanescente entre as empresas que atuam no ramo não seria suficiente para afastar a possibilidade de abuso de poder de mercado pela empresa fusionada, pois houve elevação do poder de mercado e limitação da concorrência, fatores que poderiam acarretar na dominação de mercados relevantes.

O artigo 54 da extinta Lei n.º 8.884/1994 (BRASIL, 1994) dispunha que era permitida a operação, ainda que possuísse potencial para restrição de concorrência, desde que, em caso de sua aprovação, resultasse o uso mais eficiente dos recursos, ou seja, geração de ganhos de produtividade, com a redução dos custos unitários de produção. Entretanto, deveriam ser preenchidas, de forma obrigatória, outras três condições: (i) Distribuição equitativa destes ganhos entre as empresas participantes do Ato e os consumidores finais; (ii) Observância dos limites estritamente necessários para atingir os objetivos visados, indicando que a própria realização do Ato deve ter como meta o alcance das eficiências propostas; (iii) Não eliminação da concorrência de parte substancial de mercado relevante de bens e serviços.

Magalhões destaca a existência de um guia, oriundo da Portaria n.º 50, criada em conjunto pela SEAE/SDE, que se relacionava à Análise Econômica de Atos de Concentração Horizontal, que foi utilizado pela CADE para aferição da possibilidade de fusão entre as empresas Nestlé-Garoto:

Esse Guia possui cinco etapas. Na Etapa I define-se o mercado relevante. Na Etapa II busca-se saber se a empresa envolvida na operação possui parcela substancial de mercado. Posteriormente, na Etapa III, verifica-se a probabilidade de exercício de poder de mercado. Na Etapa IV se examinam quais são as eficiências geradas e, por fim, na etapa V, analisa-se se os custos do exercício de poder de mercado são maiores que aquelas eficiências. Caso em todas as etapas supracitadas a resposta seja afirmativa, o parecer da SEAE/SDE deve ser negativo, isto é, a operação deve ser reprovada. Porém, se em qualquer uma dessas etapas se perceber que não ocorrem as situações tratadas o parecer deverá ser favorável à operação. (2011, p.87)

O modelo proposto pelas empresas Nestlé/Garoto, conhecido como modelo de excedente total, defendido por Oliver Willianson, viabilizava a análise dos efeitos líquidos de um Ato ou conduta, através do exame do trade off entre ganhos de eficiência alocativa e os efeitos anticompetitivos ou perda do bem-estar associados ao aumento de poder de mercado.

A análise da eficiência foi realizada com base apenas nas eficiências apresentadas na última audiência com o Plenário do CADE, sendo elas: 1) Redução de custos com fechamento de depósitos; 2)Ganho com redução de locação de armazéns; 3) Redução de custos com embalagens; 4) Redução de custos com alterações em fórmulas e ingredientes; 5) Aproveitamento da fórmula da Garoto em coberturas de chocolates na Nestlé; 6) Ganho com diminuição de sobrepeso; 7) Alinhamento de preços de matéria-prima e insumos; 8)Transferência da produção de achocolatados e confeitos para a Nestlé; 9) Absorção da produção de ovos de Páscoa da Nestlé pela Garoto; 10) Ganho com renegociação de frete; 11) Ganho com otimização da distribuição; 12) Ganho com renegociação de itens de embalagens; 13) Ganho com compras de derivados de cacau.

Definiu-se no julgado que a operação de fusão entre as empresas Nestlé/Garoto não atendia aos requisitos previstos no § 1º, do artigo 54, da Lei n.º 8.884/1994 (BRASIL, 1994) que permitiriam a sua aprovação pelo CADE. Da mesma forma, decidiu-se que não estavam atendidas as condições previstas no § 2º do referido dispositivo legal, até mesmo porque a rivalidade remanescente, em caso de deferimento da operação, não seria eficaz nem suficiente para compensar o risco concorrencial.

Rosa e Gonçalves fazem as seguintes afirmações sobre a análise realizada pelo CADE:

Após reconhecer que a consumação da compra da Garoto pela Nestlé permitiria o exercício de poder de mercado por parte da empresa resultante, e que as eficiências oriundas da referida operação não seriam suficientes para coibir aumentos de preços e evitar prejuízos aos consumidores, o CADE determinou a desconstituição total do negócio, solução estrutural global envolvendo o trinômio planta, rede de distribuição e a marca Garoto (os quais deveriam ser alienados para um agente econômico que não detivesse mais do que 20% do mercado relevante de chocolates sob todas as formas). A adoção de uma solução comportamental na espécie foi acertadamente afastada pelo CADE, por não atender os requisitos do § 1 º do art. 54 da Lei 8.884/94. Com efeito, entendeu o CADE não ser admissível a celebração de um Compromisso de Desempenho que permitisse que a Nestlé continuasse detendo ou, de qualquer forma, controlando os ativos relacionados ao setor de chocolates (inclusive as marcas dos produtos), anteriormente detidos pela Garoto. (2007, p.275)

Desta forma, e como se propõe o CADE, reprimir eventual abuso do poder econômico que determinado agente pratique com a finalidade de subtrair ao concorrente uma fração do mercado não pode, por sua vez, retirar a legitimidade que cada agente econômico detém de buscar os meios de obter a liderança no mercado onde atua. Contudo, o conflito saiu da esfera administrativa e passou a ter apreciação judicial, fragilizando e trazendo uma insegurança regulatória.

2 DESENVOLVIMENTO, LIVRE INICIATIVA E A SEGURANÇA REGULATÓRIA

Ao Estado cabe o papel constitucional de agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado, conforme Artigo 174, CF/88 (BRASIL, 1988). E, sob este aspecto, Magalhões disserta sobre a relevância da proteção do consumidor e a tutela da concorrência (livre concorrência) para fins de garantia de ordem econômica nacional com o seguinte enxerto:

(…) nota-se a relevância da proteção ao consumidor e da tutela à concorrência no atual contexto econômico. Esses dois princípios devem ser resguardados a fim de se promover o bem-estar social. É por meio da manutenção da concorrência que se mantém a proteção do consumidor, uma vez que havendo uma tutela daquela evita-se comportamentos abusivos por parte de certa empresa que detenha grande poder de mercado. (2011, p. 83)

O artigo 170 da Constituição Federal do Brasil, que rege a ordem econômica através da lei e de princípios básicos, principalmente, a livre concorrência e a defesa do consumidor, tem o primado da livre iniciativa e da valorização do trabalho, garantindo-se, como regra, a liberdade de todo cidadão lançar-se no mercado para produzir e mercanciar bens e serviços e, em face disso, dispôs o artigo 173, § 4º, da Carta Magna, que “a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise a dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros” (BRASIL, 1988). Essa disposição constitucional ocasionou o surgimento da Lei n.º 8.884/1994, conhecida por Lei Antitruste, que visava

(…) a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso de poder econômico. (BRASIL, 1994)

Ao discorrer sobre o processo de surgimento das concentrações, em que se fez necessária a aplicação de princípios básicos relacionados à ordem econômica, bem como, à norma insculpida na Lei n.º 8.884/1994, Fonseca destaca:

Os mais fortes e mais hábeis, ou que querem tornar-se tais, logo descobrem meios de se fortalecer ainda mais e de atuar no mercado com predominância sobre os demais. Assim é que, de 1850 a 1880, começa a surgir um novo tipo de capitalismo, um capitalismo de grupo ou oligopolístico. […] Surge assim um novo estado industrial, em que as modernas expressões do capital se impõem de maneira desigual sobre os trabalhadores e consumidores. A crise se instaura e atinge o seu ápice no início do século XX, ficando a grande primeira guerra como o primeiro grande divisor de águas. O fenômeno da concentração de empresas surge com pujança e com determinação, gerando toda uma situação de profunda mudança e de crise. (2001, p.6)

A Carta Magna previu que dois são os responsáveis pela proteção da Ordem Econômica, sendo um deles o Estado através da edição de leis, atos e sentenças e os agentes econômicos que devem se regular pelas normas estabelecidas pelo Estado. Assim, contemplou-se o Estado como elemento normatizador e regulador das atividades econômicas que direciona o sistema econômico nacional, valorizando o trabalho humano e a livre iniciativa, para garantir a todas as pessoas uma existência digna, consoante preceituado na justiça social.

Nesse sentido, uma regulação das atividades econômicas deve ser exclusivamente técnica, a salvo de junções político-partidárias e com o escopo de que as decisões emitidas pelos órgãos reguladores sejam independentes do Executivo, contudo, cabendo ao Judiciário rever as decisões e ao Legislativo aprovando os nomes indicados pelo Executivo para tais misteres. Assim, a segurança regulatória irá ser dada para a ordem econômica a partir do cumprimento da lei que disciplina o setor da economia objeto da regulação.          

E foi nesse ponto que nasceu a controvérsia no CADE sobre a transação realizada entre as empresas Nestlé e Garoto – Ato de Concentração n.º 08012.001697/2002-89 (BRASIL, 2016) – que se enquadrava na hipótese do § 3º do artigo 54 da extinta Lei n.º 8.884/1994 que autorizava a referida autarquia a controlar os atos e contratos que eventualmente prejudicassem a livre concorrência, a posteriori à transação. O referido dispositivo legal determinava que:

Os atos de que trata o caput deverão ser apresentados para exame, previamente ou no prazo máximo de quinze dias úteis de sua realização, mediante encaminhamento da respectiva documentação em três vias à SDE, que imediatamente enviará uma via ao CADE e outra à SPE. (BRASIL, 1994)

A fusão de grandes empresas que representam uma parcela considerável do mercado de determinado produto faz com que seja necessária a análise realizada pelo CADE, uma vez que haverá a diminuição dos outros agentes econômicos no mercado de mesmo segmento, acarretando violações aos princípios gerais inseridos no artigo 170 da Constituição Federal/1988 (BRASIL, 1998). Um ponto interessante levantado por Ramos (2015) é de que “as leis antitruste não foram criadas com o objetivo de garantir a livre concorrência no intuito de proteger consumidores contra os supostos efeitos nocivos da concentração monopolística nos mercados” (p. 107). A seu turno, Magalhões discorre:

Em diversas circunstâncias, as fusões podem ser uma solução para as empresas, que terão seus custos diminuídos, possibilitando a diminuição dos preços de seus produtos. Nesse caso, por exemplo, essa operação pode ser vista como pró-competitiva e benéfica aos consumidores, já que a diminuição de preços incentiva a concorrência e, por consequência, beneficia o consumidor com preços menores e produtos de maior qualidade. (2011, p. 86)

Na época da fusão as empresas envolvidas possuíam um faturamento superior a R$ 400 milhões e atuavam nos mesmos ramos de mercado, fato este que poderia implicar na ocorrência de efeito de concentração horizontal. Nos casos de concentração de magnitude semelhante ao caso em análise era comum que fosse firmado um Acordo de Preservação da Reversibilidade da Operação (APRO) entre o CADE e as empresas requerentes, o que ocorreu no caso Nestlé/Garoto, de tal forma que, enquanto aguardava-se o julgamento do Ato de Concentração, medidas seriam adotadas para manter íntegras as estruturas administrativas, inclusive marca da empresa adquirida. Contudo, foram apresentadas quatro denúncias no sentido de que ambas as empresas estariam descumprindo o Acordo de Preservação de Reversibilidade da Operação – APRO.

A primeira referia-se às alterações introduzidas nas condições de comercialização dos produtos Garoto. A segunda relatava uma possível desestruturação da rede de distribuidores da Garoto. A terceira versava sobre a rescisão do contrato firmado com a empresa Barista Vending Systems Alimentos Ltda. e se relacionava sobre a instalação e operação de máquinas de venda (vending machines). Por fim, a quarta tratava de uma notícia vinculada no Jornal “A Gazeta”, de Vitória/ES, relatando que o presidente da Nestlé teria afirmado que centralizaria na fábrica da Garoto a produção de ovos de Páscoa a serem comercializados pelas duas empresas a partir de 2004. Entretanto, e apesar de todas estas narrativas, o CADE entendeu que a empresa cumpriu fielmente, até a data da análise, todos os compromissos firmados no APRO e declarou as quatro denúncias insubsistentes.

O fundamento, em síntese, de todas essas denúncias, recai sobre a concentração de mercado relevante versus concorrência perfeita e nas palavras de Ramos:

(…) a concorrência não pode ser vista, como já destacamos, como uma situação estática, mas sim como um processo dinâmico e incerto de rivalidade e descoberta constantes, o fato de um mercado ter apenas um ofertante em um determinado momento (ou dois ofertantes, ou poucos ofertantes) não caracteriza uma situação de monopólio (ou duopólio, ou oligopólio), desde que não existam barreiras legais à entrada de novos ofertantes (concorrentes em potencial). (2015, p. 127)

Para identificar um mercado relevante, Frazão (2017) ensina que é preciso “saber em que medida os consumidores poderiam desviar sua demanda para produtos substituíveis caso houvesse aumento de preços pós-concentração” (p. 140). Domínio de mercado e abuso de posição dominante, na lição dada por Venosa e Rodrigues (2020), não podem ser definidas somente em relação à posição que uma empresa ocupa no mercado com base nos elementos meramente quantitativos, “mas deve-se levar em conta sua faculdade de exercitar sobre o funcionamento do mercado uma influência considerável e previsível para uma empresa dominante” (p. 15). A extinta Lei nº 8.884/1994 descrevia em seu artigo 20, § 2º, que ocorre posição dominante “quando uma empresa ou grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto, serviço ou tecnologia a ele relativa” (BRASIL, 1994).

Quanto à probabilidade de ingresso de novos produtores ou de outros já existentes, constatou-se, da análise do Ato de Concentração, que a partir da fusão a Nestlé passaria a ter um amplo portfólio de produtos diversificados, em especial tabletes, bombons avulsos e candy bars, circunstância que ampliava as dificuldades de ingresso de novos concorrentes.

Após longínquos anos de discussão judicial, o CADE emitiu o Despacho Decisório nº 20/2016 (BRASIL, 2016), com algumas informações até a presente data confidenciais, em que a Nestlé Brasil Ltda. requereu ao CADE a solução não contenciosa da lide constante no processo judicial nº 0015018-08.2005.4.01.3400, notadamente porque, desde 2002, o mercado de chocolates no Brasil em muito se alterou. Essa situação foi devidamente abordada por Leal Júnior e Kempfer ao tratarem da razoável duração do processo administrativo no âmbito do sistema brasileiro de defesa da concorrência, com destaque:

(…) com relação à análise de atos de concentração de empresas (processo administrativo concorrencial), a demora na resposta da autarquia também pode gerar prejuízos consideráveis. Isso era ainda mais frequente no modelo vigente antes da nova lei antitruste, já que era permitida a realização dos atos previamente, como facultava a lei pretérita, sendo autorizado ao CADE desaprová-lo, impondo a desconstituição da operação. Os prejuízos repercutiam, obviamente, em uma esfera imensurável de pessoas, especialmente por conta da demora no julgamento. (2016, p. 215)

Nessa infindável análise sobre a compra da Garoto pela Nestlé, mais um capítulo se iniciou quando o CADE, em 24 de agosto de 2021, lançou Nota Oficial informando que:

(…) acredita que sua decisão de reprovar a compra da Chocolates Garoto S/A pela Nestlé Brasil Ltda., no ato de concentração 08012.001697/2002-89, será mantida pela justiça. A decisão deste Conselho foi correta e respaldada pelas exigências antitruste da época do julgamento. Quando, e se houver decisão judicial definitiva, transitada em julgado, que determine o rejulgamento do caso, este Conselho adotará as providências cabíveis. O Cade esclarece que não há previsão legal para acordo judicial em atos de concentração (BRASIL, 2021).

Tais circunstâncias, de imbróglio tanto administrativo quanto judicial, acarreta prejuízos aos agentes econômicos e aos consumidores, principalmente porque no decorrer de quase duas décadas o mercado de chocolates no Brasil se alterou, trazendo para o bojo da discussão Nestlé-Garoto novos cenários quanto à concorrência e a intervenção estatal.

CONCLUSÃO

Um ato de concentração empresarial não é simples, pois, ao mesmo tempo que demonstra caráter pró-competitivo, também pode demonstrar efeitos negativos na ordem econômica. Se o ato de concentração cria um verdadeiro monopólio, que futuramente acarretará a diminuição da qualidade dos produtos e o aumento dos preços, certamente afetará a livre concorrência, sendo, portanto, imprescindível a atuação do órgão responsável para assegurar a livre concorrência no mercado, que no caso do Brasil é o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE.

A consolidação de empresas, por meio de fusões e aquisições, busca produzir eficiência através do aumento da produtividade, melhoria da qualidade dos bens e serviços, assim como a eficiência e desenvolvimento tecnológico ou econômico, redução de custos e diminuição do valor dos produtos. Entretanto, se tal conduta deliberadamente dificultar a livre competição, faz-se necessária a realização de uma análise detalhada por parte do CADE e, quanto ao caso Nestlé-Garoto, ultrapassou-se o campo administrativo levando-se o caso para o Poder Judiciário.

Não há dúvidas de que a atuação do CADE, no caso em análise, fragiliza a titularidade dos agentes econômicos e a sua liberdade de usar o poder econômico de mercado, que são legítimos, em explorar a atividade econômica, dentro das regras legais a evitar o seu abuso, mas com vistas a aumentar a concorrência no mercado em disputa com os demais agentes que igualmente buscam a preferência do consumidor. O não encerramento do caso Nestlé-Garoto traz para o cenário brasileiro uma insegurança quanto ao sistema regulatório e ao sistema judicial, notadamente porque não trouxe nenhum dos resultados almejados pelos agentes econômicos.

REFERÊNCIAS

AMATO, Carlos Eduardo Lopes. Fusões, aquisições e chocolates. 2012. Disponível em http://dspace.insper.edu.br/xmlui/handle/11224/65. Acesso em: 12 set. 2021.

BRASIL. Ministério da Justiça e Cidadania. – MJC. Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Despacho decisório Nº 20/2016/GAB6/CADE. Processo nº 08700.003861/2016-30. Requerimento nº 08700.003861/2016-30 (pedido extraordinário de reapreciação do AC nº 08012.001697/2002-89). Brasília/ DF: 04/10/2016.

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Atos de Concentração: Nota Oficial Ref.: Caso Nestlé-Garoto. Publicado em 24/08/2011. Atual. em 02/05/2021.

FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Lei de Proteção da Concorrência: comentários à legislação antitruste. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017.

LEAL JUNIOR, João Carlos; KEMPFER, Marlene. A razoável duração do processo administrativo no âmbito do sistema brasileiro de defesa da concorrência. Argumentum, Marília/SP, v. 17, p. 197-221, jan./dez. 2016.

MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Análise econômica do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

MAGALHÕES, Natácia Lopes. As fusões e suas repercussões para os consumidores e a concorrência. Revista de Direito da Concorrência, n. 24, pp. 79-100, set. 2011.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Os fundamentos contra o antitruste. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

ROSA, José Del Chiaro da; GONÇALVES, Priscila Brólio. O CADE, a Concorrência e a Operação Nestlé-Garoto. Revista de Direito Administrativo, v. 245, pp. 263–278, 2007. VENOSA, Silvio de Salvo; RODRIGUES, Cláudia. Direito Empresarial. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2020.


[1] Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Estágio Pós-Doutoral pela Universidade de Coimbra. Professor Titular da Universidade de Marília. Coordenador-Adjunto do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da UNIMAR. Advogado e parecerista.

[2] Doutoranda e Mestre em Direito pela Universidade de Marília. Bolsista CAPES. Advogada.

[3] Mestre em Direito pela Universidade de Marília. Advogado.