A ESTERILIZAÇÃO VOLUNTÁRIA NA LEI DE PLANEJAMENTO FAMILIAR: VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA E DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS
28 de julho de 2022VOLUNTARY STERILIZATION IN THE FAMILY PLANNING LAW: VIOLATION OF THE PRINCIPLE OF AUTONOMY AND SEXUAL AND REPRODUCTIVE RIGHTS
Cognitio Juris Ano XII – Número 41 – Edição Especial – Julho de 2022 ISSN 2236-3009 |
RESUMO: O artigo busca analisar as exigências da Lei de Planejamento Familiar (Lei n. 9.263/1996) dispostas em seu artigo 10 para a prática de esterilização voluntária, especificamente em relação ao critério etário ou a necessidade da existência de dois ou mais filhos vivos, do lapso temporal de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico a fim de desencorajar a prática da esterilização precoce, bem como da necessidade de autorização expressa do cônjuge na vigência da sociedade conjugal, além da conduta penal prevista no artigo 15 da referida norma. Para isso, o artigo utiliza do método de abordagem qualitativo e da pesquisa bibliográfica, tendo início a partir dos conceitos de autonomia privada, autonomia sexual e direitos reprodutivos. Posteriormente, serão analisadas as disposições da Lei de Planejamento Familiar para, finalmente, discutir acerca da inconstitucionalidade dos dispositivos que condicionam a esterilização voluntária a uma série de requisitos incompatíveis com os princípios que norteiam o ordenamento jurídico contemporâneo.
Palavras-chave: Lei de Planejamento Familiar. Esterilização voluntária. Autonomia sexual. Direitos reprodutivos.
ABSTRACT: The article seeks to analyze the requirements of the Family Planning Law (Law n. 9.263/1996) set out in its article 10 for the practice of voluntary sterilization, specifically in relation to the age criterion or the need to have two or more living children, time lapse of sixty days between the manifestation of the will and the surgical act in order to discourage the practice of early sterilization, as well as the need for express authorization from the spouse during the conjugal partnership, in addition to the criminal conduct provided for in article 15 of the referred rule. For this, the article uses the qualitative approach method and bibliographic research, starting from the concepts of private autonomy, sexual autonomy and reproductive rights. Subsequently, the provisions of the Family Planning Law will be analyzed to, finally, discuss the unconstitutionality of the provisions that condition voluntary sterilization to a series of requirements incompatible with the principles that guide de contemporary legal system.
Keywords: Family Planning Law. Voluntary sterilization. Sexual autonomy. Reproductive rights.
1 INTRODUÇÃO
A noção de direitos reprodutivos teve início principalmente a partir dos movimentos feministas em 1980, quando as mulheres passaram a reivindicar direitos sobre o próprio corpo, tendo como fundamento a autonomia e a liberdade sexual e reprodutiva. Buscava-se, então, dissociar a sexualidade da reprodução compulsória sobre o corpo feminino.
Esses movimentos implicaram no debate político e social acerca dos direitos reprodutivos e sexuais, assim entendidos como o conjunto de direitos que dizem respeito ao exercício livre, igualitário e democrático da sexualidade e da reprodução, sem qualquer interferência do Estado ou de terceiros, bem como o acesso a todos os meios necessários para a prática desses direitos, incluindo métodos e técnicas de fácil acesso para a contracepção.
No intuito de fazer prevalecer esses direitos, a Lei n. 9.263/1996, conhecida como Lei de Planejamento Familiar, regulamentando o artigo 227, § 7°, da Constituição Federal, enumera direitos e deveres a homens e mulheres para o exercício dos direitos reprodutivos, dispondo, dentre outras questões, sobre a prática da esterilização voluntária no artigo 10.
Para a prática da esterilização, a Lei exige algumas formalidades, tais como a necessidade de idade superior a vinte e cinco anos ou que a pessoa tenha, pelo menos, dois filhos vivos, a observância de um prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico a fim de desencorajar a prática da esterilização precoce e, ainda, a necessidade de consentimento expresso do cônjuge em caso de sociedade conjugal. No artigo 15, a Lei considera crime a realização de esterilização em desconformidade com o estabelecido no artigo 10. O inciso I, e o parágrafo quinto do artigo 10, aliás, são objeto de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal.
O presente artigo objetiva destacar a inconstitucionalidade das referidas disposições legais tendo como base os princípios da autonomia sexual e reprodutiva e da dignidade da pessoa humana, além do direito de escolha e da tomada de decisões sobre o próprio corpo. Para isso, será utilizado o método dedutivo, de natureza qualitativa, a partir de pesquisa bibliográfica, partindo das noções de autonomia privada, autonomia sexual e reprodutiva e dos direitos reprodutivos. Em um segundo momento, o artigo analisa as disposições da Lei de Planejamento Familiar para, em seguida, discorrer sobre a inconstitucionalidade do inciso I, e § 5° do artigo 10 e artigo 15 da referida Lei por se tratar de disposições que afrontam princípios constitucionais, em especial da autonomia, da liberdade, da privacidade e da dignidade humana.
2 AUTONOMIA PRIVADA
No sentido contemporâneo, autonomia privada está ligada à noção de autodeterminação, isto é, da faculdade da pessoa se autodeterminar, fazendo suas próprias escolhas de vida. A autonomia pressupõe o reconhecimento do ser humano como um agente moral, sendo capaz de decidir individualmente o que é bom ou ruim para sua vida (SARMENTO, 2016, pp. 139-140).
Conforme aduz Joseph Raz (2011, p. 347), “o ideal da autonomia pessoal se constitui na visão das pessoas controlando, até certo ponto, seus próprios destinos”. É a condição de uma pessoa de conduzir suas próprias leis, através de autorregulamentação ou autorregramento (GOGLIANO, 2000, p. 107). Pietro Perlingieri (2002, p. 17) define autonomia privada como sendo “o poder, reconhecido ou concedido pelo ordenamento estatal a um indivíduo ou a um grupo, de determinar vicissitudes jurídicas como consequência de comportamentos – em qualquer medida – livremente assumidos”. No mesmo sentido, Francisco dos Santos Amaral Neto (1989, p. 212) afirma: “a esfera de liberdade de que o agente dispõe no âmbito do direito privado chama-se autonomia, direito de reger-se por suas próprias leis.”
A autonomia privada permite o autogoverno. Cada sujeito possui liberdade para projetar sua própria vida (TEIXEIRA, 2018, p. 77) nas mais variadas situações existenciais, tais como questões afetivas, sexuais, religiosas, dentre outras (SARMENTO, 2016, p. 142). Faz parte da dignidade da pessoa humana a ampla liberdade para construir seu projeto de vida, realizar suas necessidades e efetuar suas escolhas conforme lhe promova satisfação pessoal (TEIXEIRA, 2018, p. 79). Cada indivíduo possui suas concepções de liberdade e estas devem ser consideradas em um Estado democrático de direito (TEIXEIRA, 2018, p. 79).
Para reconhecermos iguais liberdades não podemos estabelecer como limites destes mesmos direitos a nossa compreensão daquilo que é bom. Do contrário, não estaríamos reconhecendo todos como capazes de iguais direitos: afinal, teríamos um privilégio, qual seja, o de determinar, da nossa perspectiva parcial porque valorativa, aquilo que seria ‘bom’ ou o ‘bem’ aos outros, vedando a estes esse exato direito de decidirem acerca daquilo que eles entendem como mais valioso, como sua ‘melhor compreensão de vida boa (CHAMON JÚNIOR, 2005).
Assim, não cabe ao Estado, à religião, à coletividade ou à própria Constituição estabelecer os projetos de vida de cada pessoa, seus valores e formas de pensamento e o modo que deve perseguir sua vida. Cada ser humano tem autonomia para determinar suas ações e os rumos de sua existência de acordo com suas preferências subjetivas (SARMENTO, 2016, p. 143). Corresponde ao princípio da dignidade da pessoa humana o respeito pelo modo de vivência de cada ser humano, de forma que a concretização da dignidade deve ser sempre interpretada através da emancipação humana (TEIXEIRA, 2018, p. 79). Dito de outro modo, o pleno respeito à dignidade da pessoa humana envolve resguardar a autonomia do ser humano.
3 AUTONOMIA SEXUAL E DIREITOS REPRODUTIVOS
O debate acerca dos direitos reprodutivos passou a ter maior repercussão a partir dos movimentos feministas nos anos 80. Ali estavam presentes os ideais sobre direito ao próprio corpo, fundado nos princípios da autonomia e liberdade e expressos na máxima “nosso corpo nos pertence” (SCAVONE, 2007, p. 1).
Conforme destacam Sônia Corrêa e Rosalind Petcheski (1996, pp. 152-153), estes movimentos vindicavam que as mulheres pudessem determinar, seja individualmente ou em suas organizações, suas próprias vidas reprodutivas e sexuais, em condições ótimas de saúde, e bem-estar econômico e social. Nas lições de Maria Betânia de Melo Ávila (1994, p. 9), “a noção de direitos reprodutivos se constrói a partir da prática política das mulheres em torno de sua demanda na esfera reprodutiva.” Esses movimentos sempre refletiram a tensão entre a maternidade compulsória e os métodos contraceptivos como uma forma de libertação da mulher (PIOVESAN, 2009, 251).
Segundo Flávia Piovesan (2009, p. 250), direitos reprodutivos são o “conjunto dos direitos básicos relacionados ao livre exercício da sexualidade e da reprodução humana.” Maria Betânia Ávila (2003, pp. 465-469) prefere separar os conceitos de direitos reprodutivos dos direitos sexuais. Enquanto os primeiros estão relacionados à igualdade e à liberdade na esfera da vida reprodutiva, os segundos dizem respeito à igualdade e à liberdade no exercício da sexualidade. Esta distinção, segundo a autora, é crucial para que seja assegurado autonomia a essas duas esferas da vida, impedindo a moral conservadora de que a sexualidade está funcionalizada à reprodução.
Os direitos reprodutivos envolvem direitos relacionados ao exercício livre da autonomia reprodutiva e sexual de cada pessoa, ou seja, a escolha ou não em ter filhos e o número destes, além dos intervalos entre seus nascimentos, a escolha de esterilização, bem como o acesso integral aos meios necessários para a efetivação desses direitos, sem que sofra, a partir de suas escolhas, qualquer tipo de discriminação, coerção, violência ou restrição (VENTURA, 2009, p. 19).
A Conferência Internacional do Cairo sobre População e Desenvolvimento (ICPD) realizada em 1994 (da qual o Brasil foi signatário), tratou os direitos reprodutivos como um processo saudável e livre:
A saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não simples a ausência de doença ou enfermidade, em todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo e a suas funções e processos. A saúde reprodutiva implica, por conseguinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tenha a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando, e quantas vezes o deve fazer. Implícito nesta última condição está o direito de homens e mulheres de serem informados e de ter acesso a métodos eficientes, seguros, permissíveis e aceitáveis de planejamento familiar de sua escolha, assim como outros métodos, de sua escolha, de controle da fecundidade que não sejam contrários à lei, e o direito de acesso a serviços apropriados de saúde que dêem à mulher condições de passar, com segurança, pela gestação e pelo parto e proporcionem aos casais a melhor chance de ter um filho sadio.
Na Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing (1995), na qual o Brasil também esteve presente, o item 96 prescreve:
Os direitos humanos das mulheres incluem os seus direitos a ter controle sobre as questões relativas à sua sexualidade, inclusive sua saúde sexual e reprodutiva, e a decidir livremente a respeito dessas questões, livres de coerção, discriminação e violência. A igualdade entre mulheres e homens no tocante às relações sexuais e à reprodução, inclusive o pleno respeito à integridade da pessoa humana, exige o respeito mútuo, o consentimento e a responsabilidade comum pelo comportamento sexual e suas conseqüências.
O exercício da sexualidade e da reprodução diz respeito à autonomia do ser humano em decidir sobre sua vida sexual, de manter ou desfazer vínculos conjugais, de ter ou não filhos, e de utilizar métodos contraceptivos. Essas decisões somente cabem à pessoa, por ser ela à detentora do seu próprio corpo, sem quaisquer interferências, quer de terceiros, quer do Estado.
Nesse sentido, decisões sobre o próprio corpo não podem ser tomadas por terceiros ou pelo legislador, vez que essas decisões residem na esfera da intimidade, da liberdade e da privacidade de cada um, dizendo respeito à essencialidade da existência da pessoa humana (TEIXEIRA, 2018, p. 97). Na verdade, qualquer tentativa de restringir a tomada de decisões pela própria pessoa revela-se inconstitucional por contrariar expressamente o texto constitucional (artigo 5°, X).
O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar acerca da autonomia privada no tocante ao próprio corpo. Em 2010, no julgamento da ADPF 54 (BRASIL, 2012), que reconheceu o direito da gestante na interrupção da gravidez em casos envolvendo feto anencefálico, assim reconheceu o Ministro Marco Aurélio, relator do processo: “Está em jogo o direito da mulher de autodeterminar-se, de escolher, de agir de acordo com a própria vontade num caso de absoluta inviabilidade de vida extrauterina” e prossegue: “Estão em jogo, em última análise, a privacidade, a autonomia e a dignidade humana dessas mulheres”. Ainda em seu voto, destacou que a imposição estatal da manutenção da gravidez nos casos de anencefalia vai de encontro à dignidade da pessoa humana, à liberdade, à autodeterminação, à saúde, ao direito de privacidade e ao reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Também destacou sobre o conflito entre religião e outros direitos fundamentais, afirmando que a liberdade religiosa, ao mesmo tempo que permite a manifestação de vários credos, impossibilita as religiões em guiar o tratamento estatal de outros direitos fundamentais, como o direito à autodeterminação, à saúde física e mental, à privacidade, à liberdade de expressão, à liberdade de orientação sexual e à liberdade de reprodução.
Nesse mesmo caminho entendeu o Ministro Joaquim Barbosa: “a procriação, a gestação, enfim, os direitos reprodutivos são componentes indissociáveis do direito fundamental à liberdade e do princípio da autodeterminação pessoal, particularmente da mulher”.
Portanto, as decisões sobre reprodução e sexualidade estão na órbita da autodeterminação do sujeito. “A integridade corporal, ou o direito à segurança e ao controle sobre o próprio corpo, está na base da noção de liberdade sexual e reprodutiva”. O corpo humano é parte integrante do “eu” (CORRÊA; PETCHESKI, 1996, p. 160), e cada pessoa pode dispô-lo conforme sua autonomia.
4 A LEI DE PLANEJAMENTO FAMILIAR (LEI N. 9.263/1996)
O artigo 227, § 7°, da Constituição Federal dispõe acerca do planejamento familiar como livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito.
Maria Cláudia Crespo Brauner (2003, p. 15) aduz que a designação “planejamento familiar” retrata a ideia de “regulação de nascimentos, de contracepção, de esterilização e de todos os outros meios que agem diretamente sobre as funções reprodutoras do homem e da mulher e, especialmente, sobre a saúde de ambos”. Rodrigo da Cunha Pereira (2020, p. 630), por sua vez, afirma que o Planejamento Familiar é uma política pública que deve respeitar os direitos individuais e a escolha das pessoas constituírem famílias, conjugais ou não, além do desejo de ter ou não filhos.
O planejamento familiar tem uma dupla função, sendo uma delas positiva e a outra negativa. A positiva diz respeito às dimensões prestacionais, como o oferecimento de todos os métodos e recursos, além de informações para o efetivo exercício do planejamento familiar. De outra parte, no tocante à dimensão negativa, deverá ser assegurada a liberdade individual, o respeito à autodeterminação dos indivíduos (CANOTILHO, 2007, p. 858) e suas livres escolhas sexuais e reprodutivas.
A Lei n. 9.263/1996 define planejamento familiar como sendo “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” (artigo 2°). O artigo 1.565, § 2°, do Código Civil, no mesmo sentido, afirma que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, sendo vedada qualquer forma de coerção por instituições públicas ou privadas. Segundo dispõe a norma, é defeso a utilização das ações definidas na Lei de Planejamento Familiar para qualquer tipo de controle demográfico (artigo 2°, parágrafo único da Lei n. 9.263/1996).
O artigo 3º da Lei 9.263/1996, dispõe que o planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de atenção integral à mulher, ao homem ou ao casal, enumerando exemplificativamente algumas atividades básicas de atenção à saúde reprodutiva e sexual, tais como a assistência à concepção e contracepção, atendimento pré-natal, controle das doenças sexualmente transmissíveis, dentre outras atividades. O artigo 4° aduz que o planejamento familiar é orientado por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário às informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para regulação da fecundidade. Já o artigo 5° afirma que cabe ao Estado promover condições e informações, educacionais, técnicas e científicas, a fim de assegurar o livre exercício do planejamento em âmbito familiar.
Nos artigos 6° e 7°, a Lei regulamenta o exercício das ações e pesquisas no tocante ao planejamento familiar. O artigo 8° permite, desde que cumpridos alguns requisitos, a realização de experiências com seres humanos no campo da regulação da fecundidade. No artigo 9°, a Lei reforça a necessidade de oferecimento de todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção, desde que cientificamente comprovados, para o planejamento familiar.
O artigo 10 da Lei de Planejamento Familiar, de forma absolutamente contrária ao princípio da autonomia, restringe a esterilização voluntária, permitindo-a somente em homens e mulheres capazes, maiores de vinte e cinco anos ou em qualquer idade desde que tenham, pelo menos, dois filhos vivos. Além disso, a Lei prescreve um prazo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico para que a pessoa tenha acesso a serviço de regulação de fecundidade, visando desencorajar a esterilização precoce (artigo 10, I). Nos casos que acarretam risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, desde que testemunhado expressamente por dois médicos, a esterilização também poderá ser realizada (artigo 10, II).
O parágrafo 1º exige registro de expressa manifestação de vontade para realização da esterilização voluntária. Essa manifestação não terá validade se a pessoa estiver com a capacidade de discernimento alterada (§ 3° do artigo 10). O parágrafo 2° veda a esterilização cirúrgica em mulheres durante período de parto ou aborto, excetuadas as causas de comprovada necessidade. A disposição seguinte proíbe a histerectomia e a ooforectomia.
Senão bastasse os dispositivos anteriores, os quais já demonstram séria afronta ao princípio da autonomia e da dignidade da pessoa humana, o legislador condiciona a esterilização ao consentimento expresso de ambos os cônjuges durante a sociedade conjugal (§ 5°, do artigo 10). O parágrafo 6° determina que em pessoas absolutamente incapazes, a esterilização somente ocorrerá mediante autorização judicial. Os artigos 11 a 14 tratam de competências do Sistema único de Saúde, além de vedar a indução ou instigamento à esterilização, bem como a exigência de atestado de esterilização ou teste de gravidez para quaisquer fins. Os demais artigos tratam dos crimes e penalidades, determinando pena de reclusão a quem realizar esterilização cirúrgica em desacordo com as formalidades do artigo 10 destacado alhures.
5 A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 10, I, e § 5° E DO ARTIGO 15 DA LEI DE PLANEJAMENTO FAMILIAR (LEI N. 9.263/1996)
A Constituição Federal trata da Lei de Planejamento Familiar no artigo 226, § 7º, prescrevendo que seu exercício é de livre decisão do casal, competindo ao Estado fornecer recursos educacionais e científicos, sendo vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Na mesma linha, o artigo 1.513 da Lei civil veda qualquer pessoa, seja ela de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.
Os dispositivos objetivam assegurar a plena liberdade das escolhas existenciais e íntimas dos integrantes do grupo familiar a fim de promover o desenvolvimento da personalidade de cada componente. É uma forma de proteger os espaços existenciais de maior intimidade da pessoa, impedindo qualquer invasão por parte do legislador, do Poder Judiciário, do Poder Executivo ou, ainda, dos particulares (TEIXEIRA; TEPEDINO, 2021, p. 14). Nesse sentido, por expressa disposição constitucional e infraconstitucional, compete ao Estado apenas e tão somente o fornecimento de recursos educacionais e científicos para o exercício do planejamento familiar, sendo vedada qualquer outra forma de interferência nas decisões da vida íntima e privada da família.
Ocorre que alguns dispositivos da Lei de Planejamento Familiar (especialmente o artigo 10, I, e § 5°, e artigo 15), contudo, se mostram absolutamente discrepantes do mandamento constitucional, interferindo sobremaneira na vida íntima e privada de cada pessoa, desconsiderando a liberdade e a autonomia no tocante às decisões existenciais dos indivíduos.
Assim dispõe o artigo 10, I, e § 5°, da Lei n. 9.263/1996:
Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações:
I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;
II – risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.
[…]
§ 5º Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.
A primeira questão a ser levantada diz respeito às exigências de que homens e mulheres tenham a idade mínima de vinte e cinco anos para a realização do procedimento ou, que possuam, pelo menos, dois filhos vivos.
Primeiramente é importante destacar que a maioridade é atingida aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil. É exatamente o que dispõe o artigo 5° do Código Civil. Aliás, lembre-se que o casamento é permitido inclusive aos dezesseis anos, com autorização dos pais (artigo 1.517). Então parece claro que a legislação não se desvencilhou do caráter patriarcal e matrimonial como era antigamente, dando maior atenção ao casamento e à procriação do que à autonomia do indivíduo que não deseja ter filhos.
Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente permite a adoção por maiores de dezoito anos (artigo 42), o que, novamente, parece uma contradição da norma que exige a idade de vinte e cinco anos para a esterilização. Nesse sentido, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (2017), em parecer intitulado “Da (in)justiça no planejamento familiar” entende que “Quem é considerado qualificado para adotar também deve ser considerado autossuficiente para decidir se deseja ou não procriar”. E continua: “Não perceber isso é um contrassenso que vilipendia os direitos à privacidade e à intimidade, à liberdade, à igualdade e à dignidade da pessoa humana”.
A autonomia reprodutiva é um princípio fundamental, impondo ao Estado o dever de não-intervenção nas decisões pessoais, notadamente em âmbito da intimidade e privacidade da vida humana, exceto nos casos em que de fato a pessoa não possa sozinha expressar sua vontade. Logo, o critério da idade mínima de vinte e cinco anos é totalmente desproporcional, sendo mais adequado o critério da capacidade civil plena e da maioridade civil para o acesso à esterilização voluntária, assim como todos os demais atos que evolvam a vida civil (VENTURA, 2009, p. 94).
Nesse sentido, revela-se absolutamente desproporcional a imposição da idade de vinte e cinco anos (sete a mais do que a própria maioridade civil) para a prática de um ato relativo à autodeterminação reprodutiva, atrelada à esfera privada e íntima das pessoas (INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, 2017).
De outra banda, a Lei possibilita que a pessoa possa fazer a esterilização em qualquer idade desde que possua pelo menos dois filhos vivos. Ora, não bastasse a imposição compulsória da maternidade, a lei ainda exige o número de filhos a serem gerados antes da esterilização, como se o Estado pudesse interferir na decisão de cada pessoa em ter ou não filhos. Outra inconstitucionalidade latente no mesmo dispositivo legal.
A liberdade de não procriar constitui direito fundamental da pessoa humana, como reflexo do direito à vida, à liberdade e à autodeterminação e corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. A não procriação remonta à noção de liberdade geral para gerir e administrar a própria vida, de reproduzir ou não reproduzir, do momento em que isso ocorre e de quantos filhos terá caso opte pela reprodução. Além disso, a liberdade de não procriar é justificada no direito da pessoa sobre o seu próprio corpo, a chamada autodeterminação física (BOTTEGA, 2007, pp. 59-60).
Ora, a esterilização voluntária se dá nos casos em que o indivíduo não deseja procriar, ou, em outras palavras, para que possa exercer ativamente sua vida sexual sem riscos de futura gravidez indesejada. A esterilização voluntária, portanto, faz parte da liberdade sexual de cada pessoa, não havendo qualquer sentido a lei exigir que o indivíduo já possua filhos para realizar a esterilização se o objetivo do ato cirúrgico é justamente o de não procriar.
Essa situação, aliás, se assemelha ao conceito de biopoder destacado por Michel Foucault (1999) para referir-se às práticas dos Estados modernos de controle das populações a partir da sujeição e regulação dos corpos. A sexualidade, então, se traduz à função reprodutiva:
A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se […]. O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado, não possui eira, nem beira, nem lei (FOUCAULT, 1999, pp. 9-10).
Devido à flagrante inconstitucionalidade do inciso I do artigo 10, o Partido Socialista Brasileiro, em 2018, moveu Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN n. 5.911), requerendo a declaração parcial do texto no tocante à necessidade da idade de vinte e cinco anos ou a existência de dois filhos vivos. Na mesma ação, o partido pugna pela declaração total da inconstitucionalidade do § 5° do artigo 10 que exige o consentimento do cônjuge para a esterilização voluntária. Na petição inicial, o partido aduz que a idade mínima de vinte e cinco anos ou a necessidade de dois filhos vivos são exigências arbitrárias que traduzem interferência indevida no planejamento familiar. Assim, não cabe ao Poder Público interferir em decisões sobre fertilidade e reprodução, pois essa interferência é típica de regimes antidemocráticos.
Além das evidentes inconstitucionalidades acima mencionadas, o caput do artigo 10, I, da Lei de Planejamento Familiar, exige a observância do prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período em que a pessoa passará por acompanhamento visando “desencorajar” a esterilização precoce. Por mais absurdo que possa parecer, a expressão “desencorajar” é utilizada pela lei.
Exigir um período para que o Estado possa tentar desencorajar a prática da esterilização voluntária significa, para além da afronta ao princípio da liberdade de escolha e da autonomia, uma negação da capacidade crítica de cada ser humano. É como se as pessoas fossem incapazes de decidir sobre seus projetos de vida, sobre o que é bom ou ruim para si, necessitando de um Estado paternalista para a tomada de decisões (MORAES, 2014, pp. 812-813). Nesse sentido:
A prescrição de dilações temporais e o esforço normativo para esmorecer aqueles que buscam a esterilização voluntária materializa uma intromissão ilegítima no planejamento familiar, planificação que compete apenas à mulher, ao homem ou ao casal. Para além disso, esse expediente dilatório configura uma espécie de aliciamento pró-natalidade, que pode ter como resultado maternidades/paternidades indesejadas, existentes tão-somente pela coação – explícita ou velada – por parte dos agentes públicos (INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA, 2017).
Um terceiro dispositivo da Lei, o qual vem tomando sérias críticas e que também é objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN n. 5.097), movida pela Associação Nacional de Defensores Públicos – ANADEP, em 2014 (ainda pendente de julgamento), diz respeito ao § 5°, do artigo 10 da Lei de Planejamento Familiar que assim dispõe: “Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges”.
Essa imposição legal, assim como as já citadas, impede a plena autonomia sexual e reprodutiva dos indivíduos. A determinação legal retira a liberdade da pessoa casada sobre seu próprio corpo (VENTURA, 2009, p. 94), concedendo a outrem que não a detentora do corpo, a decisão sobre a esterilização. Conforme destacado na petição inicial da ADIN n. 5.097 “condicionar a realização da cirurgia de esterilização voluntária à anuência de terceiro (no caso, do cônjuge) constitui ato atentatório à autonomia corporal e ao direito ao planejamento reprodutivo”.
Uma das justificativas para a determinação constante no dispositivo é a de que o princípio da solidariedade familiar impõe a todos os envolvidos no ambiente familiar a tomada de decisões relativas ao desenvolvimento da família, incluindo, daí, a decisão de ter filhos. Ocorre que esse princípio jamais se sobreporá em relação à pessoa humana e sua existencialidade. O corpo humano não pertence ao casal, mas à pessoa. Conforme aduz Ana Carolina Brochado Teixeira (2010, p. 52), o corpo pertence à pessoa, cabendo somente a ela dar a destinação que melhor lhe aprouver. E o corpo feminino é o mais afetado nesse caso dada a nítida desigualdade de gênero que sempre se mostrou presente. Ana Cláudia Silva Scalquette (2010, p. 447) aduz:
Tendo sido examinados os principais princípios relacionados ao direito ao planejamento familiar, resta-nos concluir que a mulher é, indubitavelmente, aquela que mais sofre as consequências da decisão de ter um filho, pois é aquela que, em regra, carrega a criança em seu ventre durante os nova meses de gestação, que passa pelas dores do parto, que se submete a um procedimento cirúrgico, que tem o dever de alimentar o seu filho recém-nascido por meio da amamentação, ou que, principalmente, busca a realização da maternidade superando todos os obstáculos físicos, sociais e jurídicos, além de continuar desempenhando todos os papeis que, até então, exercia, como o de esposa e de profissional.
Conforme aduzem Heloísa Helena Barboza e Vitor Almeida (2017, pp. 261-262), embora o dispositivo possa parecer, a priori, compatível com a igualdade de gênero, já que exige o consentimento de ambos os cônjuges durante a vigência da sociedade conjugal para a esterilização voluntária, a mulher sofre muito mais os impactos da norma do que o homem. A mulher ainda é vítima de agressões físicas e preconceitos em várias situações da vida. Além disso, o ônus da gravidez e da criação dos filhos recai com maior amplitude sobre as mulheres, já que são elas que sofrerão as mudanças corporais com a gestação, alimentação da criança e demais cuidados. Por maior que seja a solidariedade e o afeto do cônjuge ou companheiro, será sempre a mulher quem sofrerá todas as consequências físicas e psicológicas da gestação, do parto e do cuidado com o filho. Diante disso, não há como estender a decisão da esterilização ao homem, cabendo, unicamente, à detentora do próprio corpo que é a mulher (TANNURI; HUDLER, 2014).
Vera Regina Pereira de Andrade (2012, p. 141), nesse sentido, descreve a mulher como protagonista da esfera privada, configurada como o local de reprodução natural, exercendo as atividades reprodutoras, de filiação e trabalho doméstico. É nítida, nesse sentido, a permanência de uma sociedade patriarcal onde o papel social da mulher é casar, procriar, parir e cuidar dos filhos (BOITEUX, 2016). A sua sexualidade é, portanto, aprisionada pela função reprodutora (ANDRADE, 2012, p. 141), como se reprodução fosse uma consequência necessária da sexualidade.
Conforme mencionado na petição inicial da ADIN n. 5.097 “toda mulher deve exercer o seu direito ao planejamento reprodutivo de forma consciente e livre de qualquer interferência, tanto do Estado como de qualquer outro indivíduo.” Conforme alegado, a escolha de ter ou não filhos, bem como a quantidade destes, incumbe tão somente à mulher, que é titular do direito à liberdade de escolha e disposição sobre o seu próprio corpo. “Cabe à mulher, e tão somente a ela, decidir o que fará com seu próprio corpo, bem como fazer todas as opções relativas ao planejamento reprodutivo de forma livre e incondicionada”.
Por fim, cumpre ainda destacar que, verificada a absoluta inconstitucionalidade dos dispositivos mencionados (artigo 10, I, e § 5° da Lei de Planejamento Familiar), o artigo 15 da mesma lei, o qual tipifica como crime as esterilizações feitas em desacordo com o artigo 10, também se revela, por consequência, inconstitucional. Nesse sentido:
Imaginar situação na qual a mulher venha a ser punida criminalmente em razão de ter realizado esterilização voluntária sem consentimento do cônjuge é além de injusto, impor à mulher uma sanção descabida e desproporcional, principalmente nos casos em que a mulher sustenta, não raras vezes, sozinha o núcleo familiar e já possui, pelo menos, dois filhos (BARBOZA; ALMEIDA, 2017, p. 263).
O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, que atua como amicus curie na ADIN n. 5.097, também defende a descriminalização da conduta tipificada no artigo 15 da Lei de Planejamento Familiar. Segundo o Instituto, a consciência e a liberdade para a tomada de decisão sobre o próprio corpo são bens jurídicos que devem ser tutelados, de forma que “Não pratica crime quem renuncia à proteção do próprio bem jurídico no exercício de sua liberdade constitucional.” O direito penal, conforme destacado na petição, não pode servir como desincentivo ao indivíduo (e principalmente à mulher) que decide submeter-se à esterilização do seu próprio corpo. “Proteger a função reprodutiva por meio do direito penal, na forma da lei 9.263/96, é desproporcional, socialmente inútil e inadequado: o sistema penal é meio inidôneo para realizar política pública de planejamento familiar”.
Não há dúvidas, portanto, de que a imposição de sanções criminais contra a esterilização é uma negação do direito à autodeterminação sexual e reprodutiva, em especial das mulheres (CORRÊA; PETCHESKI, 1996, p. 158).
Por todo o exposto, entende-se que o artigo 10, I, e § 5°, e artigo 15 da Lei de Planejamento Familiar, são inconstitucionais por afrontar sobremaneira o princípio da autonomia reprodutiva e sexual das pessoas, em especial das mulheres, impossibilitando que estas exerçam plena autonomia e liberdade de escolha sobre o seu próprio corpo.
Há, portanto, muito o que avançar em termos de direitos reprodutivos no Brasil. É urgente que o país avance na efetivação dos direitos reprodutivos, em especial da mulher, reconhecendo a autonomia sobre seu corpo (BOITEUX, 2016), e o seu direito à autodeterminação. Isto significa tratar as mulheres como “atores capazes de tomar decisões em assuntos de reprodução e sexualidade – como sujeitos, e não meramente como objetos, e como fins, não somente como meios das políticas de planejamento familiar e populacional” (CORRÊA; PETCHESKI, 1996, p. 163).
Muito mais do que fornecer os métodos e técnicas disponíveis para o exercício dos direitos reprodutivos, o planejamento familiar deve respeito às escolhas de cada pessoa, sem qualquer tipo de interferência, seja do Estado, de terceiros ou do cônjuge ou companheiro. Não há dúvidas, portanto, de que a Lei de Planejamento Familiar está longe de garantir a autodeterminação sexual e reprodutiva, contrariando expressamente a Constituição Federal. Caberá, portanto, à Suprema Corte, à luz dos princípios da autonomia, liberdade e dignidade da pessoa humana, declarar inconstitucional o artigo 10, I, e § 5° e o artigo 15 da referida Lei.
CONCLUSÃO
A Lei de Planejamento Familiar, embora editada posteriormente à Constituição Federal, demonstra absoluta disparidade com os princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia sexual e reprodutiva, notadamente em seus artigos 10, I, e § 5° e 15.
Inicialmente, no tocante à exigência de que o sujeito possua mais de vinte e cinco anos para a esterilização voluntária, observa-se que a disposição se mostra bastante incongruente com o restante do ordenamento jurídico. Isso porque, conforme dispõe o artigo 5° do Código Civil, a maioridade é atingida quando o indivíduo completa dezoito anos de idade. A partir daí terá plena capacidade para exercer os atos da vida civil. Aliás, o casamento é permitido quando o sujeito já tenha dezesseis anos de idade e a adoção é permitida aos dezoito anos. Ora, é nítido que o ordenamento jurídico, ainda carregando raízes patriarcais e patrimonialistas, preocupa-se muito mais com o casamento e com a procriação do que com o direito à autodeterminação, circunstância bastante dissonante do direito contemporâneo.
De outra banda, no tocante à exigência de possuir dois ou mais filhos vivos, independentemente da idade, este requisito demonstra clara afronta à liberdade de não procriação, que decorre do direito da pessoa sobre o seu próprio corpo. Cabe à pessoa, e tão somente a ela, decidir se quer ou não ter filhos e a quantidade destes. A esterilização voluntária faz parte da autonomia sexual, possibilitando que cada um exerça sua sexualidade sem riscos de procriação. Exigir a presença de filhos quando a esterilização serve justamente para prevenir gravidez indesejada não faz qualquer sentido.
Não fosse o bastante, a Lei ainda exige um prazo de sessenta dias entre a manifestação de vontade e o ato cirúrgico para que a pessoa seja “desencorajada” de proceder a esterilização, como se as pessoas fossem incapazes de decidir o que é bom ou ruim para si mesmas. Esse dispositivo apenas confirma a imposição compulsória do Estado de uma maternidade muitas vezes indesejada, retirando a plena autonomia da mulher sobre seu próprio corpo.
No tocante ao consentimento do cônjuge para a esterilização, percebe-se que a referida exigência é absolutamente atentatória ao princípio da autodeterminação. O casamento não dá a ninguém a possibilidade de decidir sobre o corpo de outro. As escolhas existenciais de cada um sempre terão prevalência em relação às decisões da família. Essa disposição, assim como as demais, atenta principalmente ao corpo feminino, já que é a mulher que sofrerá com as transformações físicas e psicológicas da gestação e dos cuidados com a criança. Cabe somente à mulher decidir sobre seu corpo, bem como fazer as escolhas relativas ao planejamento reprodutivo sem sofrer qualquer interferência, tanto por parte do Estado quanto do cônjuge.
Por fim, considerando que as disposições previstas no artigo 10, I, e § 5° da Lei de Planejamento Familiar revelam-se inconstitucionais, o artigo 15, que tipifica como crime a esterilização realizada em desacordo com o artigo 10, também se mostra, por óbvio, inconstitucional, já que não cabe ao direito penal realizar política de planejamento familiar.
Diante de todo o exposto, é nítido que a Lei de Planejamento Familiar, ao condicionar a esterilização voluntária a uma série de exigências, não cumpre com seu papel de assegurar a liberdade, a autodeterminação e as decisões íntimas de cada pessoa sobre o próprio corpo, sendo imperioso que o Supremo Tribunal Federal julgue inconstitucional as disposições contidas no artigo 10, I, e § 5°, da Lei n. 9.263/1996 em relação à exigência de idade mínima de vinte e cinco anos, ao lapso de sessenta dias para desencorajar a pessoa à prática da esterilização, à necessidade de consentimento do cônjuge, bem como à criminalização prevista no artigo 15.
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[1] Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Especialista em Direito Público, em Direito de Família e Sucessões e em Processo Penal. Advogado. igorguindani@gmail.com.
[2] Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Especialista em Direito Processual. Advogado. luan.eduardo.steffler@gmail.com.