A HISTÓRIA DA LOUCURA E O PODER SIMBÓLICO DA NORMALIDADE: A ORDEM BRASILEIRA

A HISTÓRIA DA LOUCURA E O PODER SIMBÓLICO DA NORMALIDADE: A ORDEM BRASILEIRA

10 de junho de 2023 Off Por Cognitio Juris

THE HISTORY OF MADNESS AND THE SYMBOLIC POWER OF NORMALITY: THE BRAZILIAN ORDER

Artigo submetido em 22 de maio de 2023
Artigo aprovado em 01 de junho de 2023
Artigo publicado em 10 de junho de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 47 – Junho de 2023
ISSN 2236-3009

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Autor:
Yury Dutra da Silva[1]

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RESUMO

O presente artigo tem como fim abordar os aspectos gerais do processo evolutivo da saúde mental no Brasil e a maneira como a “loucura” foi vista ao longo do tempo, as instituições envolvidas e a interação com a psique coletiva. A partir dessas constatações, evidenciar que o arquétipo da normalidade e, por conseguinte, as formas como a anormalidade manifestou-se ou foi  definida no Brasil representaram a operacionalização de um poder simbólico exercido pelos detentores de capital sócio-político, na linha doutrinária de Bourdieu. Aclarada essa situação, com reverberações ainda hodiernas, busca-se desenvolver uma abordagem crítica acerca do modelo de normalidade atual e de que forma estigmas e inferiorizações ainda são reproduzidas por um modelo dito contemporâneo, com claras repercussões jurídicas e, sobretudo, quanto ao tratamento normativo dispensado aos estigmatizados.

Palavras-chave: Poder Simbólico. Saúde Mental. Capital Sócio-Político. Sociologia Jurídica.

ABSTRACT

This article aims to address the general aspects of the evolutionary process of mental health in the State of Brazil and the way in which “madness” was seen over time, the institutions involved and the interaction with the collective psyche. Based on these findings, to show that the archetype of normality and, consequently, the ways in which abnormality manifested itself or was defined in the State of Brazil represented the operationalization of a symbolic power exercised by the holders of socio-political capital, in the doctrinal line by Bourdieu. Having clarified this situation, with reverberations still up to date, we seek to develop a critical approach to the current model of normality and how stigmas and inferiorizations are still reproduced by a so-called contemporary model.

Keywords: Symbolic Power. Mental health. Socio-Political Capital. Sociology.

1.     INTRODUÇÃO

2.     BREVE HISTÓRICO DA SAÚDE MENTAL

No âmbito das políticas públicas postas a cabo pelo Estado brasileiro, a temática específica da saúde mental raramente gozou de lugar de destaque. Até por volta da década de 1970, o tratamento dispensado às pessoas em estado de sofrimento mental era basicamente a atribuição da pecha de Louco e a alienação física e moral, o alijamento do seio da sociedade sob a forma de processos de internação e consequente institucionalização. Esse movimento de depósito de humanos já tinha espeque legislativo pelo menos desde 1903, conforme disposições da Lei nº 1.132 (Cabral e Darosci, 2019) e ainda possui larga implicação na mentalidade coletiva.

Decerto que o Louco é um produto histórico, criado ao gosto das sociedades e tratado conforme as determinações sócio-culturais de cada tempo, comunidade e lugar. É a fuga da norma, ou melhor, da normalidade hegemônica, que acusa a condição de anormal, de alienado e, portanto, de “doente” mental.

Assim, durante a maior parte da Idade Média, a loucura foi vista como a manifestação obscura das forças cósmicas, ameaçando a ordem universal; o louco, nesse período, não era trancafiado, mas posto a vagar fora das cidades. Já no Renascimento, em alguma medida, o destoante, o insólito, era também associado a uma forma mais esotérica de razão. Ao despontar o pensamento cartesiano do Século XVII, porém, essa figura ganha contornos de erro, equívoco, o louco passa a ser entendido como aquele a quem se nega a verdade e, nos idos dos séculos XVIII e XIX, a pessoa em estado de sofrimento mental começa a ser categorizada como doente, submetendo-se à autoridade médica (Foucault, 1978).

A gênese ideológica dos processos de institucionalização, ao menos no ocidente, parece situar-se, de tal sorte, na chamada Idade Clássica, fortemente influenciada pela doutrina do Contrato Social e por ideais iluministas de racionalidade e livre arbítrio. Essas concepções produziram a noção de que, a partir da presunção da racionalidade humana, os comportamentos desviantes decorriam de uma conduta deliberada do indivíduo, que faria a opção pelo mal (Baratta, 2002).

Essa visão, muito embora fincasse os pés da humanização das penas, conforme  lições de Beccaria[2], forneceu as bases argumentativas para o tratamento parcialmente combativo ao louco, que agora se submetia a um severo processo de estigmatização nos conhecidos manicômios, apartado de sua comunidade e submetido a regime similar ou pior que o dos delinquentes. O louco era penalizado, então, por simplesmente vir ao mundo de maneira não compatível com as exigências da normalidade prevalecente.

A partir desse retrato panorâmico, torna-se perceptível a visualização das diferentes forças que condicionaram a estruturação das categorias envolvidas na sistemática de tratamento à saúde mental e os modelos institucionais derivados. Os aspectos político, social e antropológico são determinantes na formatação desse cenário e não podem ser desconsiderados pelo poder público durante sua atuação em casos que envolvam nuclearmente o tema ou o tangenciem.

Assim é que, no Brasil, consoante a disciplina consolidada na Psiquiatria Alemã, no início do século XX, a medicina volta-se aos aspectos causais dos transtornos mentais, a sua etiologia. O conturbado e efervescente período histórico também facilita a simbiose das explicações biológicas a aspectos étnicos, éticos, políticos e ideológicos, favorecendo um ou outro grupo social portador de um discurso de poder (Cabral e Darosci, 2019, fl. 03).

A já referida Lei nº 1.132/1903[3] dava conta de reorganizar a assistência a pessoas em estado de sofrimento mental. A preocupação com o perigo comunitário que esse grupo de pessoas poderia representar já se apresentava no início do diploma, quando seu art. 1º determinava que o indivíduo nessa condição, que comprometesse a ordem pública ou a segurança das pessoas, seria recolhido a “estabelecimento de alienados”. A mesma Lei, em seu art. 4º, determinava a curatela automática a partir de decisão judicial, diminuindo drasticamente o âmbito de autonomia da pessoa destoante da norma social.

Nessa quadra histórica, desponta em importância a figura dos manicômios e, no Brasil, em 1921, por meio do Decreto nº 14.831, foi criado o primeiro Manicômio Judiciário, localizado no Rio de Janeiro. A década de 1920, aliás – na esteira da herança deixada pelas Constituições mexicana e de Weimar – representou o início de um flerte com políticas de bem-estar social, tendo como um de seus marcos a Lei Eloy Chaves, o berço normativo da previdência social por aqui.

A feroz crítica de Foucault[4] à psiquiatria moderna que, sob as vestes de boa intenção, implementa dominação e violência sobre as pessoas com a psique abalada, também pode ser ampliada ao próprio modelo de Estado. A tutela sobre o corpo do indivíduo desviante nada mais representava do que um subterfúgio para seu expurgo social e essa ideia ainda se mantém latente nas diretrizes comportamentais das instituições e das pessoas que lidam com pacientes com gravames mentais.

Esse conturbado momento também trouxe à luz do dia um odioso movimento de eugenia ou de “melhoramento do povo brasileiro”. Novamente no Rio de Janeiro, em 1923, é criada a Liga Brasileira de Higiene Mental, pelo psiquiatra Gustavo Riedel, um dos baluartes do movimento eugênico brasileiro, absolutamente determinado a normalizar a população e evitar que os genes dos indesejados fossem repassados às novas gerações (Costa, 2007).

É importante ter em cálculo que a Psiquiatria, como ramo mais recente da medicina e parcialmente dependente de conhecimentos relacionados à neurociência, possui trajetória conturbada, marcada por disputas e jogos de poder, como já dito. Nos idos de 1930, por exemplo, em meio à confusa política social getulista, que dividia a saúde pública em preventiva (empreendida por campanhas) e curativa (orientada pela Previdência Social, hoje sabidamente braço autônomo na tripartição da Seguridade Social), a categoria Psicopata ainda possuía equivocada e quase indistinta definição se contrastada com as denominações gerais.

Nesse diapasão, o Decreto nº 24.559/34[5] mostra-se artefato jurídico bastante exemplificativo, ao dispor sobre a profilaxia mental e proteção “[…] à pessoa e aos bens dos psicopatas”. Os descritos como portadores de doenças mentais à época eram diferenciados de poucas outras classes como a dos toxicômanos – hoje, mais do que reconhecidamente pessoas em estado de sofrimento mental, segundo a própria Organização Mundial de Saúde.

Esse mesmo diploma ainda trazia algumas outras emanações do pensamento da época sobre a condução dos casos das pessoas com flagelos psíquicos. Uma delas dizia respeito à terminologia “regime aberto, fechado e misto”, bem aos moldes do encarceramento clássico. O art. 7º desse Decreto dá conta de estabelecer as diferenciações dos regimes de tratamento, sendo o fechado, sobretudo, destinado a pacientes que representassem perigo a si ou a outrem no caso de serem mantidos em regime aberto.

 Porém, é no art. 9º, que a visão geral a respeito dessa espécie subalterna de paciente era demonstrada:

Art. 9º Sempre que, por qualquer motivo, for inconveniente a conservação do psicopata em domicílio, será o mesmo removido para estabelecimento psiquiátrico.

A regra, portanto, era a do afastamento. Uma vez que o “psicopata”, o desviante, ou neurodivergente representasse incômodo, inconveniente, e, frise-se, por qualquer motivo, seria ele novamente levado às portas do estabelecimento psiquiátrico que, não raro, possuía as feições de um presídio. Ao iniciar seu processo de institucionalização[6], a mesma pecha atribuída aos Outsiders de Becker[7] era imposta ao paciente psiquiátrico, numa clara liturgia de etiquetamento social: afinal, o indesejado precisa ser identificado e o era por meio do afastamento, da supressão, do trancafiamento e da repetição das rotinas típicas de uma instituição de controle orientada à imobilização.

Esse Decreto ainda trouxe um modelo específico de internação, que presumia a legitimidade da internação pelo simples fato de não haver protesto contra a hospitalização por parte do internado (art. 7º, par. 1º, “b” e “c”), mais especificamente para os casos de habitualidade e de abandono, ou quando representassem perigo para sua vida ou de outrem.

As espécies de internação, na forma de seu art. 11º, eram basicamente: a. voluntária; b. por ordem judicial ou requisição de autoridade policial; c. por requerimento psiquiátrico ou de pessoa interessada.

Tudo isso se dava em meio a um contexto bastante complexo de implementação precária de políticas públicas de saúde, num cenário interno e internacional caótico e reacionário, dialogal com um número exorbitante de pseudociências e ideias que se mostrariam absolutamente contrárias à noção vindoura de proteção dos direitos humanos.

Assim foi que a Constituição de 1934 revelou-se na forma promulgada e representava alguns avanços sociais, mas seria a de menor duração, já que o Estado de Exceção Getulista iniciar-se-ia apenas 3 anos depois, em 1937.

A Seguridade Social, hoje formada, por disposição expressa do art. 194 da Constituição Federal de 1988, por Saúde, Previdência e Assistência Social, iniciou seus passos pelas políticas de previdência, dos conhecidos CAPS[8] e, posteriormente, do IAPS. Até a década de 1950, o sistema securitário não comportava atuação em saúde pública psiquiátrica e a implementação dos serviços correlatos se dava pela divisão já mencionada: campanhas preventivas e inexpressiva atuação curativa.

Essa sistemática estabeleceu a lógica e a necessidade de que o então Ministério da Educação e Saúde pudesse celebrar acordos com os Estados visando à intensificação da assistência psiquiátrica nas regiões com defasagens no setor. Isso foi juridicamente alinhavado pelo Decreto-Lei nº 8.550/46.

Apenas em 1953, o tema Saúde passou a ter pasta própria no governo federal. Até então, tratava-se de questão conduzida em conjunto com a educação, o que obviamente não conferia o destaque necessário a nenhum dos dois tópicos, permeados por inúmeras questões próprias e com expertises absolutamente autônomas. Começava a se desenvolver um ideário de saúde pública enquanto projeto universal, saúde pública enquanto um sistema único de saúde para todos. A esse respeito, de fundamental importância as Conferências Nacionais de Saúde, com destaque para a sua 3ª edição[9], que trouxe à baila estudos sobre a criação de um verdadeiro Sistema de Saúde.

Esse processo e as discussões técnicas foram interrompidas pelo novo Estado de Exceção que se instalou em 1964, agora sob a égide das forças militares. O período é marcado por surtos de doenças como malária e dengue, e aumento da mortalidade infantil (Correia, 2010). Durante boa parte da década de 1970, em meio ao “milagre econômico”, apenas um por cento do orçamento geral da União era destinado a atividades voltadas à promoção da saúde.

 Além disso, no campo dos eventos paradigmáticos: 1. em 1986 foi criado o primeiro CAPS no Brasil, chamado de Prof. Luiz da Rocha Cerqueira (reaproveitando a extinta Divisão de Ambulatório da Coordenadoria da Saúde Mental da SES-SP) e 2. o fechamento da Casa de Saúde Anchieta. Ambos os eventos se deram em São Paulo.

Foi no âmbito dos municípios, sobretudo com a assunção de serviços de natureza básica, que uma descentralização de um futuro sistema de saúde começou a se desenhar. Antes disso, porém, ainda sob o regime de exceção militar, havia se instalado o que, para alguns críticos, pode ser chamada de Indústria da Loucura, com a privatização em massa de aparatos de prestação psiquiátrica e a medicalização em larga escala da sociedade (Resende, 2010).

Nesse cenário, que envolvia as discussões constitucionais e de redemocratização, o Movimento Sanitarista desponta em importância, trazendo discussões essenciais para a formatação do que seria hoje o espancado, mas essencial Sistema Único de Saúde. O seu ideário, que se pautou largamente em noções de saúde comunitária e participação popular, enxergando a saúde para além do corpo individualmente considerado, foi consolidado em 1986, na 8ª Conferência Nacional da Saúde, que trouxe como tema a “Saúde como direito de todos e dever do Estado” e diversos outros documentos, que delinearam o que viria a ser o SUS e se tornaram objeto de incorporação pela CRFB/88 (CONASS, 2009).

3.     A NORMALIDADE COMO PODER SIMBÓLICO E/OU CAPITAL SOCIAL

Bourdieu desenvolve sua linha teórica sobre três conceitos fundamentais: habitus, campo e capital. É a partir dessa tríade que o autor enxerga o mundo dos fatos sociais e produz sua concepção acerca do que seja o poder simbólico e sua forma de exercício. Por aqui, reduziremos esse complexo conceito ao tipo de poder posto a cabo por mecanismos não explícitos, a força coercitiva indireta e, no mais das vezes, escamoteada, consciente ou inconscientemente, pelas instituições e seus titulares. O próprio autor admoesta que esse poder possui contornos de invisibilidade e somente pode perfectibilizar-se por meio do auxílio inerte dos que a ele estão sujeitos ou o titularizam (Bourdieu, 1989).

Influenciados pelo habitus, nossos filtros condicionam como percebemos o mundo, funcionando como uma espécie de peneira interativa e de avaliação. Em alguma medida, autores de outras áreas abordaram esses filtros de distintas formas, sendo, consagrado, por exemplo, o “pensamento rápido” de Kahneman (2012), um recurso cognoscitivo traduzível à teorização bourdieusiana na forma de elementos apreendidos do habitus. Nessa quadra, há uma tentativa inegável do cérebro de diminuir seu dispêndio energético, por meio de processos semi-automatizados, sinapses facilitadas; a repercussão social, é uma representação da realidade que, em diversos momentos, pode ser meramente o espelhamento de preconceitos e açodamentos, um retrato incompleto dos fatos.

Dialético, o praxismo de Bourdieu tenta, a um só tempo, conciliar a responsabilidade pessoal dos subjetivistas com o olhar cético dos objetivistas, não adentrando necessariamente na disputa de predecessão entre existência e essência. Elucubra, então, que as dinâmicas (ou inércias) sociais perfazem-se dentro do que alcunha Campo, “espaço” de constante disputa.

A disputa é inata às relações sociais de campo. A visão sobre este e os correlatos capitais – relevantes ou não a determinadas disputas –  é um subproduto do habitus. As regras fundamentais da disputa social são, dessa maneira, introjetadas no indivíduo na forma de illusio (Bourdieu, 2001). Essa illusio, para além das próprias regras das disputas de campo, representa o aspecto valorativo dessa competição, sua lógica intrínseca carregada de significado. Por ser sintonizada ao habitus, não se projeta facilmente em distintos campos, de modo que indivíduos “naturalmente” inseridos em um dado campo social possuem dificuldades de assimilar as motivações e a própria racionalidade de um campo diverso – como visto, o habitus também dita a lupa da razão do indivíduo.

Todas essas disputas dependerão da dinâmica afeta ao campo. Porém, os jogadores não partem de posições de igualdade – raramente estarão no mesmo nível, em verdade. É que o habitus de cada conferiu-lhes diferentes capitais, ou seja, predicados mais ou menos valorizados em dado campo. Portanto, a posição dos agentes sociais dependerá do seu respectivo volume de capital relativo.

O autor elenca algumas principais categorias gerais de capital, sendo recorrente a menção aos de natureza social, cultural e econômica. Dessarte, a depender do sistema econômico de dada sociedade, este último capital será mais ou menos valorizado e seu titular gozará de maior ou menor prestígio a partir de seu domínio. Todas essas formas de capital interseccionam-se e determinam a ascensão, estabilização ou decadência de seu portador. Essas três grandes categorias de capital podem subdividir-se em várias outras ou mesmo apresentar-se paralelamente a novas criações das evoluções relacionais, não se tratando de um quadro exaustivo.

Em boa parte das vezes, os novos capitais erigem como o resultado de simbioses entre outros capitais, sendo o que acontece com o jurídico, uma mescla, segundo o autor, entre os capitais econômico e social (Bourdieu, 1999). Para os fins deste estudo, sua conotação social surge como de maior interesse.

O capital social aludido pelo autor, por sua vez, apesar da variabilidade conceitual de praticamente todas suas macroestruturas teóricas, pode ser visto como o conjunto de relações interpessoais nutridas pelo agente e dos capitais é o que parece apresentar maior carga de universalidade.

O capital cultural está atrelado à captação da “cultura legítima” de determinado povo, regularmente associada à decrépita expressão “alta cultura” – abertamente criticada por Bourdieu em mais de uma oportunidade. As discussões contemporâneas sobre relativismo cultural não alijam absolutamente essa noção de capital cultural, mas certamente servem ao fim de produzir uma visão diferenciada do que seja um capital cultural de relevância prática nos dias correntes.

A normalidade, nesse contexto, alicerça-se, como já dito, no contraste com o anormal. A norma coercitiva, portanto, de cariz jurídico, terá seu contraponto no ilícito jurídico, que é também conduta socialmente indesejada. De tal forma, a anormalidade classicamente foi vista como uma posição antijurídica, merecedora de reprimenda. A exceção era feita à anormalidade “nociva” desprovida de elemento anímico, no mais das vezes lida como inimputabilidade e objeto de tratamento específico do Direito Penal, de modo que os loucos, quando não apenados, eram trancafiados para um tratamento que os punha sob uma sorte tão amarga quanto a da sanção-pena. Mas isso já foi aludido em linhas passadas.

Essa ideia, porém, precisa ser temperada com o recurso ao processo evolutivo das tratativas à deficiência. Isso porque essa surge, colateralmente, como a medida da aceitabilidade excepcional do anormal, mas apenas em alguns contextos. Explica-se.

Há ao menos três marcos teóricos da deficiência, acompanhados do respectivo modelo de tratamento às pessoas implicadas: o da prescindência, o médico e o social (Pereira, 2019). Resumidamente, no paradigma da prescindência, a deficiência era enxergada como um castigo divino; no médico, a condição de deficiente era reduzida a uma patologia, do que derivava a tentativa de normalizar o indivíduo, por meio de uma inserção social completamente desinteressada na superação de barreiras sociais; no social, contemporâneo, a deficiência é enxergada como a conjugação de uma limitação de longa duração com uma ou mais barreiras sociais, havendo uma preocupação com a superação desses entraves de sociabilidade.

Esses modelos são mais ou menos paralelos aos sistemas de interação por integração ou inclusão. Aquele, voltado à inserção da pessoa com deficiência na comunidade, desde que houvesse uma adequação ao arquétipo de normalidade; este, interessado na colocação da pessoa com deficiência no seio comunitário, com a superação de barreiras por meio de adaptações razoáveis, não se prestando mais única e exclusivamente ao objetivo de adequar o indivíduo destoante às expectativas do perfil dominante.

Apesar de a atualidade experienciar tecnicamente o parâmetro social-inclusivo, assim sendo as normas específicas[10], não há grandes dificuldades em reconhecer-se que a anormalidade, que não se resume a deficiências, representa um decréscimo do capital social dos indivíduos. A normalidade, portanto, é valor apreciado na maior parte dos campos e representa uma posição de vantagem em relação aos destoantes, aos atípicos, ainda que se trate de uma normalidade de nicho[11], um modo de representação da realidade compartilhado por determinado grupamento inserido no macrossistema econômico.

Normalidade, porém, nos presentes dias, ganhou uma natureza mais fluida e mutável, mas nem por isso menos opressora. Isso porque a era das mídias sociais transformou o capital social (essencialmente artificial e virtual) em uma espécie de mercado de personalidades, em que capital econômico e social confundem-se, já que a personalidade dos usuários das redes digitais é objeto de monetização direta ou indireta (Martino, 2014). Isso dá azo a um sem número de novas tendências comportamentais, que influenciam, em movimento de onda, a expressão da normalidade.

Muitos outros fatores explicam a aceleração abrupta do ritmo de mudanças comportamentais e a múltipla influência das variações culturais sobre as microestruturas sociais, a liquidez dos sentimentos, a transitoriedade das percepções, assim como a fugacidade das relações pós-modernas (Bauman, 2001), apreciados perfunctoriamente por aqui.

Certo é que a normalidade na expressão – na aparência, portanto –  que é a essência conhecida pela comunidade, possui indiscutível valor econômico. Portanto, essencialmente lucrativa é a forma hegemônica de falar, vestir-se, portar-se, interagir, agir e sentir. Ou melhor, de aparentar fazer todas essas coisas, ainda que por meio de menos que trezentos caracteres.

A pressão inata exercida pela normalidade, é dizer, o anseio por participar do grupo hegemônico possui raízes profundas na psique humana, havendo teorizações que recorrem ao pensamento de grupo como modelo de sobrevivência, constrangendo os humanos ao pertencimento, sob pena de risco de extinção (Lane, 1981). De toda forma, esse vetor comportamental inadmitido é clara expressão de um poder simbólico. A normalidade é força coercitiva indireta, inominada, clara expressão da dinâmica de poder subjacente aos diversos campos da sociabilidade.

O conceito de normal hoje altera-se mais rapidamente, mas não é como se tivesse sido uma peça imutável até então. Conforme apontado anteriormente, diferentes momentos da história humana ocidental, com reflexos sobre o modelo de saúde mental adotado no Brasil, demarcaram distintas formas de classificar o normal e, por conseguinte, de tratar o destoante, transformando-o em objeto de expurgo, culto ou tratamento.

Assim é que, hodiernamente, a normalidade encontra-se em franca crise, mas apenas aparente. Enquanto, abertamente, o discurso prevalecente é o de aceitação, inclusão e respeito – muito disso devido à maior penetrabilidade da doutrina dos Direitos Humanos – na prática, o recurso ao normal ainda é prática constante e indelével.

O capital, nesse contexto, é caracterizado por sua mobilização a favor do agente em determinado campo. Essa espécie de “capital de normalidade” permite ao gamer ampla vascularidade relacional, por meio do discurso, outro poder simbólico estruturante das sociedades capitalistas.

O normal, visivelmente, tornou-se mais complexo. Os choques culturais evidenciam sua relatividade e a questão da referência como central nas discussões que envolvem esse conceito, de modo que a escolha de parâmetros é o fator de identidade entre os diferentes sistemas de normalidade. Resumidamente, um habitus poderá conferir melhores capitais de normalidade para um dado campo, mas mostrar-se fundamentalmente inapto a fornecer esses elementos para o mesmo agente em outros contextos de disputa, dificultando ou impossibilitando a mobilização de seus predicados herdados culturalmente.

4.     CONCLUSÕES

Existem forças explícitas, coerções institucionalizadas e que operam de maneira ostensiva e poderes conhecidos por nomes pomposos, mas, na teia da complexidade social, há poderes tão ou mais significativos, que atuam na surdina do inconsciente, sob a alcunha de natural, pouco explorados ou discutidos durante a maior parte do tempo. A esses poderes subjacentes, dá-se o nome de simbólicos.

A normalidade de sua atuação confere ao conceito aqui tratado a qualidade de fio condutor, plataforma operacional, e também de poder em si mesmo. O normal é, portanto, elemento de identidade entre os poderes simbólicos, capital social e, outrossim, poder em si mesmo.

No contexto específico da saúde mental, da loucura e de sua abordagem histórica, ser etiquetado como louco, apesar das variações, como regra geral, redundou em alijamento, sendo a experiência de mais de 100 anos de “hospícios” no Brasil um documento sociológico do poder simbólico empreendido pela normalidade, que se densifica por aparatos institucionalmente organizados (instituições totais) ou por atuações de sinérgicas de grupo.

Ainda que a evolução do discurso prevalecente tenha alcançado um patamar tal que a integração ou adequação do outrora louco não sejam as diretrizes operacionais em vigor (oficialmente, ao menos), os prejuízos a uma experiência social mais próxima da plena ainda hoje são enormes. Esta análise, porém, não se presta ao fim de elucidar os fatores etiológicos do fenômeno, mas, até mesmo por seu formato, a apontar eventos, harmonizando-os abstratamente com a teoria do poder simbólico.

As formas de superação da clara pressão exercida pela normalidade, agora mais fluida que outrora, parecem algo em construção e a aproximação da proteção dos direitos humanos da esfera jurídica das pessoas em estado de sofrimento mental é especial contributo para esse fim.

REFERÊNCIAS

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[1] Analista jurídico no MPAM. Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela UniBras. Bacharel em Direito pela UEA.

[2] A esse respeito, Dos Delitos e das Penas, do mesmo autor.

[3]Disponível em : <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-1132-22-dezembro-1903-585004-publicacaooriginal-107902-pl.html>  Acesso em 01 de fevereiro de 2023.

[4] Vide A História da Loucura, do mesmo autor.

[5] Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24559-3-julho-1934-515889-publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em 10 de fevereiro de 2023.

[6] Um dos efeitos mais nocivos das internação perenizadas e fundamento argumentativo da luta antimanicomial. Consiste, de forma breve, na limitação do estilo de vida do paciente às rotinas e estrutura da instituição que o alberga, de modo que o mesmo, após determinado período, perde a capacidade de integração e sociabilização externa, não conseguindo enxergar-se fora de seu manicômio. É um fenômeno amplo que não se limita ao âmbito dos pacientes em estado de sofrimento mental, ocorrendo também em larga medida com egressos do sistema carcerário.

[7] Becker, Howard S: Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Ed. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2008.

[8] Sem correlação direta, hoje o principal aparelho da Atenção Psicossocial é o CAPS, mas outro CAPS, o Centro de Atenção Psicossocial.

[9]Dados acessíveis em: https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/592-8-conferencia-nacional-de-saude-quando-o-sus-ganhou-forma . Acesso em 20 de março de 2023.

[10] A Convenção de Nova York sobre os direitos das pessoas com deficiência foi internalizada com quórum de Emenda Constitucional, compondo o bloco de constitucionalidade. É documento, assim como o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13146/2015), orientado pelo paradigma social e pela diretriz de inclusão.

[11] É dedutível que o senso de normalidade pode variar a depender, por exemplo, do campo de estudos ou do contexto sócio-político em que determinado indivíduo encontra-se inserido. O normal, portanto, dos juristas, dos físicos, dos políticos etc.