A INAPLICABILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL NO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO DAS PESSOAS JURÍDICAS
20 de setembro de 2023THE INAPPLICABILITY OF THE EXISTENTIAL MINIMUM TAX TREATMENT OF CORPORATIONS
Artigo submetido em 13 de setembro de 2023
Artigo aprovado em 18 de setembro de 2023
Artigo publicado em 20 de setembro de 2023
Cognitio Juris Ano XIII – Número 49 – Setembro de 2023 ISSN 2236-3009 |
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Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito e natureza jurídica do mínimo existencial; 3. O princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do mínimo existencial; 4. O Simples Nacional como medida de justiça fiscal assegurado às pessoas jurídicas; 5. Conclusão; 6. Referências.
RESUMO
O mínimo existencial, instrumento de justiça fiscal, tem como objetivo preservar, da constrição estatal, por meio de tributo, parcela de riqueza do contribuinte destinada ao seu sustento. Há, todavia, divergência doutrinária acerca da aplicabilidade deste instituto às pessoas jurídicas, tema que é abordado neste artigo. Mediante o aprofundamento do conceito, natureza jurídica e fundamentos do mínimo existencial, depreende-se que é inadequado aplicá-lo às pessoas jurídicas. O raciocínio desenvolvido neste trabalho, que é hipotético-dedutivo, pautado no método de pesquisa bibliográfica, aponta para esta conclusão, eis que o mínimo existencial tem como núcleo fundamental a dignidade da pessoa humana, princípio constitucional este que é de titularidade exclusiva do indivíduo, razão pela qual às pessoas jurídicas tal direito não pode ser conferido. Neste sentido, a fim de conceder à atividade empresarial garantias que observem o princípio da preservação da empresa e sua função social, há o regime especial de tributação Simples Nacional, que tem o propósito de cumprir tal função, não podendo, portanto, atribuir à norma jurídica do mínimo existencial tal encargo.
Palavras chave: Direito Tributário; competência tributária; capacidade contributiva; mínimo existencial; pessoas jurídicas.
ABSTRACT
The existential minimum, an instrument of fiscal justice, aims to preserve from state constriction, by means of taxation, a portion of the taxpayer’s wealth intended for their livelihood. There is, however, doctrinal disagreement about the applicability of this institute to legal entities, which is the subject of this article. After examining the concept, legal nature and foundations of the existential minimum, it emerges that it is inappropriate to apply it to legal entities. The reasoning developed in this work, which is hypothetical-deductive, based on the bibliographical research method, points to this conclusion, since the fundamental core of the existential minimum is the dignity of the human person, a constitutional principle that is the exclusive property of the individual, which is why legal entities cannot be granted this right. In this sense, in order to provide business activity with guarantees that comply with the principle of preserving the company and its social function, there is the special Simples Nacional tax regime, which has the purpose of fulfilling this function, and therefore cannot attribute this burden to the legal norm of the existential minimum.
Keywords: tax law; tax jurisdiction; ability to pay; minimum existential; corporations.
1. INTRODUÇÃO
O princípio da capacidade contributiva, que compreende um dos limitadores da competência tributária, pertence ao rol dos princípios norteadores do Direito Tributário. Caracteriza-se pela aptidão que cada contribuinte possui de dispor de parcela de seu patrimônio para fazer frente aos gastos do Estado, a título de tributo. Trata-se, portanto, da possibilidade do indivíduo de suportar a carga tributária, sem que esta suprima os direitos fundamentais que lhe são inerentes. Segundo Tipke e Lang, “é princípio fundamental da imposição justa” (2008, p. 201).
Do princípio da capacidade contributiva, pode-se extrair outros dois limitadores da competência tributária: o princípio da vedação ao confisco e o mínimo existencial. Este último, tema central deste trabalho, protege o indivíduo do encargo da tributação, para que sua subsistência não sofra intervenção do Estado. Desta feita, garante ao sujeito passivo a não constrição do Estado da parcela indispensável à sobrevivência. Enquanto o confisco atinge diretamente a propriedade do indivíduo, o mínimo existencial visa garantir os direitos fundamentais deste, conferindo-lhe condições mínimas de existência com dignidade.
O mínimo existencial, diante do seu caráter garantidor da vida digna dos contribuintes, é instituto abordado continuamente pela doutrina. A linha tênue entre o limite do poder estatal de tributação e a garantia da subsistência traz discussões importantes para que a aplicabilidade do direito em tela seja de fato observado no ordenamento jurídico brasileiro. É exatamente a lição de Yamashita e Tipke, quando afirmam que “O Estado não pode, como Estado Tributário, subtrair o que, como Estado Social, deve devolver” (2002. p. 34).
A controvérsia analisada neste trabalho decorre do aprofundamento do estudo do mínimo existencial, a partir da exploração da sua natureza jurídica e seus fundamentos norteadores, para que seja possível responder ao seguinte questionamento: o mínimo existencial, instrumento de efetivação da justiça fiscal, é aplicável às pessoas jurídicas?
Muito embora o mínimo existencial não esteja expressamente positivado no ordenamento jurídico brasileiro, a existência da norma jurídica correspondente decorre da interpretação de dispositivos constitucionais, em especial do princípio da dignidade da pessoa humana. A subsistência do indivíduo, que é objeto da referida parcela de riqueza indisponível ao Estado pela proteção conferida pelo mínimo existencial, configura elemento mínimo que garante a própria existência e dignidade do ser humano.
Neste sentido, uma vez que o mínimo existencial tem como núcleo fundamental a dignidade da pessoa humana, sendo esta última princípio que é inerente ao ser humano exclusivamente, vê-se uma incompatibilidade de conferir a titularidade do direito às pessoas jurídicas. Conforme leciona Silva Neto, “[…] dignidade é da pessoa humana. Excetuam-se da previsão constitucional, portanto, as pessoas jurídicas. Sindicatos, associações, empresas, órgãos públicos não podem ser abrangidos pelo comando do art. 1º, III, da Constituição” (2009, p. 269).
É com base neste raciocínio da inadequação das pessoas jurídicas ao princípio da dignidade da pessoa humana, que parte da doutrina entende que não se pode atribuir a estas a aplicação do mínimo existencial. A partir desse pressuposto é que o presente artigo se debruçará, dissecando as normas jurídicas que permeiam o mínimo existencial.
O estudo desta relação entre mínimo existencial e as pessoas jurídicas decorre não só de divergência doutrinária[3] a respeito da abrangência de proteção de tal instituto, mas especialmente porque o aprofundamento da identificação das raízes de uma norma jurídica traz elementos importantes para a sua aplicabilidade no ordenamento jurídico.
Para tanto, o raciocínio desenvolvido neste trabalho foi o hipotético-dedutivo, pautado no método de pesquisa bibliográfica, por meio do estudo da doutrina acerca da natureza jurídica e dos fundamentos do mínimo existencial, que propiciam este resgate do porquê e para quem este instituto foi estabelecido no Direito Tributário.
Justamente para se chegar a essas respostas é que no primeiro tópico serão analisados o conceito e a natureza jurídica do mínimo existencial, a partir do qual, no segundo tópico, será elucidado o princípio da dignidade da pessoa humana como seu núcleo, e, por fim, no terceiro tópico, será analisada a incompatibilidade entre o instituo e as pessoas jurídicas, sendo estas submetidas a outras formas de benefício tributário para o fomento da atividade econômica, como é o caso do regime do Simples Nacional.
2. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DO MÍNIMO EXISTENCIAL.
É indiscutível que a tributação é essencial à manutenção de uma sociedade, pois torna possível a vida em coletividade. Segundo leciona Pezzi, “[…] o tributo é instrumento que permite a existência material do Estado, traduzindo um dever patrimonial que os indivíduos devem suportar para viverem em coletividade” (2010, p. 50). Todavia, a atividade fiscal não deve se antepor aos direitos fundamentais e sociais dos contribuintes.
Vários são os princípios e instrumentos que visam efetivar a justiça no âmbito fiscal. Haja vista que é por meio do tributo que o Estado se mantém, cada vez mais fica evidente a necessidade de ferramentas que impeçam cobrança desmedida, e que, consequentemente, possam afetar a própria liberdade do cidadão. O princípio da capacidade contributiva mostra-se, atualmente, como o mais eficaz meio de equilíbrio entre a clara necessidade de tributar pelo Estado, com o absoluto direito do contribuinte de ter seu sustento preservado.
Neste sentido, diz-se que a capacidade contributiva consiste na disponibilidade do indivíduo de ceder parcela de sua renda e patrimônio para fazer frente aos gastos públicos, a título de tributo, sem que tal atividade interfira negativamente no seu sustento e de sua família, bem como em sua propriedade. Para Sousa, portanto, capacidade contributiva é “ a soma de riqueza disponível depois de satisfeitas as necessidades elementares de existência, riqueza esta que pode ser absorvida pelo Estado sem reduzir o padrão de vida do contribuinte e sem prejudicar as suas atividades econômicas” (1975, p. 95).
O sujeito passivo que detém riqueza que é utilizada unicamente para custear as despesas com suas necessidades básicas, com seu próprio sustento e de sua família, não pode sofrer qualquer forma de constrição patrimonial pelo Estado. Sendo assim, o mínimo existencial pode ser considerado como a menor parcela de renda necessária para garantir ao ser humano o acesso aos direitos fundamentais e sociais, que lhe proporcionarão vida com dignidade. Nas palavras de Mosquera, por garantir princípios fundamentais e basilares “o mínimo vital, portanto, é insuscetível de tributação” (1996, p. 127).
Por essa razão, diz-se que o mínimo existencial é desprovido de capacidade contributiva, ou seja, não cabe ao Estado tributar esta parcela de riqueza destinada à subsistência do contribuinte e de sua família. Caso o Estado imputasse o pagamento de tributo aos cidadãos que não detém tal possibilidade, estaria em confronto com o seu próprio fundamento e objetivo, que é garantir aos cidadãos mínimas condições de vida com dignidade. Por conseguinte, fica o Estado autorizado a tributar apenas aquela quantia que exceder ao mínimo existencial, preservando a faixa de riqueza destinada a concretizar os direitos fundamentais e sociais.
É a partir destas considerações que se conclui que a capacidade contributiva começa além do mínimo vital, pelo que reforça o entendimento de que o mínimo existencial é destituído de capacidade contributiva. Neste mesmo sentido, ensina Costa: “[…] a capacidade contributiva só pode se reputar existente quando se aferir alguma riqueza acima do ‘mínimo vital’. Este deve ser, pois, intocável” (2003, p. 68).
O direito ao mínimo existencial, muito embora não expressamente positivado, pode ser extraído dos artigos 1°, inciso III, e 3°, inciso III, da Constituição Federal, os quais garantem, respectivamente, a dignidade da pessoa humana e a erradicação da pobreza e marginalização. São estes e vários outros direitos fundamentais que legitimam a aplicação do mínimo existencial, revelando-o, portanto, como ferramenta elementar de proteção do indivíduo. Como observa Torres, o mínimo existencial é fundamentado em diversos princípios constitucionais, como a liberdade, dignidade humana, igualdade, devido processo legal e livre iniciativa (2009, p. 36). Logo, trata-se de direito inerente ao homem, pré-constitucional, razão pela qual não é possível sua supressão ou relativização.
Quanto à sua natureza jurídica, há grande controvérsia na doutrina, haja vista que é conceituada como princípio, regra ou até mesmo valor. Como ensina Rui Barbosa, “se o quisermos determinar precisamente é uma incógnita muito variável” (Barbosa, 1891 apud Torres, 1999, p. 143). Entretanto, analisando suas características e o modo como é posto no ordenamento jurídico, é possível determinar qual a sua estrutura normativa.
Princípios são detentores de alta carga axiológica, cujas características passam pela ponderação, generalidade, caráter prima facie e alta carga axiológica, bem como sua importância é tal que as normas de conduta dependem de sua observância para possuírem validade. Portanto, para que seja caracterizado como princípio, diretriz do ordenamento jurídico, é necessário que tal direito possa ser submetido à ponderação. Alexy comenta que a ponderação entre princípios revela precedência àqueles que possuem maior peso (2011, p. 93).
Neste sentido, o mínimo existencial é direito que não pode ser ponderado frente a outro princípio, pois é regra que deve ser aplicada sem qualquer interferência. É de tal relevância que não pode ser sopesado, correndo o risco de ser aniquilado frente à aplicação de outro princípio, uma vez que seu conteúdo abrange direitos fundamentais que são inerentes à natureza humana. Sem o mínimo existencial não se tem vida digna, ou seja, é elementar a qualquer ser humano.
Não sendo princípio, tem-se que, na realidade, sua estrutura corresponde à de regra de imunidade tributária. Para Carraza, as imunidades tributárias “fixam, por assim dizer, a incompetência das entidades tributantes para onerar, com exações, certas pessoas, seja em função de sua natureza jurídica, seja porque coligadas a determinados fatos, bens ou situações” (2006, p. 682). Por se tratar de norma de negativa de competência, que impede que os entes políticos instituam tributos sobre parcela de riqueza destinada ao seu sustento, o mínimo existencial se enquadra perfeitamente em regra de imunidade.
A doutrina corrobora tal entendimento, eis que, como aponta Torres, “o mínimo existencial também não é princípio jurídico, por não exibir as principais características dos princípios, que são as de ponderação e de valer prima facie” (1999, p. 84). Acrescenta-se o entendimento de Mosquera, para quem a Constituição Federal “apresenta regras expressas de imunidade tributária em relação ao mínimo vital para a sobrevivência do homem, regras estas que estabelecem a incompetência das pessoas políticas para editarem comandos instituidores de exações tributárias” (1996, p. 128). Schlucking também pondera: “Portanto, o “mínimo isento” corresponde, em verdade, a uma imunidade, daí porque mais adequado, ao menos segundo o ordenamento brasileiro, utilizar a denominação de mínimo imune” (2009, p. 65). Destarte, o mínimo existencial tem natureza jurídica de imunidade, comportando limitação à competência tributária das pessoas políticas.
A partir de um conceito e natureza jurídica bem definidos, importa para o presente estudo aprofundar os fundamentos da regra de imunidade do mínimo vital, em especial a dignidade da pessoa humana, eis que é a partir deste ponto que se poderá analisar a quem pode ser conferida a titularidade do direito.
3. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO DO MÍNIMO EXISTENCIAL.
O artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal, elenca a dignidade humana como fundamento da República Federativa do Brasil, em seu título concernente aos princípios fundamentais. Na forma como foi disposta constitucionalmente, depreende-se que sua importância é tal, que deve ser observada e tutelada em todos os âmbitos de nosso ordenamento jurídico, até porque se apresenta como direito inerente ao homem. Caracterizando-se por ser fundamento do Estado brasileiro, republicano e federativo, a dignidade da pessoa humana pressupõe um Estado Democrático de Direito. Isto porque é neste modelo que se permite colocar o homem em primeiro plano, tornando-o fundamento e finalidade da atividade estatal, e não um meio para que o Estado alcance um fim.
Por se tratar de preceito fundamental, parâmetro para todas as normas jurídicas, a dignidade da pessoa humana é elemento determinante na elaboração e interpretação do texto do Direito Positivo. Desta forma, o Estado deve se colocar em posição de instrumento de concretização da dignidade humana de modo indiscriminado, irradiando sua proteção em todas as matérias de Direito, inclusive no âmbito tributário.
Por reunir em seu objeto de proteção os diversos direitos fundamentais e sociais, sua conceituação é de difícil elaboração, haja vista os diversos elementos que o compõe, bem como a extensa abrangência de sua garantia. Porém, para Sarlet, a dignidade da pessoa humana pode ser conceituada como: “(…) direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existências mínimas para uma vida saudável” (2010, p. 70).
Apesar de amplo, vê-se, a partir das considerações acima, que o princípio da dignidade humana assegura a todos os indivíduos as condições mínimas de sobrevivência, ou seja, a garantia de todas as necessidades básicas, que, além de lhes garantir sobrevivência, lhes proporcionam vida com dignidade. Dentre estas condições mínimas estão abarcados os direitos fundamentais e sociais mínimos, que, na prática, resumem-se ao acesso à saúde, educação, alimentação adequada, moradia, dentre outros. Uma vez que a garantia da dignidade humana efetiva os direitos fundamentais e sociais, verifica-se completa correspondência desta com o mínimo existencial.
O mínimo existencial, por permitir ao contribuinte o uso e gozo destes direitos acima elencados, inevitavelmente efetiva o princípio da dignidade da pessoa humana. Por essa razão, pode-se concluir que o mínimo existencial tem como seu núcleo e fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, que, por sua vez, também pode ser considerado o objeto de sua tutela. Nas palavras de Barcellos, “[…] o chamado mínimo existencial, formado pelas condições materiais básicas para a existência, corresponde a uma fração nuclear da dignidade da pessoa humana à qual se deve reconhecer a eficácia jurídica positiva ou simétrica” (2002, p. 229). Sendo assim, uma vez que o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser protegido de modo ostensivo em qualquer circunstância, também o é o mínimo existencial.
A partir de tal linha de raciocínio, denota-se que o mínimo existencial, por ter como fundamento a dignidade da pessoa humana, a qual garante ao indivíduo o uso e gozo dos direitos fundamentais e sociais, como saúde, alimentação, moradia, educação, trabalho, dentre outros, apresenta natureza eminentemente humana em sua titularidade.
Não há dúvidas quanto a tal consideração, uma vez que o próprio nome, princípio da dignidade humana, núcleo do mínimo existencial, sugere que apenas os indivíduos são incluídos em seu âmbito de proteção. Sendo assim, não há que se falar em garantir a outros entes a dignidade humana, sob pena de desvirtuar completamente o sentido e a essência de tal princípio. Vale lembrar as considerações do Ministro Eros Grau em seu voto da ADPF 153 de 29 de abril de 2010, ao afirmar que “(…) as coisas têm preço, as pessoas têm dignidade. A dignidade não tem preço, vale para todos quantos participam do humano” (Brasil, Supremo Tribunal Federal, 2010). É neste contexto que se conclui que as pessoas jurídicas não têm a aptidão de serem revestidas de dignidade humana.
Mediante esta proposição, vê-se a possível incompatibilidade da afirmação de que o mínimo existencial também pode abranger as pessoas jurídicas, eis que se origina do princípio da capacidade contributiva. É certo que o mínimo existencial consiste em um dos extremos da capacidade contributiva, mas alicerça-se na dignidade humana, o que torna, a princípio, impossível sua aplicação às pessoas jurídicas. Tanto as pessoas físicas como as jurídicas subordinam-se à capacidade contributiva, porém somente os seres humanos detém dignidade, motivo este suficiente a afastar tal entendimento.
Como forma de solucionar a controvérsia, é congruente conferir a garantia ao mínimo existencial exclusivamente às pessoas físicas, e proteger o patrimônio das empresas de acordo com a vedação ao confisco, cuja fundamentação é a própria proteção do patrimônio, e não da dignidade humana.
Apesar de não abarcarem o âmbito de proteção da dignidade da pessoa humana, as empresas também são alvo de assistência do Estado. Além das garantias expressas no texto constitucional, as pessoas jurídicas também gozam de determinados direitos que precipuamente se destinam às pessoas naturais, cujo âmbito de proteção e titularidade sejam compatíveis às características das empresas. É o que leciona Sarlet, ao assinalar que “(…) em havendo compatibilidade entre o direito fundamental e a natureza e os fins da pessoa jurídica, em princípio (prima facie) reconhecida a proteção constitucional” (SARLET, 2010, p. 99).
Desta feita, é possível que pessoas jurídicas sejam incluídas como titulares de direitos e garantias constitucionais que não estejam expressamente destinadas a estas, observando-se, porém, se tal correspondência não confronta os objetivos e natureza inerentes à empresa. É neste sentido que o Constituinte estabeleceu as garantias dispostas nos artigos 170, inciso IX, e 179, da Constituição Federal. Enquanto o mínimo existencial protege as pessoas de modo a garanti-las uma existência digna, o tratamento favorecido às empresas proporciona a preservação destas, assim como possibilita o cumprimento de sua função social e sua livre iniciativa e concorrência perante o mercado. Como exemplo da aplicação destes dispositivos constitucionais, tem-se o regime do Simples Nacional, que simplifica o modo de recolhimento de determinados tributos, assim como possibilita às micro e pequenas empresas o livre e possível exercício de suas atividades empresariais.
5. O SIMPLES NACIONAL COMO MEDIDA DE JUSTIÇA FISCAL ASSEGURADO ÀS PESSOAS JURÍDICAS.
Apesar da constatação de que o mínimo existencial tem seu âmbito de proteção restrito às pessoas naturais, não significa que as empresas não mereçam e não devam receber amparo estatal para exercerem suas atividades. Pelo contrário, as pessoas jurídicas são de tal importância para a manutenção da sociedade, que é justamente para a conservação do Estado que medidas devem ser tomadas a fim de as auxiliarem em suas específicas necessidades. Diniz bem explicita a questão, ao pontuar que a empresa é o núcleo convergente de interesses diversos na sociedade, uma vez que fomenta a economia, influencia o salário do trabalhador, cria de novos empregos, permite a tributação para manutenção do Estado e demais interferências que realçam sua importância econômico-social (2011, p. 47).
A proteção que deve ser conferida pelo Estado às pessoas jurídicas é de tal importância que é introduzido no âmbito jurídico por princípio específico: o princípio da preservação da empresa. Este princípio tem como objetivo principal fomentar a continuidade das empresas, determinando que todas as medidas possíveis sejam tomadas para que se evite o encerramento das atividades empresariais de qualquer pessoa jurídica. Mamede pontua que “(…) corolário do princípio da função social da empresa é o princípio da preservação da empresa, metanorma que é diretamente decorrente da anterior: é preciso preservar a empresa para que ela cumpra a sua função social (2009, p. 164).
Neste contexto, outro princípio vigente que eleva a empresa em posição fundamental para a manutenção da vida em sociedade é o da função social. Haja vista a sua indiscutível interferência na sociedade como um todo, fez-se necessário imputar às pessoas jurídicas um dever de cuidado e observância no que se refere às demais relações existentes à sua volta. Por meio deste princípio, o Estado impõe que as empresas, no exercício das suas atividades, devem impreterivelmente respeitar e, de certo modo, garantir, os direitos da coletividade concomitantemente com seus interesses individuais.
Mesclado aos princípios da função social da propriedade e função social do contrato, a função social da empresa se apresenta como um poder-dever desta de afirmar, positivamente, a sua profunda interferência na coletividade, afastando o seu foco unicamente aos seus interesses egoísticos. Neste sentido, assinala Eros Grau, que ao incluir o princípio da garantia da propriedade privada aos princípios da ordem econômica, que se subordinam à função social, há como objetivo claro “(…) de subordinar o exercício dessa propriedade aos ditames da justiça social e de transformar esse mesmo exercício em instrumento para a realização do fim de assegurar a todos existência digna” (2010, p. 252).
Não há dúvidas, portanto, que a atividade empresarial tem papel elementar em nosso meio, corroborando com o entendimento de que não devem ser excluídas do amparo estatal, principalmente, o que é objeto deste estudo, no que se refere à tributação. Neste diapasão, a Constituição Federal, em seu artigo 170, o qual dispõe acerca da ordem econômica do país, determina, no inciso IX, que as microempresas e empresas de pequeno porte deverão ter tratamento jurídico diferenciado, por meio da simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias. Logo, a Emenda Constitucional 42 de 19 de dezembro de 2003 introduziu dispositivos ao capítulo do Sistema Tributário Nacional, justamente com a finalidade de efetivar a implementação de um regime diferenciado e favorecido a tais empresas, cumprindo com os direitos já elencados na própria Constituição Federal.
Dentre os dispositivos incluído por tal Emenda, está a alínea “d”, do inciso III, do artigo 146, que confere à lei complementar instituir regras gerais sobre “definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239”. A partir disso, por meio da Lei Complementar 123 de 14 de dezembro de 2006, a qual instituiu o Estatuto da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, foi regulamentado o Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – Simples Nacional.
Tal regime visa viabilizar as atividades empresariais das micro e pequenas empresas, por meio da simplificação das obrigações tributárias, tornando menos oneroso o cumprimento de tal encargo. Neste sentido, Carvalho e Murgel ensinam que “objetiva o Simples, como o próprio nome indica, facilitar o micro e pequeno empresário na consecução de suas obrigações tributárias, livrando-os de controles burocráticos que, além de tornar penoso o cumprimento destas obrigações, oneram sobremaneira o contribuinte” (2000, p. 572). Marins e Bertoldi também comentam que este regime especial de tributação tem o “escopo de atribuir a estes contribuintes tratamento fiscal diferenciado e favorecido, em caráter parcialmente substitutivo ao regime geral e compulsório” (2010, p. 276).
Por conseguinte, a introdução deste regime, além de cumprir com o princípio da preservação da empresa, e tornar possível o cumprimento de sua função social, também tenta colocar em patamar de igualdade estas empresas e as de médio e grande porte, fomentando a atividade econômica nacional. E é imperioso tratar o Simples Nacional como regime, como ora mencionado, porque este não consiste em novo tributo, conforme parte da doutrina defende, mas sim, de fato, regime mais benéfico de tributação.
Isto porque o Simples Nacional consiste em uma faculdade que empresas possuem de participarem ou não de tal regime, diferentemente dos tributos que, em sua essência, não consistem em opção do contribuinte, mas um dever-ser, uma obrigação. Sendo assim, com o condão de cumprir às determinações constitucionais, o Simples Nacional se mostra adequado a atender às necessidades das empresas neste contexto. É o que aduz Santiago, ao afirmar que o Simples Nacional “é um instrumento de política econômico-tributária determinado constitucionalmente, visando favorecer a microempresa e a empresa de pequeno porte pela instituição de um regime diferenciado e unificado de arrecadação, fiscalização e cobrança de tributos dos três níveis de Governo – União, Estados e Municípios” (2011, p. 34).
O benefício no cumprimento das obrigações tributárias, através do Simples Nacional, propicia a manutenção da empresa de modo mais efetivo, bem como oportuniza uma maior facilidade na abertura de empresas e a preservação destas. Isto porque o mencionado regime tributário facilita a empresariabilidade, isto é, torna menos oneroso ao empresário ou à sociedade empresária a manutenção de suas atividades.
Apesar da necessidade de aprimoramentos imediatos em sua redação, o Simples Nacional cumpre papel determinante na ordem econômica do país, resguardando as pessoas jurídicas de menor potencial. Tal entendimento confirma, portanto, que não é o mínimo existencial o garantidor das condições de sobrevivência das atividades empresariais, mas sim outras normas jurídicas que garantam a facilitação do cumprimento da obrigação tributária, com base nos princípios da preservação da empresa e sua função social.
6. CONCLUSÃO
O objetivo este artigo era aprofundar o estudo das raízes do mínimo existencial, passando pelo seu conceito, natureza jurídica e fundamentos, para que fosse possível responder ao questionamento controverso na doutrina acerca da possibilidade de aplicação de tal instituto às pessoas jurídicas. A hipótese que se levantou foi de que seria inadequado conferir às pessoas jurídicas a legitimidade de tal direito, uma vez que o núcleo do mínimo existencial é a dignidade da pessoa humana, princípio este que não é aplicável às empresas.
Ora, dignidade da pessoa humana se restringe a humanos, não possibilitando o desvirtuamento de seu conceito e sua abrangência àqueles entes que, mesmo compreendendo sujeito de direitos, não podem ser confundidos com pessoa físicas, as quais detém personalidade capaz de ser revestida de dignidade.
Em que pese ser essencial o amparo estatal às empresas de menor potencial econômico, que, por sua vez, já é determinado pela Constituição Federal em seu artigo 170, inciso IX, da Constituição Federal, não é o mínimo existencial o instituto adequado a resolver tal questão. Como acima exposto, é inegável a vigência do princípio da preservação da empresa, o qual implica na adoção de todas as medidas necessárias a dar continuidade às atividades empresariais. Outrossim, a própria preservação da empresa, consequentemente, é imprescindível para que esta possa cumprir sua função social, observando direitos e garantias da coletividade. Porém, mesmo sendo objeto de tutela de inúmeras garantias e princípios, a personalidade jurídica das empresas impede que a dignidade humana seja elencada como um destes direitos.
Uma vez que o mínimo existencial, garantidor de direitos fundamentais e sociais mínimos essenciais à vida de qualquer ser humano, tem como fundamento, assim como seu próprio objeto de tutela, o princípio da dignidade da pessoa humana, por conseguinte este não se aplica às pessoas jurídicas, razão pela qual o mínimo existencial também não se aplicará. Vê-se, assim, a completa incompatibilidade entre a natureza das empresas e o núcleo do mínimo existencial.
A hipótese, portanto, inicialmente levantada, é confirmada pelas constatações realizadas a partir do aprofundamento do tema. Mostra-se impróprio, desta feita, defender a aplicação do mínimo existencial às pessoas jurídicas, muito embora a sua intenção seja a de garantir princípios como o da preservação da empresa e de sua função social. Ocorre que, a partir de uma análise técnica jurídica, o mínimo existencial não pode servir de sucedâneo para este fim. É neste sentido que o presente trabalho apresentou o Simples Nacional como ferramenta de garantia às empresas e fomento de suas atividades.
Fato é que tanto as pessoas físicas como jurídicas têm o direito de ter parcela de suas riquezas destinada, respectivamente, à sua sobrevivência e às mínimas condições de desenvolver suas atividades empresariais, sem sofrer a constrição estatal. Contudo, as normas jurídicas aplicáveis a cada titular de direitos devem ser consideradas de acordo com suas particularidades e observando a técnica jurídica aplicável, a fim de possibilitar de forma plena a sua proteção pelo ordenamento jurídico, em especial pelo Sistema Tributário Nacional.
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[1] Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestre e bacharel pela mesma Instituição. Professora universitária. Advogada.
[2] Pós-graduada em Direito Imobiliário pela Universidade Positivo e pós-graduanda em Direito Societário pela FAE Business School. Advogada.
[3] Assim, consideradas as premissas das quais partimos no exame do mínimo existencial, bem com o conceito que adotamos, como também o seu fundamento na ausência de capacidade contributiva, não observamos qualquer óbice para que não admitamos a possibilidade da proteção vital também para as pessoas morais, uma vez que efetivamente, também são portadoras de determinadas riquezas voltadas apenas à sua preservação, que, a exemplo das pessoas físicas, não podem ser consideradas além de mera capacidade econômica, de forma que insuficientes para ultrapassar o marco inicial da capacidade contributiva. (Valadão, 2008, p. 177).