A CONTRATAÇÃO DE SOCIEDADE ENTRE SI, POR PESSOAS QUE SE CASARAM OU QUE IRÃO SE CASAR COM MAIS DE 70 ANOS DE IDADE

A CONTRATAÇÃO DE SOCIEDADE ENTRE SI, POR PESSOAS QUE SE CASARAM OU QUE IRÃO SE CASAR COM MAIS DE 70 ANOS DE IDADE

14 de março de 2025 Off Por Cognitio Juris

THE CONTRACT OF PARTNERSHIP BETWEEN THEMSELVES, BY PEOPLE WHO HAVE MARRIED OR WHO WILL GET MARRIED OVER 70 YEARS OF AGE

Artigo submetido em 08 de março de 2025
Artigo aprovado em 12 de março de 2025
Artigo publicado em 14 de março de 2025

Cognitio Juris
Volume 15 – Número 58 – 2025
ISSN 2236-3009
Autor(es):
José Rubens Hernandez[1]

Resumo: Este estudo verifica os passos que podem ser seguidos por pessoas casadas no regime da separação legal de bens, com mais de 70 anos de idade, que pretendem contratar sociedade entre si, simples ou empresária, que se tornou possível ante a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a qual resolveu o Tema 1.236, cujos efeitos permitem a partir de agora a mudança do regime de bens nessa hipótese. Analisa as sociedades em relação às quais a proibição constante do art. 977 do Código Civil, de contratar sociedade entre si, continua valendo. Aborda também qual o regime de bens no casamento ou na união estável das pessoas maiores de 70 anos, quando não celebram pacto antenupcial. E conclui pelo avanço proporcionado pela decisão do STF, ao derrubar o etarismo constante do Código Civil de 2002.

Palavras-chave: Regime de Bens; Casamento; União Estável

Abstract: This study examines the steps that can be followed by married individuals over the age of 70 who are under a legal separation of property regime and wish to form a partnership between themselves, either non-commercial or commercial. This has become possible following the decision of the Supreme Federal Court (STF), which addressed Issue 1,236, whose effects now allow the change of property regime under this scenario. The study analyzes the partnerships to which the prohibition of contracting between spouses, as stated in Article 977 of the Civil Code, still applies. It also discusses the property regime in marriage or in a stable union for individuals over the age of 70 when no prenuptial agreement is made. It concludes by noting the progress made by the STF decision, which overturns the ageism maintained by the 2002 Civil Code.

Keywords: Asset Regime; Marriage; Stable Union

Introdução

O estudo do regime de bens em casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoas maiores de 70 anos de idade constitui tema de relevância jurídica e social, especialmente no contexto da crescente participação de pessoas dessa faixa etária na população brasileira. As últimas décadas testemunharam significativas transformações no perfil demográfico brasileiro por causa do aumento expressivo na expectativa de vida e consequente elevação na proporção de idosos na população, transformando os núcleos familiares em multigeracionais[2].

Essas mudanças trazem à tona questões complexas relativas aos direitos patrimoniais, mas também e principalmente aos direitos da personalidade das pessoas idosas, especificamente quanto à possibilidade de contratação de sociedade de qualquer natureza entre cônjuges e exercício do empreendedorismo por casais, mesmo porque é e sempre foi significativo o número de sociedades familiares no Brasil[3] e, conforme GORDON e NICHOLSON (2019), elas sempre protagonizaram importantes atividades no mundo todo.

O Código Civil Brasileiro de 2002, em seu artigo 977 estabelece que os cônjuges não podem, entre si, contratar sociedade quando casados sob o regime da comunhão universal e no da separação legal de bens. A proibição atinge, conforme FARIAS e ROSENVALD (2024), tanto as sociedades simples, quanto as empresárias[4]. Estende-se, na verdade, a todas as sociedades contratuais, porque as estatutárias, como as cooperativas e as sociedades por ações, conforme se verá, estão fora deste contexto.

Significa dizer que pessoas com mais de 70 anos, casadas ou que vivam em união estável sob esse regime de bens, não podiam, desde o advento do Código Civil de 2002, exercer profissão em comum, como por exemplo a medicina ou a advocacia, debaixo de uma sociedade simples que resolvessem criar, tampouco empreender juntas quaisquer atividades econômicas, se desejassem fazer isso através de uma sociedade empresária limitada.

A decisão do STF altera significativamente esse estado de coisas e, ao que se vê, a disposição legal que embora ainda perdura em nossa legislação, visa a proteger os interesses patrimoniais do casal, buscando evitar conflitos de interesse e assegurar que o exercício do empreendedorismo não afetem adversamente a vida conjugal.

A norma restringia a liberdade de os cônjuges contratar, entre si, sociedade simples ou de empreender, especialmente daqueles com mais de 70 anos de idade, porque estavam impedidos – de modo que até então se apresentava como definitivo – de promover a alteração desse regime de bens no casamento, situação essa que sofreu mutação ante a recente decisão do STF devido à solução ao Tema 1.236, resultante do julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário 1.309.642-SP, fixando precedente constitucional de efeitos erga omnes a respeito[5].

No caso das pessoas casadas sob o regime da comunhão universal, nas palavras de FARIAS e ROSENVALD (2024, p. 297),

… não se olvide, porém, que os cônjuges casados na comunhão universal podem requerer a mudança de regime de bens, consoante lhes faculta o §2º do art. 1.639 da mesma legislação, de modo a atender ao balizamento legal. Já os cônjuges casados no regime da separação obrigatória, não tendo possibilidade de mudança de regime (se a causa for definitiva), teriam duas opções: retirada da sociedade de um dos sócios da empresa ou dissolver o casamento.

Aparentemente a decisão do STF (STF) coloca um ponto final no assunto, liberando igualmente pessoas com mais de 70 anos para adotarem o regime de bens que acharem mais adequado às suas peculiares situações conjugais, mas, como será visto, ainda há necessidade, para as pessoas casadas antes da tese fixada, de promover a mudança judicial do regime de bens caso queiram contratar sociedade entre si, mesmo porque a decisão da Excelsa Corte não atinge de modo direto o art. 977 do Código Civil. Para quem pretende se casar, a solução está na celebração de pacto antenupcial prevendo, por exemplo, o regime da separação convencional ou da comunhão parcial de bens, que admitem a contratação de sociedade entre si.

Daí, a contratação de sociedade, simples ou empresária, por pessoas já casadas no regime da separação legal de bens depende da mudança do estatuto que rege a relação patrimonial conjugal. Para as pessoas que vivem em união estável, o procedimento é mais simples, bastando a mudança, por escrito, para o regime que escolherem. Tanto no casamento quanto na união estável, a melhor interpretação é essa, de que o regime legal – o da separação obrigatória – é o que rege a relação patrimonial das pessoas que se casarem com mais de 70 anos de idade, caso não tratem do assunto em pacto antenupcial ou não promovam a mudança do regime de bens na constância da união.

Portanto, este texto explora a intersecção entre o regime de bens no casamento e na união estável de pessoas com mais de 70 anos e a sua capacidade de celebrar contratos de sociedade entre si, à luz do recente posicionamento do STF. Serão analisadas as implicações dessa evolução, que certamente confere maior autonomia não só patrimonial, mas também e principalmente à personalidade das pessoas idosas como um todo, em seus aspectos não patrimoniais, ampliando os horizontes de realizações pessoais para casais que pretendem empreender entre si ou exercer uma profissão em comum, celebrando contratos de sociedade.

  1. O regime legal de bens para as pessoas maiores de 70 anos

Quando promulgado o Código Civil de 2002 (CC/2002), a previsão constante do seu art. 1.641, II, trazia restrição às pessoas com mais de 60 anos de idade, estabelecendo, quanto a elas, o regime da separação legal de bens no casamento[6]. A Lei nº 12.344, de 9 de dezembro de 2010 elevou essa idade para 70 anos[7].

Conquanto a redação original do Código Civil tenha sido elaborada a partir de 1969 por uma comissão de juristas presidida por Miguel Reale, com início de sua tramitação no Congresso Nacional em 1975[8], seu texto foi aprovado e promulgado cerca de 25 anos depois e não passou por atualizações minimamente necessárias em razão das inúmeras mudanças sociais verificadas nesse período, o que me tem feito compará-lo ao filme O curioso caso de Benjamin Button, em que o protagonista nasce velho e rejuvenesce constantemente ao longo da trama. O Código, que agora passa por estudos de reforma que não tratam do assunto objeto deste estudo[9], rejuvenesce a cada dia pela jurisprudência, como revela a tese ora firmada pelo STF, objeto deste estudo.

Quando promulgado o Código, o etarismo fomentado pelo dispositivo em análise não deixou de ser criticado pela doutrina, mesmo porque por trás desse pseudo paternalismo estatal de se proteger a pessoa idosa, restringindo o regime de bens que poderia adotar no casamento, também limitava a participação em sociedades contratuais. DINIZ (2021, p. 215) afirma que não se pode olvidar que o nubente, que sofre tal capitis diminutio imposta pelo Estado, tem maturidade suficiente para tomar uma decisão relativamente aos seus bens e é plenamente capaz de exercer atos da vida civil, logo, parece-nos que, juridicamente, não teria sentido essa restrição legal em função de idade avançada do nubente, salvo o fato de se tornar mais vulnerável psicológica e emocionalmente, podendo, por isso, ser alvo fácil do famoso chamado “golpe do baú”.

DINIZ (op. cit) chegou mesmo a afirmar que não haveria inconveniente algum, de qualquer espécie, em se permitir que pessoas maiores de 70 anos se casassem pelo regime da comunhão, desde que a escolha fosse permitida ao casal, seguindo a novel decisão do STF nessa linha.

Antes, porém, o Departamento Nacional de Registro de Integração (DREI) havia editado instruções normativas proibindo as pessoas casadas no regime da separação legal de contratar sociedade entre si, chegando a ir além do texto legal, prevendo a proibição até mesmo de contratação com terceiros[10], o que não tem cabimento algum face aos elementares princípios da especificidade da norma e da irretroatividade da lei quanto às sociedades já constituídas sob a égide do Código Civil de 1916. Esse posicionamento, por certo, foi revisto pelo Parecer DNRC/Cojur nº 125/03 e pelo Enunciado 204 das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, que afirma: A proibição de sociedade entre pessoas casadas sob o regime da comunhão universal ou da separação obrigatória só atinge as sociedades constituídas após a vigência do Código Civil de 2002. Além disso, não perdurou a orientação quanto à proibição de contratação, pelas pessoas casadas nesses regimes, de sociedade com terceiros.

É importante dizer que a Lei nº 6.404, de 1976, que regula as sociedades por ações, que é espécie de sociedade estatutária, desde então não traz nenhum dispositivo que impeça cônjuges, qualquer que seja o regime de bens que tenham adotado, de constituir esse tipo de sociedade entre si, como escrevem FREITAS e URBANO (2014):

No que diz respeito às sociedades anônimas, sejam as fechadas ou abertas, os juristas parecem concordar, sem maiores percalços, que a norma do art. 977 do Código Civil de 2002 não impede que cônjuges, mesmo que casados sob o regime da comunhão universal ou da separação obrigatória, possam ser acionistas de uma mesma companhia. Com efeito, não seria muito razoável e até mesmo de difícil controle e fiscalização, em especial no caso das companhias abertas, estabelecer que determinados cônjuges não pudessem adquirir ações de uma mesma sociedade anônima.

A propósito, o art. 80 de tal diploma legal exige ao menos duas pessoas, físicas ou jurídicas, para subscrever todas as ações em que se divide o capital, pouco importando se casadas ou não, tampouco o regime de bens que tenham adotado em suas relações conjugais.

Quanto às sociedades cooperativas, embora configurem-se como sociedades simples por força do art. 982, parágrafo único, do Código Civil, são reguladas por leis especiais[11], consistindo também em espécie de sociedade estatutária, em relação à qual o sócio não celebra contrato, mas sim adere ao regramento constante do estatuto em vigor quando de seu ingresso na entidade[12]. Por conta disso, configurando a norma do art. 977 do Código Civil em regra proibitiva que restringe a participação de pessoas como sócias, entre si, a vedação diz respeito tão somente às sociedades contratuais, das quais são exemplos a sociedade simples, regulada pelos artigos 977 e seguintes, e a sociedade empresária do tipo limitada, cujo regramento consta dos artigos 1052 e seguintes. MAXIMILIANO (1998), sobre a interpretação extensiva e restritiva das normas explica que:

A interpretação extensiva não faz avançar as raias do preceito; ao contrário, como a aparência verbal leva ao recuo, a exegese impele os limites da regra até ao seu verdadeiro posto. Semelhante advertência, mutatis mutandis, tem cabimento a respeito da interpretação restritiva: não reduz o campo da norma; determina-lhe as fronteiras exatas; não conclui de mais, nem de menos do que o texto exprime, interpretado à luz das ideias modernas sobre Hermenêutica. Rigorosamente, portanto, a exegese restritiva corresponde, na atualidade, à que outrora se denominava declarativa estrita; evita a dilatação, porém não suprime coisa alguma.

A peculiaridade diz respeito, portanto, apenas em relação às sociedades contratuais, sejam simples ou empresárias, porque é essa a interpretação que se admite a partir da redação do art. 977 do Código Civil, cujo núcleo tem o verbo contratar como elemento principal:

Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória. (g.n.)

Percebe-se que essa proibição pode ser contornada, no regime da comunhão universal de bens, a partir do art. 1.639, §2º, também do Código Civil, que permite a modificação do regime de bens na constância do casamento, afirmando esse dispositivo:

Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.

[…]

§ 2º É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.

O problema é que, no regime da separação legal, ao atingir os 60 ou, agora, mais recentemente, os 70 anos de idade, terminavam as esperanças para essas pessoas de contratar sociedade entre si, porque daí para frente estariam sujeitas até o fim da relação conjugal ao regime a elas imposto pelo legislador, conforme explicam FARIAS e ROSENVALD (ob. cit.):

Não se olvide, porém, que os cônjuges casados na comunhão universal podem requerer a mudança de regime de bens, consoante lhes faculta o §2º do art. 1.639 da mesma legislação, de modo a atender o balizamento legal. Já os cônjuges casados no regime da separação obrigatória, não tendo possibilidade de mudança de regime (se a causa for definitiva), teriam duas opções: retirada da sociedade de um dos sócios da empresa ou dissolver o casamento..

Diante deste cenário, pergunta-se: a tese fixada pelo STF permite, agora, que pessoas casadas no regime da separação legal de bens alterem-no por escritura pública? Outra dúvida: essas pessoas podem contratar sociedade entre si a partir de agora? Precisam tomar alguma providência antes?

Passemos, então, à análise dessas questões.

  • A tese fixada pelo STF quanto ao tema 1.236

A tese fixada pelo STF coloca a pessoa idosa em situação de plenitude quanto ao exercício dos direitos da personalidade, prevendo que poderá, de forma livre e consciente, estabelecer por escritura pública o regime de bens que lhe aprouver, quando for se casar. Permite também, por outro lado, a mudança do regime de bens pelas pessoas já sujeitas a tal regime de bens, qualquer que seja a data do casamento.

A decisão eliminou, portanto, o etarismo mantido pelo Código Civil em seu art. 1.641, II. Dentre os direitos da personalidade que permitem o desenvolvimento da pessoa em todos os aspectos e sem limitações injustificáveis, está certamente o de a pessoa tornar-se e manter-se plena, como dona de seu destino, com a possibilidade, inclusive em termos concretos, de empreender com a pessoa com a qual está casada ou de com ela formar sociedade simples para, por exemplo, explorar uma profissão qualquer, como a advocacia ou a medicina.

Em linhas gerais, o STF afirmou que o regime legal de bens das pessoas que se casarem daqui para frente sem pacto antenupcial, seguindo a posição externada por DINIZ (op. cit.), tendo um dos cônjuges mais de 70 anos, será o da separação previsto no art. 1.641, II, do Código Civil. Essa é a melhor interpretação da tese fixada pelo Tribunal, afigurando-se esse em regime especial que se estabelece como regime supletivo, inclusive o estabelecido pelo art. 1.640, porque aplicável apenas aos casais formados por cônjuges que se casarem antes dos 70 anos de idade. Significa dizer que, pretendendo adotar outro regime de bens que não o da separação legal, as pessoas com mais de 70 anos estabelecerão as regras pertinentes em pacto antenupcial. Eis a redação aprovada pela Excelsa Corte no precedente constitucional em que fixou a tese sobre o assunto:

Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública.

Ponto relevante que permite a conclusão acima exposta é que o STF não declarou a inconstitucionalidade de todo o inciso II, ou de parte dele, do artigo 1.641 do Código Civil de forma direta, mas, diferentemente, adotou uma interpretação conforme a Constituição para esse dispositivo legal, ou seja, sem redução do texto legal, que, ainda assim, tem eficácia erga omnes por força do disposto no parágrafo único do art. 28, da Lei nº 9.868, de 1999[13].

Para SILVA (2006), quanto a essa técnica hermenêutica,

Basta que o Supremo Tribunal Federal dê o nome de interpretação conforme a constituição a qualquer esclarecimento de significado de qualquer termo de qualquer dispositivo legal, na forma como já vista acima, para que qualquer interpretação divergente, ainda que seja também no sentido de manter a constitucionalidade de uma lei, torne-se impossível. Com isso, o Supremo Tribunal Federal não somente desempenha sua função de guardião da constituição de forma cada vez mais centralizada, como passa a ter a possibilidade quase que ilimitada de excluir qualquer “desobediência” interpretativa por parte de quase todos os órgãos estatais. Para tanto, a interpretação conforme a constituição cai como uma luva.

Quer isso dizer que a proibição de contratar sociedade entre si, por cônjuges casados no regime da separação legal, permanece em vigor, mas pode ser contornada: embora o artigo estabeleça o regime de separação de bens como padrão para casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoas maiores de 70 anos, tal norma é modificável pela manifestação de vontade expressa, livre e consciente, dos nubentes ou dos conviventes, que desejarem optar por um regime de bens diferente.

De todo modo, a decisão do STF irradia efeitos erga omnes: quem se encontrar em tal situação, ou seja, estiver prestes a se casar, poderá escolher o regime de bens, que não pode, ainda, ser alterado posteriormente, na constância do casamento, por simples escritura pública, dependendo, por força do art. 1.639, §2º, do Código Civil, de autorização judicial[14].

Diferentemente, as pessoas que vivem em união estável, poderão, a partir de agora, modificar esse regime para outro, bastando a formalização, seja por meio de documento público ou particular, lembrando que a união estável não exige escritura pública para que os conviventes tenham o regime de bens fixado, bastando que estabeleçam regras pertinentes quando houver interesse em um tratamento patrimonial diferente, seja para alterar o regime supletivo contido no art. 1.640, do Código Civil e, agora, quanto às pessoas com mais de 70 anos, o regime específico, também supletivo, constante do art. 1.641, II.

Também é importante lembrar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ressignificou a Súmula 377 do STF, fazendo-o a partir do julgamento dos Embargos de Divergência em REsp nº 1.623.858-MG (2016/0231884-4), complementando a redação desse enunciado, para assim posicionar-se por meio da Súmula 655:

Aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum.

Esse esforço, sabe-se, não é apenas econômico, podendo consistir em cuidados com a família, com a casa, e, agora, com a sociedade, por exemplo, simples ou empresária.

  • A contratação de sociedade entre si, pelas pessoas sujeitas ao regime da separação legal de bens

Reforçando a proibição constante do art. 977 do Código Civil, como observado por FARIAS e ROSENVALD, encontramos acórdão de relatoria da Ministra NANCY ANDRIGHI:

As restrições previstas no art. 977 do CC/02 impossibilitam que os cônjuges casados sob os regimes de bens ali previstos contratem entre si tanto sociedades empresárias quanto sociedades simples.[15]

Agora, com a tese fixada pelo STF, os cônjuges com mais de 70 anos poderão contratar sociedade entre si, mas não poderão fazê-lo diretamente, dependendo da prévia modificação do regime de bens, tal como prevista no art. 1.639, §2º, do Código Civil.

Essa, aliás, pode ser a justificativa que levará as pessoas casadas no regime da separação legal a pedirem a modificação para outro regime, ou seja, que pretendem não só conviver como casal, mas também empreender juntas ou contratar sociedade simples para exercer uma profissão, arte ou ofício em comum. Afinal de contas, é possível que haja affectio societatis entre pessoas casadas, com mais de 70 anos de idade, que as motive a trabalhar juntas, em sociedade, buscando a realização plena em comum exercendo ofícios que não consistem em empresa, mas representam, na forma prevista no parágrafo único do art. 966, do Código Civil[16], o exercício de arte, ofício ou profissão. Em tais circunstâncias, não se vê justificativa plausível para impedir que pessoas casadas contratem sociedades, simples ou empresárias, entre si.

As pessoas sujeitas ao regime da separação legal muitas vezes optavam, ao tentarem estabelecer um negócio ou atividade não empresarial, por constituir sociedade para tanto, por apenas um dos integrantes do casal com terceiros figurando como sócio, vertendo para a entidade criada muitas vezes todo o patrimônio do casal, ficando o cônjuge não sócio de fora da pessoa jurídica e, portanto, sem controle algum quanto aos atos do que se propôs a participar formalmente do negócio, mostrando-se bastante perigoso esse caminho, pois, em vez de a lei impedir a fraude, acabava por fomentá-la com essa proibição de natureza etária.

  • Conclusões

Em linhas gerais, a partir das premissas estabelecidas por este estudo, chega-se às seguintes conclusões:

  1. A proibição legal não atinge as sociedades estatutárias

A proibição legal constante do art. 977 do Código Civil, de pessoas casadas no regime da comunhão universal e no da separação legal de bens diz respeito tão somente às sociedades contratuais, como as sociedades simples propriamente ditas e as sociedades empresárias do tipo limitada. Não atinge as sociedades estatutárias, como as cooperativas e as sociedades por ações.

  • A separação legal de bens é o regime supletivo para as pessoas com mais de 70 anos de idade

O regime legal de bens para as pessoas com mais de 70 anos de idade é o da separação legal. Significa dizer que, não havendo pacto antenupcial, prevalecerão as regras desse regime. A tal regime é aplicado o enunciado da Súmula 655 do STJ. E, havendo interesse, as pessoas interessadas podem tanto celebrar pacto antenupcial, quanto promover a alteração do regime de bens na constância do casamento ou da união estável.

  • Fim do etarismo e ampliação da autonomia

A decisão do STF no Tema 1.236 representa um marco importantíssimo contra o etarismo no direito brasileiro. Ao permitir que pessoas com mais de 70 anos escolham, por meio de escritura pública por meio da qual estabeleçam um pacto antenupcial, nos termos da lei, e também que possam alterar o regime de bens, dependendo para tanto, de autorização judicial,  a Corte Constitucional reconhece  plenas capacidade e autonomia desses indivíduos em gerir seus próprios destinos, inclusive no âmbito patrimonial e empresarial.

  • Maior liberdade para empreender ou exercer atividades sob sociedade simples

Com a possibilidade de adotar o regime de bens que melhor atenda às suas necessidades, casais com mais de 70 anos podem agora empreender juntos de forma livre e segura, como também exercer, em comum, atividades artísticas ou profissionais debaixo de uma sociedade simples. Isso abre um leque de oportunidades para a realização de projetos pessoais e profissionais, impulsionando a participação ativa dos idosos na sociedade. Poderão empreender sem nenhum óbice, constituindo sociedade por ações, não precisando de nenhuma modificação no regime de bens ou, se preferirem, poderão, para contratar sociedade empresária entre si ou para constituir sociedade simples, primeiro pleitear a modificação judicial do regime de bens para, por exemplo, o regime da comunhão parcial. Com o trânsito em julgado da decisão que resolver a mudança do regime de bens, aí poderão celebrar o contrato de sociedade entre si.

  • Proteção patrimonial e familiar

A escolha do regime de bens adequado permite aos cônjuges idosos proteger seus patrimônios individuais e familiares, evitando conflitos de interesses e garantindo maior segurança jurídica em seus negócios e atividades. Com maior liberdade, poderão adotar o regime que melhor se enquadrar à situação peculiar de cada casal, como, por exemplo, o da comunhão parcial de bens, se forem empreender ou exercer atividade artística ou profissional juntos, sob uma mesma sociedade simples.

  • Modernização do direito de família

A decisão do STF contribui para a modernização do direito de família brasileiro, reconhecendo as novas realidades sociais e familiares e promovendo a igualdade e o respeito à autonomia das pessoas idosas.

  • Estímulo à economia e ao desenvolvimento Social

Ao incentivar o empreendedorismo e o exercício de atividades profissionais entre os idosos, a nova regra pode gerar benefícios para a economia e o desenvolvimento social do país, pois essas pessoas têm muita experiência, conhecimento e habilidades valiosas que podem gerar negócios e reverter renda para essas unidades familiares.

  • Necessidade de adequação legislativa

Embora a decisão do STF represente um avanço significativo, ainda há a necessidade de adequação legislativa para garantir a plena autonomia da personalidade da pessoa idosa, pois, colocando-se a necessidade de modificação do regime de bens para as pessoas já casadas, para que, só depois, possam celebrar contrato entre si, coloca o casal nessas circunstância em situação de espera por uma demorada tutela jurisdicional que pode levar um ano ou mais, prejudicando sobremaneira o exercício de atividades empreendedoras ou profissionais nessa fase mais adiantada da vida, em que não se tem mais o luxo de esperar, mas sim de realizar, de fazer, de empreender, tudo imediatamente.

  1. Importância da orientação jurídica especializada

É fundamental que os casais com mais de 70 anos que desejam alterar o regime de bens ou constituir sociedade empresarial busquem orientação jurídica especializada para garantir a segurança e a efetividade de seus direitos.

  • Reflexões para o futuro

A decisão do STF abre caminho para novas reflexões sobre os direitos da personalidade e a autonomia das pessoas idosas em diversos aspectos da vida social. É importante que a sociedade continue debatendo e buscando soluções para garantir a plena participação dos idosos em todos os âmbitos da vida em comunidade, permitindo-lhes durante toda a vida, mesmo em idades mais avançadas, o pleno exercício de todos os direitos da personalidade, sejam eles patrimoniais ou imateriais.

Ribeirão Preto, 08 de março de 2025.

José Rubens Hernandez – Mestre e Doutor em Direito, Advogado

Referências

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil, Direito de Família, 35ª edição revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2021.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, volume 6, 16ª edição. São Paulo: Juspodivm, 2024.

FREITAS, Bernardo Vianna e URBANO, Hugo Evo Magro Correa. Velhos e novos pensamentos sobre a sociedade entre cônjuges, in Empresa Familiar, Estudos Jurídicos. COELHO, Fábio Ulhoa e FÉRES, Marcelo Andrade, Coordenadores. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 207.

GORDON, Grant e NICHOLSON, Nigel, Empresas familiares: seus conflitos clássicos e como lidar com eles. São Paulo: Disal, 2019.

MAXIMILIANO, p. 200. Hermenêutica e aplicação do direito, 17ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1998. SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação conforme a constituição: entre a trivialidade e a centralização judicial, Revista Direito GV, vol. 2, nº 11, p. 191-210, 2006.


[1] Advogado, mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), mestre em Direito Processual Civil Coletivo pela Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp) e doutorando em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa (IDP).

[2] As características de uma dessas mudanças – a transição demográfica – trazem uma nova configuração etária e a longevidade como um fato novo na história da humanidade, fazendo com que as questões relativas ao envelhecimento ganhem interesse, desencadeiem estudos e pesquisas e mereçam destaque no cenário mundial atual. (Impactos da longevidade na família multigeracional, Vania Beatriz Merlotti Herédia et al, Scielo Brasil, disponível em https://www.scielo.br/j/rbgg/a/yj7D7gXqy9kfmzLqFsdTGpG/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 18/4/2024.

[3] 90% das empresas no Brasil têm perfil familiar. Disponível em https://radios.ebc.com.br/revista-brasilia/2024/01/dados-do-ibge-indicam-que-90-das-empresas-tem-perfil-familiar-no-brasil#:~:text=No%20AR%20em%2031%2F01,e%20apenas%20metade%20delas%20sobrevive.); e elas são responsáveis por 65% do PIB nacional e 75% dos empregos gerados no país (Disponível em: https://sejarelevante.fdc.org.br/empresas-familiares-sao-protagonistas-na-economia/. Acesso em: 27 de abril de 2024.

[4] Malgrado a equivocada posição topológica da norma legal, entendemos que a restrição alcança não somente as sociedades empresárias, mas, por igual, as sociedades simples, por conta da sua gênese e justificativa prática. (Cristiano Chaves de FARIAS e Nelson ROSENVALD, Curso de Direito Civil, volume 6, 16ª edição. São Paulo: Juspodivm, 2024, p. 297.

[5] Tema 1236 – Regime de bens aplicável no casamento e na união estável de maiores de setenta anos. Relator Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO. Leading Case: ARE 1309642. Descrição:

Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 1º, III, 30, IV, 50, I, X, LIV, 226, § 3º e 230 da Constituição Federal, a constitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil, que estabelece ser obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de setenta anos, e a aplicação dessa regra às uniões estáveis, considerando o respeito à autonomia e à dignidade humana, a vedação à discriminação contra idosos e a proteção às uniões estáveis. Tese: Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública. Disponível em:  https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=6096433&numeroProcesso=1309642&classeProcesso=ARE&numeroTema=1236. Acesso em: 27 de abril de 2024.

[6] A redação original previa: Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: […] II – da pessoa maior de 60 (sessenta) anos;

[7] A redação atual estabelece: Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;

[8] História do Novo Código Civil. Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/24906-historia-do-novo-codigo-civil/#:~:text=O%20novo%20C%C3%B3digo%20Civil%20come%C3%A7ou,de%20transi%C3%A7%C3%A3o%20fixado%20em%20lei. Acesso em: 27 de abril de 2024.

[9] Pelas notícias obtidas quanto ao Anteprojeto de Reforma do Código Civil recentemente entregue ao Senado, não é tratada a questão do regime de bens no casamento ou união estável da pessoa maior de 70 anos de idade. Disponível em:  https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2024/04/codigo-civil-conheca-as-propostas-de-juristas-para-modernizar-a-legislacao. Acesso em: 30 de abril de 2024.

[10] O Manual de Registro de Sociedade Limitada, alterado pelas Instruções Normativas DREI nº 55, de 2 de junho de 2021, DREI/ME nº 112, de 20 de janeiro de 2022 e DREI/ME nº 88, de 23 de dezembro de 2022 assim dispõe:

3.2. IMPEDIMENTOS PARA SER SÓCIO

A pessoa impedida por norma constitucional ou por lei especial não pode ser sócia de sociedade limitada.

São exemplos de impedimentos:

I – o português, ainda que no gozo dos direitos e obrigações previstos no Estatuto da Igualdade, comprovado mediante Portaria do Ministério da Justiça, não pode participar de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens; e

II – os cônjuges casados em regime de comunhão universal de bens ou de separação obrigatória, não podem contratar sociedade, entre si ou com terceiros.

[11] A Lei nº 5.764, de 1971, regula as cooperativas em geral. Disponível em://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5764.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%205.764%2C%20DE%2016,cooperativas%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias. Acesso em: 27 de abril de 2024. E a Lei nº 12.690, de 2012 regula as cooperativas de trabalho, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12690.htm. Acesso em: 27 de abril de 2024.

[12] Médicos, por exemplo, casados no regime da comunhão universal ou no da separação legal de bens não estão impedidos de se filiarem às cooperativas de trabalho médico, como a Unimed, exemplo dado por FREITAS e URBANO (2014, p. 204).

[13] Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acórdão. Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.

[14] O Anteprojeto de Reforma do Código Civil prevê que a modificação do regime de bens poderá se dar por escritura pública. Consulte, a esse respeito o documento disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2024/04/codigo-civil-conheca-as-propostas-de-juristas-para-modernizar-a-legislacao. Acesso em 30 de abril de 2024.

[15] REsp 1.058.165-RS (2008/0106925-5), Terceira Turma, julgado em 14/04/2009, DJe 21/08/2009: Direito Empresarial e Processual Civil. Recurso especial. Violação ao art. 535 do CPC. Fundamentação deficiente. Ofensa ao art. 5º da LICC. Ausência de prequestionamento. Violação aos arts. 421 e 977 do CC/02. Impossibilidade de contratação de sociedade entre cônjuges casados no regime de comunhão universal ou separação obrigatória. Vedação legal que se aplica tanto às sociedades empresárias quanto às simples. – Não se conhece do recurso especial na parte em que se encontra deficientemente fundamentado. Súmula 284/STF. – Inviável a apreciação do recurso especial quando ausente o prequestionamento do dispositivo legal tido como violado. Súmula 211/STJ. – A liberdade de contratar a que se refere o art. 421 do CC/02 somente pode ser exercida legitimamente se não implicar a violação das balizas impostas pelo próprio texto legal. – O art. 977 do CC/02 inovou no ordenamento jurídico pátrio ao permitir expressamente a constituição de sociedades entre cônjuges, ressalvando essa possibilidade apenas quando eles forem casados no regime da comunhão universal de bens ou no da separação obrigatória. – As restrições previstas no art. 977 do CC/02 impossibilitam que os cônjuges casados sob os regimes de bens ali previstos contratem entre si tanto sociedades empresárias quanto sociedades simples. Negado provimento ao recurso especial.

[16] Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.