A CAPACIDADE DE RESILIÊNCIA DO HUMOR NO BIOCAPITALISMO
9 de novembro de 2022RESILIENCE CAPACITY OF MODERN HUMOR IN BIOCAPITALISM
Cognitio Juris Ano XII – Número 43 – Edição Especial – Novembro de 2022 ISSN 2236-3009 |
RESUMO: O principal objetivo do presente trabalho foi relacionar a evolução do pensamento histórico do humor, mormente aquelas visões capazes de catalogar o fenômeno como elemento de resistência ao poder, com os conceitos pós-foucaulnianos de biopoder, biopolítica e biocapitalismo. Neste caminho, enfrentou-se a visão da comercialização do risível, capaz de desconstruir as principais características do fenômeno como elemento de resistência. Assim, buscando emprestar capacidade de resiliência ao humor, foi preciso relacioná-lo, juridicamente, aos direitos de liberdade de expressão e criação artística, extraindo-se os baluartes adequados para uma resistência no biocapitalismo. Portanto, ao classificar o humor como direito fundamental, tornou-se possível otimizá-lo frente sua comercialização, notadamente pela valorização dele como produto do trabalho intelectual humano. A técnica de pesquisa foi a da revisão bibliográfica. O método utilizado foi o dialético-histórico, especialmente pelo confronto entre as faces históricas do humor e sua visão moderna em Gilles Lipovetsky e George Minois, aliando-se àquela as noções de biopoder, biopolítica e biocapitalismo de Antônio Negri, sempre com o escopo de pautar os elementos de resiliência do humor com a proteção jurídica conferida pela Constituição Federal.
Palavras-chave: Humor. Liberdade de expressão e criação artística. Biocapitalismo. Resiliência. Constituição Federal.
ABSTRACT: The main objective of this work was to relate the evolution of the historical thinking of humor, especially those visions capable of cataloging the phenomenon as an element of resistance to power, with post-foucaulnian concepts of biopower, biopolitics and biocapitalism. In this way, we faced the vision of the commercialization of laughable, capable of deconstructing the main characteristics of the phenomenon as an element of resistance. Thus, seeking to lend resilience to humor, it was necessary to relate it, legally, to the rights of freedom of expression and artistic creation, extracting the appropriate bulwarks for a resistance in biocapitalism. Therefore, by classifying humor as a fundamental right, it became possible to optimize it in relation to its commercialization, notably for its valorization as a product of human intellectual work. The research technique was the literature review. The method used was the dialectical-historical, especially for the confrontation between the historical faces of humor and his modern view in Gilles Lipovetsky and George Minois, allied with that of Antonio Negri’s notions of biopower, biopolitics and biocapitalism, always with the scope of guide the elements of humor resilience with the legal protection provided by the Federal Constitution.
Keywords: Humor. Freedom of expression and artistic creation. Biocapitalism. Resislience. Federal Constitution.
INTRODUÇÃO
É inegável que vivemos na sociedade humorística descrita por Gilles Lipovetsky, marcada por uma excessiva tomada do humor pelos mais diversos setores sociais, que deslocam o fenômeno de seu pano de fundo histórico para um ambiente onde a nada se opõe e a todos se busca seduzir.
Assim, se outrora o humor serviu como elemento de resistência e oposição cultural, hoje ele vem perdendo sua capacidade de holofote para, pouco-a-pouco, tornar-se ferramenta de sedução de um público que vive cada vez mais imerso na era do vazio.
Em meio a essa crise que assola a modernidade, o presente trabalho esmaecerá para imprimir sobre o humor elementos de biopolítica, notadamente porque são as ferramentas indispensáveis para contrapor os biopoderes do biocapitalismo.
Ao enxergarmos a comercialização do humor como espécie de biopoder, na busca de reduzi-lo a instrumento de sedução dos mais diversos setores sociais (política, publicidade, moda, sexo, cinema etc.), passa a ser possível confrontar essa visão pessimista com biopolíticas que, de um modo ou de outro, são plenamente capazes de resgatar as faces de resistência desenvolvidas na história do pensamento do humor.
Portanto, discernir as feições históricas que outrora foram capazes de classificar o humor como resistência ao poder é indispensável na medida em que otimiza o trabalho intelectual humano – grande dificuldade do capital na era do biocapitalismo, segundo Antônio Negri (2007).
A partir de então, é preciso buscar, na Constituição Federal, alguns instrumentos de proteção jurídica: e essa tarefa, no caso do humor, significa enquadrá-lo como verdadeiro direito fundamental à luz da liberdade de expressão e da criação artística.
Com essas verdades em mãos, esta pesquisa avançará para a descoberta e categorização dos dispositivos jurídicos capazes de emprestar ao humor resiliência numa sociedade que, marcada pela era do vazio e do biocapitalismo, é ironicamente chamada de “humorística”.
Não obstante as dificuldades que se colocam, concluímos por qualificar o humor como direito fundamental, capaz de dissolver as ocasiões em que como fenômeno é colocado em xeque, tais como nos conflitos com outros direitos igualmente fundamentais, tentativas de estabelecer regulações jurídico-legais, tentativas de contrapor censuras, dentre outras.
Por fim, o método sobre o qual este trabalho se desenvolverá será o dialético, permeado pelo histórico, especialmente pelo confronto colocado entre as faces históricas do humor e sua visão moderna em Gilles Lipovetsky e George Minois, aliando-se àquela as noções de biopoder, biopolítica e biocapitalismo de Antônio Negri, sempre com o escopo de pautar os elementos de resiliência do humor com a proteção jurídica conferida pela Constituição Federal.
1 Humor entre liberdade de expressão e liberdade artística
Fôssemos abordar nestas linhas toda a complexidade que circunda o humor, elas nos levariam a lugares repletos de teorias, discussões e, de certo modo, mistérios, todos empenhados na louvável busca de traçar aquilo que o riso retrata, ou um dia retratou, para a humanidade. Entendemos, porém, que é preferível uma abordagem jurídica deste fenômeno, sobretudo em virtude da objetividade que buscamos com este trabalho. Isso não significa, porém, que não haja perspectivas no pensamento do humor que não mereçam ser destacadas.
Verena Alberti (2011) nos coloca que existem quatro pontos de vista a partir dos quais o riso pode ser analisado: o ético, o poético, o retórico e o fisiológico. E essa tarefa ela assume estabelecendo, ao menos numa tentativa vigorosa, uma linha histórica que trata o humor desde a Antiguidade, com seus inéditos Platão, Aristóteles, Cícero, Quintiliano, Demócrito e Heráclito, até os modernos séculos XVIII, XIX e XX, terminando em Jean Paul, Schopenhauer e Bergson.
De forma mais aprofundada, porém com outros objetivos, George Minois (2003) também enfrenta a historicidade do humor, traçando ponto-a-ponto dos autores que o consagraram, e arrematando, ao final, aquilo que nos capítulos seguintes chamaremos de “sociedade humorística”, nas palavras de Gilles Lipovetsky (2005).
Em que pesem as numerosas lições sobre o humor na história do pensamento, há umas mais, outras menos, capazes de despertar o interesse da Ciência do Direito, notadamente porque mais se aproximam daquilo que o Direito Positivo é capaz de absorver em suas entranhas.
Dessas lições de maior relevo, há fundamentos e características que, sem dúvida alguma, são capazes de qualificar o humor tanto como liberdade de expressão quanto liberdade de criação artística. E são exatamente essas lições, extraídas de seus respectivos contextos históricos, que servirão de amparo à constitucionalização do humor nesta parte do artigo.
1.1 Abordagem histórica: do humor antigo ao humor moderno
Arriscamos dizer que a história do cômico começou mal. Platão identificou o humor sob a ótica daquele que ri e daquele de quem se ri, atribuindo a ambas o qualificativo de “prazeres falsos” (ALBERTI, 2011, p. 41). Segundo o filósofo, o humor era tanto uma contrariedade à máxima de Delfos (“conhece-te a ti mesmo”), quanto uma fraqueza dotada pela inveja: aquele que era objeto do risível assim o era porque não conhecia a si mesmo e se achava numa posição superior àquela que efetivamente ocupava; já aquele donde vinha o riso assim o fazia porque invejava a posição que aqueloutro supostamente ocupava (ALBERTI, 2011).
Buscando colocar panos frios nessa visão negativa, Aristóteles, embora concordasse que o cômico realmente advinha dos homens baixos (leia-se: os não-nobres), atribuiu o humor à “parte do torpe que não causa dor nem destruição” (ALBERTI, 2011, p. 49). Mas, o que mais nos chama atenção em Aristóteles é sua lição de que o risível pode residir nos homens, nos discursos e nos atos (ARISTÓTELES, 1971, p. 64). Essa questão, sem dúvida, inaugura a ideia de que o humor pode estar alocado nos discursos, o que se torna primordial para a análise desse fenômeno como crítica e como atividade humorística profissional.
Depois de Aristóteles, embora aqui também pudéssemos citar Aristófanes e Menandro, é em Cícero que encontramos um aspecto igualmente discursivo no humor, atribuindo-o ao bom orador que sabe utilizá-lo em ocasiões adequadas, como instrumento de debate e convicção[4].
Em Demócrito, ressalvado por Heráclito, veremos que o humor repousa numa espécie de lente com a qual o filósofo é capaz de observar a falta de prudência do homem, a ausência de boa-razão, discernimento e julgamento (ALBERTI, 2011). Esse riso se apresenta como sabedoria, isto é, como “a constatação da incapacidade radical do homem de se conhecer e conhecer o mundo” (MINOIS, 2003, p. 62).
Diógenes, por sua vez e ao contrário de Demócrito (um cético), deslumbrava-se no desprezo pelas convenções sociais, utilizando o risível como ferramenta de resistência aos princípios e normas concebidas pela sociedade da sua época[5].
Forçando um salto estrondoso da Antiguidade, podemos agora pousar nos Séculos XVII e XVIII, onde vamos encontrar novas visões, embora não totalmente originais, sobre o humor. Thomas Hobbes oferece uma face extremamente interessante para a transformação que o humor tomará adiante, apesar de que, para ele, o fenômeno não advinha de homens nobres nem elevados (ALBERTI, 2011). Com efeito, o filósofo-político entende o humor a partir de uma paixão, chamada de honra súbita, que seria capaz de alocar o riso como “o orgulho ou a glória que experimentamos ao percebermos subitamente nossa capacidade ou superioridade” (ALBERTI, 2011, p. 125).
Sintomático, entretanto, é o fato de que, dado o risível exsurgir da fraqueza dos outros, ele não retrataria um signo de afecção da honra, “porque aquele que se sente superior apenas por causa das fraquezas dos outros não tem, de fato, nenhum poder honroso” (ALBERTI, 2011, p. 130). Apesar dessa incongruência, a princípio, Verena Alberti (2011) ressalta um ponto atraente, a partir do qual seria possível ao menos tentar reverter esse pensamento e tratá-lo adequadamente no contexto da obra toda de Hobbes. Nesse sentido, ela ensina que:
Nem sempre a honra súbita resulta da comparação com as fraquezas de outrem. O riso de nossas próprias ações que revelam uma capacidade além de nossa expectativa aparece em primeiro lugar, tanto em “Natureza Humana” quanto no “Leviatã”. Essa circunstância é em geral esquecida nas interpretações da teoria de Hobbes. (ALBERTI, 2011, p. 131).
E com a mesma maestria, Verena Alberti (2011) arremata que os intérpretes de Hobbes se esquecem que, para ele, o risível também resulta da alegria, sentimento este que o homem experimenta através de seu próprio poder e capacidade; e que é súbita, repentina e surpreendente. Entretanto, ainda assim, é preciso insistirmos: para Hobbes, “aquele que ri não triunfa, isto é, o riso, na verdade, é signo de sua inferioridade, de sua pusilanimidade, do fato de ser ávido por aplausos” (ALBERTI, 2011, p. 132). E não poderia ser diferente, já que o pai do “Leviatã”, ao conceber o homem como o lobo de si próprio, exige que, em contraste ao estado jusnaturalista, seja buscada a paz, e não a guerra, respaldando-se em um poder soberano e concentrado (BITTAR, 2016).
Nesse contexto, a visão oferecida por Thomas Hobbes assume feição homogênea em sua teoria, mormente porque o riso, desde a Antiguidade, servia-se de instrumento de ceticismo e de crítica aos Deuses e às autoridades[6]. Posteriormente, já no fim da Idade Média, a feição do risível dada por Hobbes não passaria de um contrapeso à “gargalhada ensurdecedora da renascença”, marcando a passagem entre o riso aviltante, desprezível e global, advindo de espíritos pequenos, para o riso clássico, diante do qual “muitos não riem mais: os responsáveis, as autoridades defendem a ordem, a grandeza, a imobilidade das instituições, valores e crenças de um mundo, enfim, civilizado” (MINOIS, 2003, p. 271 e 363).
Em Shaftesbury, através do seu “teste do ridículo”, o humor passa a servir “para desmascarar e corrigir imposturas e fanatismos passionais que perturbam a razão […]; o ridículo, uma vez aplicado, serve de instrumento a favor da verdade, pois detecta as imposturas e as falsas gravidades” (ALBERTI, 2011, p. 138). Mas é com Hutcheson que essa face do risível se acentua, tal como nos ensina Verena Alberti (2011, p. 143):
Os fanatismos, as paixões exacerbadas e os pequenos vícios são objetos que podemos ridicularizar porque o efeito do ridículo é, neles, positivo. Ou seja, quando o ridículo é autorizado, seu efeito não necessariamente é o riso, mas a correção. E mais: o prazer que se experimenta no risível é condicionado por sua utilidade, porque só se deve ridicularizar as imperfeições passíveis de serem corrigidas, do contrário os homens sensatos não apreciarão o ridículo.
A propósito, muito embora Hutcheson dialogue entre um riso benevolente e um malevolente, sendo aquele primeiro o humor capaz de implicar ofensa, seus ensinamentos, aliados aos do Conde de Shaftesbury, servem de fundamento para o desenvolvimento da principal vertente que se pretende destacar no presente trabalho: o humor como contraposição e resistência.
No humor moderno dos séculos XIX e XX, resplandecente, também, mas não só, em Henri Bergson, para quem o cômico e o riso assumem, respectivamente, as posições de “desvio negativo e sanção funcional que restabelece a ordem da vida e da sociedade” (ALBERTI, 2011, p. 184). Para Bergson, o cômico é aquilo de que se ri e, aquilo de que se ri, é o “mecânico aplicado sobre o vivo” (ALBERTI, 2001, p. 185), como uma espécie de gesto social. Nas palavras do sociólogo:
Toda rigidez de caráter, de espírito e mesmo de corpo é suspeita para a sociedade, porque é sinal de uma atividade adormecida e também de uma atividade que se isola, que tende a separar-se do centro comum em torno do qual a sociedade gravita, enfim, de uma excentricidade. Entretanto, a sociedade não pode intervir nesse caso com repressão material, porque não tem alcance material. Ela está diante de qualquer coisa que a ameace, quando muito um gesto. É, portanto, com um simples gesto que ela responde. O riso deve ser algo parecido com isso, uma espécie de gesto social. Pelo medo que inspira, ele reprime excentricidades, mantém em vigília e em contato recíproco certas atividades secundárias que correriam o risco de adormecer ou isolar-se. Enfim, o riso torna leve tudo o que possa restar de rigidez mecânica na superfície do corpo social (BERGSON, 1983, p. 14).
Portanto, Bergson (1983) nos propõe que vivamos o cotidiano com a atenção constantemente desperta, ou seja, que vislumbremos os contornos da situação presente com elasticidade de corpo e espírito, adaptando-nos a ela: “tensão e elasticidade, eis as duas forças reciprocamente complementares que a vida põe em jogo” (BERGSON, 1983, p. 8).
Por fim, para Joaquín Herrera Flores (2007, p. 11), o humor representa uma vitória da vida sobre a morte:
O sentido do humor é a mais social de todas as funções psíquicas que produzem prazer. Sempre exige ser compartilhado por pelo menos duas pessoas e estar inserido num marco comum de entendimento. Quando explode o riso, o reprimido retorna como prazenteiro. É o triunfo ad vida (eros) sobre a pulsão da morte (tanatos), deslocando a agressão e a violência e permitindo a crítica e a autocrítica.
Feitas essas considerações sobre a historicidade do humor, é chegada a hora de contextualizá-las no âmbito de onde se pode enquadrar o humor em nosso ordenamento jurídico, notadamente em nossa Constituição Federal.
1.2 O tratamento constitucional do humor à luz da liberdade de expressão e de criação artística
Longe de ter havido qualquer intenção expressa por parte do legislador constituinte originário, o desenvolvimento histórico do humor no pensamento traz elementos capazes de enquadrá-lo tanto como liberdade de expressão quanto como liberdade de criação e expressão artística.
No que tange à liberdade de expressão, haveria um longo caminho a percorrer se fôssemos tratar sobre todos os seus aspectos com profundidade. Aqui, basta-nos discorrer sobre sua definição e sobre alguns de seus fundamentos, confrontando-os com as faces do humor que vimos alhures. Nesse sentido, é de grande didática o art. 19.2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966[7], no sentido de que o direito à liberdade de expressão inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações, ideias e opiniões de qualquer natureza, independentemente do meio erigido para tanto.
Daniel Barile da Silveira e Paulo Arthur Germano Rigamonte (2018), amparados na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, discorrem sobre a existência de duas dimensões da liberdade de expressão: uma dimensão individual, no sentido da liberdade de difundir informações, ideias, opiniões e tecer críticas; e uma dimensão social ou coletiva, no sentido da liberdade de conhecer as informações, ideias, opiniões e críticas vertidas por terceiros.
A partir dessas dimensões, passa a ser possível dissertar um pouco sobre os fundamentos que legitimam a liberdade de expressão como direito fundamental, sobretudo em nosso texto constitucional. Eric Barendt (2007) sintetiza quatro fundamentos da liberdade de expressão: o argumento concernente à descoberta da verdade; o livre discurso sob o aspecto da autossatisfação individual; o argumento da participação cidadã na democracia; e a suspeita (ou vigília) sobre a atividade governamental.
Nessa senda, podemos afirmar que a liberdade de expressão é um direito fundamental porque é indispensável para a descoberta da verdade; porque serve como garantia da autossatisfação individual; porque torna possível a participação democrática; e porque permite o maior controle sobre as atividades do governo.
À luz da Constituição Federal, a liberdade de expressão é consagrada expressamente em três dispositivos: o art. 5º, IV, o art. 216, I e o art. 220. Ao entender os fundamentos da liberdade de expressão como institutos e direitos precedentes, poderemos enxergá-los também em outros dispositivos: sobre a participação democrática, o art. 1º, caput (democracia como regime de governo[8]); sobre a autossatisfação pessoal, o art. 1º, III (a dignidade da pessoa humana e o valor da livre iniciativa como fundamentos da República, sendo este último também fundamento da Ordem Econômica[9]); quanto à descoberta da verdade, o próprio art. 5º, V (o direito de resposta como busca do diálogo em prol da verdade); e, por fim, no que diz respeito ao controle sobre a atividade governamental, o art. 1º, V (o pluripartidarismo como fundamento da República), o art. 5º, XXXIV, “a” (o direito de petição ao Poder Público), bem como os arts. 14 e seguintes (sobre carta de direitos políticos).
É óbvio que o que expusemos no parágrafo acima não é sequer uma tentativa de sintetizar os dispositivos constitucionais que emprestam os fundamentos trazidos por Eric Barendt, mas apenas uma forma de introduzir o leitor no imenso terreno que esse exercício ocuparia, caso fosse feito.
Pois bem: se agora nos debruçarmos sobre as feições que o humor tem assumido desde a Antiguidade, não com muito esforço notaremos o aroma dos fundamentos emprestados à liberdade de expressão como direito fundamental.
Em primeiro lugar, assumimos o humor como instrumento para a busca da verdade. Assim, mesmo quando falamos da feição negativa segundo Platão, podemos observar que o riso serve ao menos como forma de conhecer nossos vícios (lembremo-nos de Delfos: “conheça-te a ti mesmo”), ou ainda, virtudes que imaginamos possuir. Em Shaftesbury, ao humor é atribuída a condição de instrumentalidade para desmascarar farsas, imposturas e fanatismos passionais, buscando a todo custo a verdade. Hutcheson também aborda o humor como mecanismo de verdade, diante de sua visão como correção das imperfeições que circundam o ser humano.
Em segundo lugar, o humor é também ferramenta de participação democrática e controle da atividade governamental, repousando em Demócrito – aquele que ri observando a ausência de boa-razão, discernimento e julgamento; aquele que constata a incapacidade do homem –, e, mais radicalmente, em Diógenes – o cínico que prega a derrisão universal contra as convenções sociais, resistindo aos princípios e normas pressupostos.
A propósito, esses dois fundamentos emprestados da liberdade de expressão ao humor guardam igual semelhança com o “teste do ridículo” de Shaftesbury e com a ridicularização das paixões exacerbadas e dos pequenos vícios, em Hutcheson, especialmente porque acentuam o caráter crítico do humor em face de dogmas ou “verdades”.
Por derradeiro, o humor como autossatisfação individual vai precisar de um enfoque maior do que aquele dado nas linhas acima, mormente porque traremos um exame perfunctório de um dos grandes contribuintes ao fenômeno: Sigmund Freud, aquele que, embora não saiba exatamente por quais elementos, tem a certeza de que o chiste nos dá prazer[10]. Com efeito, “no domínio da psicanálise, o riso é sempre visto como uma economia de energia e descarga de tensão, por uma espécie de compromisso entre o ‘isto’ e o ‘superego’” (MINOIS, 2003, p. 615). Sobre o tema, Venera Alberti (2011, p. 17):
Em linhas gerais, a tese de Freud consiste em dizer que o processo de formação do chiste é análogo ao do sonho. A relação entre o chiste e o inconsciente aparece inicialmente no texto sob a forma de uma psicogênese do chiste, que revela, segundo Freud, que a origem do prazer no chiste é o jogo com as palavras e os pensamentos na infância, que cessa tão logo a crítica ou a razão declaram sua ausência de sentido. Em sua evolução, o chiste lutaria então sucessivamente contra dois poderes: a razão ou o julgamento crítico, de um lado, e a repressão à agressão e à obscenidade, de outro – etapas que correspondem aos dois tipos de chiste de sua classificação: o inofensivo e o tendencioso.
Bem antes de Freud, aliás, Menandro, na Antiguidade (342-292 a. C.), já havia introduzido esse caráter de elasticidade do homem através do riso, pois:
[…] ele explora as pulsões e os desejos, propiciando, ao mesmo tempo, um substituto de realização, uma libertação de energia pelo riso e um alívio em relação às angústias e aos medos ligados às ameaças que pesam sobre a ordem, o patrimônio familiar, a autoridade doméstica […]. Há uma verdadeira inversão: o riso não mais é utilizado pela comédia para amedrontar, mas para afugentar o medo (MINOIS, 2003, p. 51).
Ora, nos dias de hoje, como em nenhum outro, o humor tem se revestido de verdadeiro antídoto ao trágico e à dor do ser humano. Aliás, “estudos indicam que o uso do humor no cotidiano, por exemplo, quando estamos respondendo a e-mails ou usando descrição visual, está fortemente relacionado à inteligência”, afirma Scott Weems (2016, p. 13)[11].
Outrossim, também em Cícero o riso assume condição de autossatisfação pessoal, na proporção em que, utilizado nos discursos, torna o ouvinte dócil e benevolente, preparando o terreno para a vinda do orador culto e político. A par dessas questões, fica mais evidente agora que o humor é um desdobramento da liberdade de expressão, sobretudo porque compartilha os quatro fundamentos de Eric Barendt: o humor como instrumento para a verdade; o humor como otimizador da democracia e da crítica governamental; e o humor como autossatisfação individual.
Tanto é assim que o STF, no julgamento da ADI nº 4.451/DF, tomou claramente emprestados os argumentos tecidos na ADPF nº 130/DF, enquadrando a manifestação humorística às molduras da liberdade de expressão, embora assim o tenha feito apenas em relação ao humor veiculado como crítica nos meios de comunicação social e em períodos eleitorais. A partir de tal decisão, em certa medida, podemos dizer que ao humorista se pode atribuir a mesma importância que se atribui ao jornalista, a quem cabe, segundo Andressa de Bittencourt Vieira Dantas e Camila Figueiredo Oliveira Gonçalves (2016, p. 111):
(…) o dever de buscar, com base na ética, na legalidade e no respeito à dignidade humana e aos demais direitos fundamentais, a informação justa, correta e plural e lançá-la ao público, com vistas à concretização de suas principais finalidades: informar, orientar e proporcionar uma sociedade mais democrática.
De outro lado, no que toca à questão da liberdade artística, ainda que Dimitris Christopoulos e Dimitri Dimoulis (2009) tenham reconhecido que, no constitucionalismo brasileiro, há parcas meditações sobre a definição desse direito, isso não significa que não haja algumas tentativas nesse sentido.
Os próprios autores citados adotam um conceito amplo e aberto de arte, expressando que esse direito “inclui ações (pensemos na intervenção de um artista que, com ou sem permissão do proprietário, picha a fachada de um edifício) e envolve a manutenção de estruturas de produção (teatro, cinema)”, pois “tem formas e justificativas de exercício diferentes das demais espécies de manifestação do pensamento” (CRISTOPOULOS; DIMOULIS, 2009, p. 60)[12].
Aliás, diga-se de passagem, devemos concordar com um conceito aberto e flexível de liberdade de expressão artística, na medida em que somos tomados pelo impulso de abraçar uma teoria de suporte fático amplo para os direitos fundamentais[13], segundo a qual todo direito, mormente os libertários, abarcam, a priori, toda e qualquer liberdade, toda e qualquer expressão, toda e qualquer arte (SILVA, 2017).
Diante disso, que seria o humor senão uma manifestação artística? Longe de se desfazer de seu conteúdo crítico, tal como reconhecido pelo STF, devemos tomar a criação do humor como criação artística, atribuindo a ela todos os seus efeitos, especialmente a proteção do autor e da propriedade intelectual, conforme o caso.
Por fim, também somos capazes de relacionar a atividade humorística, especialmente quando tratada por profissionais, como verdadeira profissão da iniciativa privada daqueles que, não diferentes de quaisquer outros artistas, exploram-na economicamente para sua sobrevivência. No entanto, em que pesem todos os atributos positivos que temos ressaltado sobre o humor, não podemos nos esquivar do dever de enfrentar um misterioso rumo que o cômico tem tomado ultimamente, respaldado numa tentativa de dissolução radical por uma sociedade humorística capitalista[14], ante a mercantilização exacerbada do fenômeno.
2. Biopoder, biopolítica e biocapitalismo: pressupostos para otimizar o humor numa sociedade humorística
Michel Foucault (1988), ao lecionar sobre governamentalidade, biopoder e biopolítica[15], sustentava, à imagem do “príncipe” de Maquiavel, que desde o pastoreio na Idade Média até o absolutismo no Estado Monárquico, a lógica vigente era a de manter o poder do soberano sobre o território herdado e os súditos, cuja preocupação não recaia sobre a vida em si, mas sobre o corpo daqueles que viviam em determinado território, “fazendo-se morrer e deixando-se viver” (MÉDICI, 2011, p. 59).
Posteriormente, com a derrocada do Estado Absolutista, essa visão foi sendo substituída pelo inverso, ou seja, pela máxima do “fazer viver e deixar morrer” (MÉDICI, 2011, p. 59). Foi a partir de então que surgiu a noção de governamentalidade em Michel Foucault (1998)[16]. Jefferson Aparecido Dias e Emerson Ademir Borges de Oliveira (2011) explicam que, após o Século XVIII, houve uma transformação do poder soberano em poder disciplinar, no bojo da qual a lei, muito embora ainda fosse importante, passou a concorrer com outros mecanismos de controle ou dispositivos de segurança[17].
Assim se formou a definição de biopoder e/ou biopolítica em Foucault, noções que foram diferenciadas (e, de certo modo, otimizadas) por Antônio Negri, para quem o biopoder é o “poder sobre la reproducción del hombre” (2007, p. 40), e a biopolítica é a “producción de subjetividad”, isto é, “la emergência de una resistencia al poder, es la resistencia que se convierte en el verdadero motor de la produccion de subjetividade” (2007, p. 38). Mais especificamente sobre a biopolítica, porque esta será nosso enfoque a partir de agora, Antônio Negri (2008, p. 43-44) ensina que:
La biopolítica no es um enigma […], es el terreno reencontrado de todo pensamiento político, em la medida em que está atravesado por la potencia de los procesos de subjetivación. Desde ese punto de vista, la ideia de una biopolítica acompana de manera esencial el passaje a lo posmoderno – si entendermos por este último un momento histórico donde las relaciones de poder están interrompidas permanentemente por la resistencia de los sujetos a los cuales se aplican.
Noutras palavras, pode-se dizer que a biopolítica é um processo de subjetivação em contrapartida às relações de poder que atravessam o mundo, a sociedade e determinadas instituições e práticas individuais (NEGRI, 2008), operando como verdadeira resistência aos mecanismos de controle ou dispositivos de segurança. A biopolítica é a metáfora do “monstro político” criada por Antônio Negri (2007) para resistir ao biopoder, que deseja incidir sobre a vida e criá-la em todos os seus aspectos.
Com efeito, essa relação entre a “insubordinación de la vida (la potencia de la vida)” e “el poder (el domínio sobre la vida)”, deve ser vista de forma dialética e contraposta, donde há que se buscar os meios pelos quais o monstro político seja capaz de se infiltrar e subsumir o biopoder (NEGRI, 2008, p. 119). A essas lições, acrescenta-se a noção de biocapitalismo segundo Antônio Negri, grosso modo considerado como o estágio atual em que se encontram os biopoderes na modernidade. Sobre o tema, o autor traz inicialmente duas noções: uma é ligada ao capitalismo industrial aplicado às ciências biológicas e sua transformação em mercadoria; outra é ligada às formas financeiras do capitalismo, que, por ter emergido sobre todo “o conjunto da vida humana individual e social que é posta, enquanto tal, a trabalhar” (2015, p. 58), ganha ares de relevo no presente trabalho.
Nesse sentido, o biocapitalismo assume a feição de uma fase evolutiva do capitalismo pós-keynesianismo, momento a partir do qual houve uma verdadeira transformação do capital, que, para se sustentar, teve que entrar na vida das pessoas, especialmente no corpo da vida das pessoas (NEGRI, 2015). Isso só foi possível através do Welfare State: o Estado da assistência ou providência. Assim, esse modelo político-econômico de Estado teria sido o responsável pelos avanços do capitalismo convencional ao capitalismo dos mercados financeiros. Com o Welfare, houve, portanto, a “passagem da subsunção real do trabalho ao capital à subsunção da sociedade inteira ao capital” (NEGRI, 2015, p. 61).
Deveras, na visão de Antônio Negri, o Welfare State teria servido como um “cavalo de Troia” àqueles que imaginavam que o momento histórico exigiria presença mais assídua do Estado, notadamente em períodos de crise financeira. Assim, foi dentro de uma dinâmica de endividamento do Estado keynesiano que os mercados foram capazes de subsumir toda a sociedade, inclusive o poder público, aos seus auspícios (NEGRI, 2015).
Outro fenômeno também destacado pelo autor (NEGRI, 2015, p. 68), oriundo do pós-keynesianismo, foi a inversão dos valores da propriedade privada, que deixou de se evidenciar como posse verdadeiramente, e passou ao estágio de “um comando sobre a exploração da cooperação que constitui e torna produtivos os serviços”.
Uma vez somados esses fatores, colocou-se em evidência a força do trabalho intelectual, que, por produzir uma matéria que não se consome (a inteligência), passou a assumir a posição de principal alvo do biocapitalismo na pós-modernidade (NEGRI, 2015). No entanto, é a partir da noção do biocapitalismo que Negri (2015, p. 62-63), em homogeneidade a sua obra, joga luz sobre uma forma de resistência e produção de subjetividade jamais vista até então:
Mas o capital não é um monarca, é uma relação social: de fato, se não houvesse trabalho vivo o capital não existiria. O capital vive da exploração e a exploração é uma relação. Se o capital tomasse tudo, se avançasse de um modo acumulativo e total, não seria mais capital […]. Mas as coisas não são assim! Aí onde há reificação, onde há exploração capitalista, sempre há resistência. Resistência que evidencia que o capital só é uma forma de relação. E quanto mais a sociedade é subsumida pelo capital, tanto mais esta relação se torna um vínculo forte, importante. Quanto mais essa modificação do trabalho pressupõe a financiarização, a globalização e, sobretudo, a passagem do trabalho material para o trabalho imaterial, isto é, cognitivo, cooperativo, social, nós nos encontramos frente a um trabalho que, em sua relação com a patronal, em sua relação com o comando, digamos em termos marxistas, em sua relação com o capital constante, devém outra coisa.
A “outra coisa” a que faz menção o autor, tida como resultado dessa tentativa de o capital explorar o trabalho imaterial, consubstancia-se na “reapropriação do capital fixo pelo capital constante”[18]. Vale dizer:
A incidência das chamadas capacidades imateriais (inteligência, afetividade, comunicação, invenção de códigos, cooperação) na produtividade contemporânea nos torna portadores de capital fixo. Eis aí uma fonte de resistência nova que se dá no mesmo nível que as condições de exploração (nunca fora), no plano de imanência (NEGRI, 2015, p. 64).
Destarte, “só a força de trabalho cognitiva, mesmo quando é obrigada a produzir mais-valia, contém uma autonomia irredutível”, tomada essa força, pois, como “o elemento verdadeiramente novo da situação”, qual seja: “o fato de que o trabalho cognitivo exalta a possibilidade dessa autonomia” (NEGRI, 2015, p. 66):
[…] a valorização do capital não se opõe mais […] à massificação do capital variável, isto é, à massa de dinheiro que é necessário para dispor para os salários operários, e sim se opõe prioritariamente à resistência e à autonomia de um proletário que se reapropriou, talvez enquanto jogo de serviços, enquanto elemento móvel simplesmente de uma parte do capital fixo (NEGRI, 2015, p. 67).
Noutras palavras, o capital só se torna capaz de apropriar o excedente de produção do trabalho cognitivo se for capaz de explorar, de maneira cada vez mais ativa, essa força mental, buscando “chegar ao mais íntimo dessas forças produtivas” (NEGRI, 2015, p. 70). Contudo, como o biocapitalismo não passa de um biopoder, a ele acabam sendo contrapostas resistências que, quanto mais fortes forem, mais exigirão uma tentativa de restauração do poder, que se dará, não só, mas também, através do próprio Estado (NEGRI, 2015).
Para Antônio Negri (2015, p. 71-72), porque “o máximo da violência é excitado por instrumentos e órgãos técnicos” estatais, torna-se indispensável o desenvolvimento de formas de autovalorização e reapropriação progressiva do capital fixo, validadas como “resistência, apropriação, autovalorização […] contra a multiplicação de operações de captura”[19].
Portanto, a pedra angular de resistência aos instrumentos de apropriação do trabalho intelectual no biocapitalismo, não poderia ser outra senão a extrema autonomia individual, guiada, entretanto, por um estágio de democracia radical, afinal: “que outra cosa puede querer decir vivir y sobrevivir com el mostruo, en su presencia?” (NEGRI, 2007, p. 114).
3. A crise do humor moderno na sociedade humorística e sua relação com biocapitalismo: em busca de elementos jurídicos de resiliência
“O riso está em perigo, vítima de seu sucesso”, começa George Minois (2003, p. 593) o seu décimo quinto capítulo da obra que conseguiu reunir, num só conglomerado, todas as importantes lições sobre o riso divino, o riso diabólico e o riso humano. Com amparo filosófico em Gilles Lipovetsky, Minois destaca o principal vilão do humor na modernidade (Século XXI): a comercialização. Nas suas palavras:
O riso, como carne de vaca, é um produto de consumo, doublé de um produto milagroso cujo valor mercantil é inestimável. Já registrado, etiquetado, impresso, filmado, ele é vendido no mundo inteiro; profissionais asseguram sua promoção, a difusão e até o serviço, depois da venda, para as pessoas hipócritas. Ao mesmo tempo produto e argumento de venda, torna-se um atributo indispensável do homem moderno, quase tão útil quanto o telefone móvel. Fazer a festa tornou-se uma obsessão (MINOIS, 2003, p. 593).
A esse fenômeno de banalização do riso, Gilles Lipovetsky (2005) dá o nome de “sociedade humorística”. Mas, para entender esse conceito, é preciso, antes, resgatar algumas feições que o riso assumiu na história do pensamento. Lembremo-nos, rapidamente, que o riso sempre dependeu do dualismo entre o sério e o não-sério, servindo de ferramenta para contrastar posições culturais antagônicas, sobretudo aquelas que se colocavam num “pedestal de superioridade”, representadas por autoridades, figuras políticas, deuses, religiões etc.[20].
Desde Platão, perpassando por Thomas Hobbes, Shaftesbury, Hutcheson e Bergson, isso para não citar um outro sem número de pensadores, o riso sempre precisou se contrapor a alguma ideia, coisa ou pessoa – daí também sobrevém a interessante lição de Aristóteles ao deslocar o humor entre os homens, discursos e atos. É a partir dessa visão histórica do humor que Lipovetsky apresenta uma inversão de sua filosofia. Se antes o humor dependia do contraste entre o sério e o não-sério, hoje ele não consegue mais essa proeza, eis que vivemos numa sociedade que, pouco a pouco, torna o sério obsoleto. Aqui e agora, ri-se de tudo ao mesmo tempo:
Por meio da publicidade, da moda, dos aparelhos eletrônicos, dos desenhos animados e dos quadrinhos quem não percebe que o tom dominante e inédito do cômico já não é sarcástico, mas, sim, lúdico? O humor que se instala esvazia o negativo característico da fase satírica ou caricatural […]. O humor na publicidade ou na moda não tem vítima, não zomba, não critica, limitando-se apenas a prodigalizar uma atmosfera eufórica de bom humor e de felicidade sem avesso (LIPOVTSKY, 2005, p. 115).
Ora, se de um lado, o riso encontra guarida no deslocamento, mas, de outro, tudo acaba sendo risível, o riso perde sua força (MINOIS, 2003). Deveras, exsurge uma espécie de fagocitose do humor pelos diversos setores da sociedade humorística: na política, na publicidade, na moda, no sexo, no cinema, por todos os lugares se tem visto o risível como forma de persuadir, vale dizer, de seduzir os hedonistas de plantão (LIPOVETSKY, 2005):
Tudo deve ser tratado de forma humorística, títulos e subtítulos da imprensa, slogans das manifestações, boletins meteorológicos, vulgarização científica, publicidade, desenho animado, cinema, pedagogia. Até os filmes mais violentos, ou mais sombrios, encarregam-se de um lado humorístico – uma piscadela para o espectador o faz compreender que não é preciso acreditar muito no que se vê. O novo modelo humano, o herói pós-moderno, é hiperatuante, permanecendo emocionalmente distante; ele cumpre suas façanhas como num jogo. O espaço crescente da imagem da síntese acentua ainda o aspecto puramente lúdico do espetáculo (MINOIS, 2003, p. 620).
Entretanto, mesmo diante desse quadro de pouco otimismo, George Minois (2003, p. 627) arrisca dizer que ainda existe um verdadeiro humor, que não se confunde com o riso voluntário, dosado e calculado, mas, sim, com um riso interior, visto como “um fenômeno de consciência que só alguns privilegiados possuem e ao qual se dá o nome muito desonrado de ‘humor’”. Assim, ele arremata que:
Esse humor é absolutamente indispensável ao século XXI, que será humorístico ou não. Sem humor, como os dez bilhões de pessoas que nos prometem para 2050, desmoronando sob seus dejetos e sufocando em sua poluição, poderão suportar a vida? O homem não terminou sua evolução; se ele quer sobreviver, precisa adaptar-se, e rir. Geneticamente modificado ou não, ele terá necessidade de uma boa dose de humor (MINOIS, 2003, p. 633).
Portanto, nos resta compreender, agora, não no que verdadeiramente consiste esse humor moderno (ou pós-moderno, como quer Lipovetsky), mas quais instrumentos que podem lhe ser oferecidos para resistir ante a comercialização que circunda essa sociedade humorística.
A esta altura, precisamos confessar que há certas semelhanças entre a sociedade humorística de Gilles Lipovetsky e o biocapitalismo de Antônio Negri. Ora, quando afirmamos que, no biocapitalismo, o capital busca capturar o trabalho intelectual (aquele formado por uma matéria que não se consome: a inteligência), tornamo-nos capazes de observar que o humor, considerado como manifestação da expressão artística e crítica do ser humano, acaba também sendo alvo dessa fagocitose.
A comercialização do humor é um reflexo do biocapitalismo, que tem lutado para entrar não só na vida das pessoas, mas em seus respectivos corpos, desejos e vontades. Trata-se, pois, da apropriação, pelo capital moderno, de um fenômeno que tem sido alvo de represália há anos, mas que somente agora corre o risco de se esvair. E o que é mais curioso: esvair-se de tanto rir!
Assim, considerando que “o vigor do riso de outrora vinha de sua seriedade”, o riso moderno, ao perder essa seriedade, dada sua banalização comercial, perdeu também seu vigor: “não serve para mais nada, só para fazer rir. Pura evasão, tornou-se tecido da existência, recobrindo as interrogações e os medos contemporâneos” (MINOIS, 2003, p. 632).
O humor foi liquefeito pela publicidade, por exemplo, que tem se utilizado de uma espécie de metapublicidade, pois “não diz nada e se diverte com ela mesma: a verdadeira publicidade zomba da publicidade, tanto a do sentido com a do nonsense, esvazia a dimensão da verdade, e nisso reside sua força” (LIPOVETSKY, 2005, p. 122).
Outrossim, o humor foi digerido pela política, especialmente porque “um poder que não aceita a zombaria é um poder ameaçado, desprezado, voltado a desaparecer” (MINOIS, 2003, p. 596). Assim, “a derrisão, que tende a substituir a argumentação [política], adquiriu um poder excessivo de sedução” (MINOIS, 2003, p. 599). O humor biocapitalizado tornou-se capaz de pacificar as relações interpessoais, atenuar os atritos e servir de autêntico instrumento de socialização:
Assim sendo, para ser autocontrolado, disciplinado até em sua atitude humorística, o homem moderno não pode ser identificado como um alvo cada vez mais submisso à medida que se desenvolvem as tecnologias microfísicas do poder: pelo humor, de fato, o indivíduo disciplinar já apresenta uma liberação, uma desenvoltura, pelo menos aparente, inaugurando nesse nível uma emancipação da esfera subjetiva que não cessamos de ampliar (LIPOVETSKY, 2005, p. 133).
É como se disséssemos que o humor moderno se apropriou mais daquelas visões passadas que lhe incutiam a origem no orgulho súbito (Hobbes), a intenção na convicção e benevolência do ouvinte (Cícero e Menandro), do que aqueloutras que o ressaltavam como instrumento de depuração de inverdades (Shaftesbury), como elemento de resistência (Hutcheson) ou de correção (Bergson).
Diante de tudo isso, como não dizer que o humor tem se tornado uma espécie biopoder? De fato, o humor foi biocapitalizado. Hoje, cada vez mais os meios de comunicação têm inserido em sua programação quadros humorísticos; cada vez mais as produtoras buscam levar a público séries e filmes risíveis; cada vez mais políticos utilizam o humor como forma de assenhorar seus eleitores, torná-los dóceis, bondosos e descontraí-los, como nos diriam Cícero e Menandro na Antiguidade.
Curiosamente, também, o biocapitalismo tem agido sem muito compromisso com uma ideologia ou outra; não busca sequer “ocultar o real, inculcar conteúdos, iludir o indivíduo” (LIPOVETSKY, 2005, p. 123). Pelo contrário, o humor biocapitalizado só guarda a clara pretensão de vender e se fazer vendido[21].
Entretanto, afastando-se agora do parco otimismo que faz morada em Minois e, principalmente, em Lipovetsky, Antônio Negri, através das lições sobre resistência no biocapitalismo, certamente é capaz de nos mostrar a chave-mestra para resolver esse impasse, ou ao menos indicar o caminho para encontrá-la.
Se ousamos dizer que o humor foi biocapitalizado, com a mesma coragem podemos afirmar que, através da biopolítica, é possível emprestar ao fenômeno uma armadura forte o suficiente para resistir à sociedade humorística. Trata-se, pois, da reapropriação do capital fixo pelo capital constante, consubstanciada na incidência das capacidades imateriais do ser humano (inteligência, comunicação, cooperação etc.) (NEGRI, 2015).
No mais, recordando-se da tentativa de George Minois em resgatar o humor “humorístico ou não” como indispensável no Século XXI, precisamos assumir a missão de utilizar o humor como verdadeiro elemento depurador de verdades e identificador de ideologias (Shaftesbury), como autêntico instrumento de resistência (Hutcheson), ou ainda, de correção das falhas mecânicas que atravancam a vida (Bergson).
Para tanto, já vimos que a Constituição Federal dá o primeiro passo quando oferece ao humor a qualidade e proteção jurídica de direito fundamental. Ora, ao dizer que o humor empresta os fundamentos da liberdade de expressão e da liberdade artística, não estamos dizendo outra coisa senão que o humor é a própria liberdade de expressão e de criação artística. A partir desse exercício, torna-se visível que toda e qualquer medida em busca de otimizar o humor como direito fundamental é igualmente uma forma de resistência à sua captura pelo biocapitalismo.
Significa dizer, então, que configura elemento de resiliência do humor moderno a mais ampla liberdade de expressão e de criação artística. E isso não para por aqui, pois a resiliência também deve abranger a proteção dos direitos autorais do profissional humorista, a proteção da propriedade intelectual e, não menos importante, a ausência de censura e regulação estatal da atividade humorística.
Basta recordar dos alertas de Antônio Negri sobre a premente tentativa de restauração do poder pelo Estado, sobre a violência excitada por instrumentos e órgãos técnicos, sobre a tentativa do biocapitalismo de explorar o mais íntimo das forças produtivas (diga-se: o intelecto humano), que logo seremos capazes de atribuir ao humor a ampla liberdade que ele merece.
Daí porque “o riso requer liberdade absoluta; o riso é liberdade […]; é por isso que ele inquieta as pessoas que se encerram na gaiola de suas certezas; o riso abre as gaiolas e, uma vez livre, pode atacar tudo; como um tufão dessacralizante, abate deuses e ídolos” (MINOIS, 2003, p. 613).
É óbvio que, porque a liberdade de expressão e a liberdade artística não são direitos absolutos, o humor igualmente não pode querer assumir essa feição. Na verdade, o que se pretende é dar ao humor, em primeiro lugar, o caractere de direito fundamental, ressaltando seu caráter combativo e de resistência ao próprio biopoder, que tanto pode vir do Estado quanto daqueles que detêm os mecanismos de controle, e que, diante da era do biocapital e da sociedade humorística, buscam digerir o humor como moeda de comércio.
Em segundo lugar, pretende-se dar ao humor outras proteções que, de um modo ou de outro, também advêm de sua qualidade como direito fundamental, destacando-se as proteções relativas ao direito do autor e à propriedade industrial.
Longe de se discutir esses instrumentos no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo porque nosso espaço é curto aqui, é preciso entender que, quanto mais eficazes forem no intuito de proteger a criação artística do humorista, ou ainda, sua produção industrial[22], mais poderão ser validados como resistência, (re) apropriação e autovalorização do trabalho intelectual, tal como proposto por Negri (2015).
Em terceiro lugar, é preciso concordar com a (in) constitucionalidade de qualquer mecanismo legal ou infralegal capaz de estabelecer tentativas de regulamentar a atividade humorística. Aliás, arriscamos a dizer que desse mal estamos distantes, na medida em que o STF, ao qualificar o humor como liberdade de expressão (ADIN nº 4.451/DF), estendeu-lhe o posicionamento fixado na ADPF nº 130/DF, no sentido da não-recepção da Lei de Imprensa (mecanismo de regulamentação) pela atual ordem constitucional.
Em último lugar, tornar o humor um direito fundamental requer justificativas teóricas capazes de lhe emprestar amplo conteúdo, o que implica em discuti-lo no bojo daquelas teses que atribuem aos direitos fundamentais um conteúdo aprioristicamente irrestrito, para, num próximo passo, construir seus limites externos e casuísticos. Ganham relevo, portanto, teorias como a de Robert Alexy (2006) sobre a colisão entre direitos fundamentais, e a de Virgílio Afonso da Silva (2017) sobre o conteúdo essencial desses direitos.
CONCLUSÕES
- A análise histórica do pensamento sobre o humor oferece tanto elementos capazes de justificar sua qualidade de direito fundamental, à luz da liberdade de expressão e de criação artística, quanto elementos indispensáveis para efetivar uma leitura crítica sobre a visão moderna que tem recaído sobre ele.
- Não é possível solucionar qualquer questão envolvendo a crise que atualmente recai sobre fenômeno do humor sem uma análise de seu desenvolvimento histórico, notadamente aquelas teorias que o enfrentaram sob o método dialético entre o sério e o não-sério.
- Nos dias de hoje, observa-se pragmaticamente todas as características que classificam a sociedade humorística de Gilles Lipovetsky, especialmente aquelas que direcionam o humor para o mercado de consumo.
- É absolutamente possível ler a sociedade humorística de Gilles Lipovetsky sobre o pano de fundo da noção de biocapitalismo exposta por Antônio Negri, donde devemos, através do método dialético, analisar especificamente quais os biopoderes e quais as biopolíticas que protagonizam nesse espaço. Aqui, torna-se igualmente relevante a historicidade do pensamento do humor, mormente as teorias que buscaram classificar o fenômeno como resistência e correção.
- Ao contrapor elementos de biopolítica aos biopoderes que marcam o humor biocapitalizado, chega-se à conclusão de que há subsídios jurídicos suficientes para emprestar capacidade de resiliência ao fenômeno, tais como considerar o humor como liberdade de expressão e criação artística, proteger os direitos autorais e de produção industrial dos humoristas, afastar censuras e tentativas de regulamentação da atividade humorística, dentre outros, sempre tratando o fenômeno como produto do trabalho intelectual humano.
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[1] Doutorando e Mestre em Direito pela UNIMAR (Universidade de Marília). Professor universitário. Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário Toledo (UNITOLEDO). Advogado.
[2] Pós-Doutor em Direito (Universidade de Coimbra – Ius Gentium Conimbrigae). Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Professor do Mestrado e do Doutorado em Direito da UNIMAR (Universidade de Marília). Advogado.
[3] Doutor em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide, Sevilha (Espanha). Professor do Mestrado e do Doutorado em Direito da UNIMAR (Universidade de Marília). Procurador da República.
[4] Verena Alberti (2011, p. 58) bem evidencia que, com Cícero, “o emprego do risível no discurso torna o ouvinte benevolente, produz uma agradável surpresa, abate e enfraquece o adversário, mostra que o orador é homem culto e urbano, mitiga a severidade e a tristeza, e dissipa acusações desagradáveis”.
[5] Para George Minois (2003), Diógenes, como todo cínico, reatava com a tradição do riso agressivo, contrariante, buscando a transgressão exacerbada dos princípios e ideias concebidos. Tratava-se, pois, de uma fórmula para o homem reencontrar seus valores próprios, individuais e autênticos.
[6] Sobre esse ponto, George Minois (2003, p. 69), ao tratar de Luciano e Diógenes, sustenta-os sobre toda uma corrente nova do pensamento grego, qual seja, a do “riso agressivo do período arcaico”, “riso triunfante vindo dos deuses, […] evocador do caos original” e “portador de uma incrível força destrutiva”, pois, “domesticado, intelectualizado a partir do século IV a. C., ele se transforma na corrosiva ironia socrática, cética, cínica e termina na derrisão universal”.
[7] Adotando textos semelhantes, assim o faz a Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu art. 13.1 e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em seu art. 10, § 1º.
[8] Nunca é demais recordar a lição de Dalmo de Abreu Dallari (2012, p. 150), que elenca os princípios que norteiam os Estados cuja democracia reina como regime: “a supremacia da vontade popular […]; a preservação da liberdade, entendida sobretudo como o poder de fazer tudo o que não incomodasse o próximo e como o poder de dispor de sua pessoa e de seus bens, sem qualquer interferência do Estado; a igualdade de direitos […]”.
[9] Constituição Federal, art. 170: “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte. IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
[10] Nesse sentido, sustenta Freud (1905, p. 193): “o chiste nos ensinou uma outra coisa que tem afinidade com esse princípio: que no efeito conjunto de muitos fatores que despertam prazer não conseguimos indicar qual a parte que corresponde a cada um deles no resultado final”. O psicanalista coloca que existem dois tipos de chiste: o inofensivo e o ofensivo (ou tendencioso, nas suas palavras). Notadamente sobre este segundo, o prazer gerado é maior na medida em que, “usando o prazer prévio que é proporcionado pelo chiste, ele se coloca a serviço de tendências, a fim de, eliminando supressões e repressões, produzir um novo prazer” (1905, p. 195). Assim, “o chiste não tendencioso quase nunca ocasiona aquela súbita explosão de riso que faz com que o tendencioso seja tão irresistível” (1905, p. 138).
[11] Scott Weems (2016) narra uma série de experimentos modernos, dentre os quais um estudo conduzido por James Rotton, que analisou o efeito de filmes de humor sobre a tolerância à dor em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos: o resultado foi o de que todos os pacientes submetidos ao teste se sentiram melhor em relação a sua condição pós-cirúrgica e pediram 25% menos medicação em comparação aos que não foram submetidos ao teste, demonstrando a significativa importância do humor.
[12] Dimitris Christopoulos e Dimitri Dimoulis (2009) ainda arrematam que, por não haver um critério que prevaleça entre aqueles tradicionais na doutrina (material, formal, de significado ou de reconhecimento), é preciso que o Estado intervenha o mínimo possível, garantindo flexibilidade na definição da arte.
[13] Vide, nessa linha teórica, a obra de Virgílio Afonso da Silva (2017).
[14] O termo “capitalismo” a que nos referimos tem o objetivo, aqui, de focalizar o humor nos meios de comunicação sociais, especialmente as mídias empresariais, que podem (se já não estão) abraçar o humor como atividade produtiva, numa espécie de mercantilização de direitos fundamentais. Esse fenômeno tem sido destacado por pensadores como George Minois e Gilles Lipovetsky, oferecendo-nos subsídios para discutir seus possíveis impactos e como o humor poderia resistir a essa passagem.
[15] Michel Foucault não faz diferenciações técnicas entre as definições de biopoder e biopolítica, tal como fazem outros autores, dentre os quais: Antônio Negri (DIAS; OLIVEIRA, 2017).
[16] Segundo Michel Foucault (1998, p. 291-292), a governamentalidade consistia em “I – o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais aos dispositivos de segurança; II – a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros – soberania, disciplina etc. – e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes; III – o resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado”.
[17] Esses mecanismos de controle ou dispositivos de segurança podem ser entendidos como “una retícula de saberes, poderes, disciplinas, normas morales y jurídicas, reglas, trozos y retazos de discursos de distintos géneros, articulados de forma estratégica y flexible para responder a la necessidade de producir efectos de poder” (MÉDICI, 2011, p. 60). Noutras palavras, esses mecanismos “se caracterizam, na maioria das vezes, como projetos, programas, campanhas, pesquisas, estatísticas etc, os quais têm como principal objetivo impor à coletividade atendida essa ou aquela conduta, em relação aos mais diversos temas, como fecundidade, natalidade, consumo etc.” (SERVA; DIAS; 2016, p. 427).
[18] Trata-se de uma tentativa de resgatar as clássicas definições entre capital constante e capital variável de Karl Marx. De forma simplória, vale lembrar que “o capital constante é a parte do capital que permite ao empresário adquirir os meios de produção (máquinas, ferramentas etc.)”, ao passo que o capital variável é aquele “destinado a remunerar os trabalhadores sob forma de salários”, gerando, pois, mais valor do que o necessário para sua reprodução (DROUIN, 2008, p. 85-86).
[19] É nesse sentido que Antônio Negri (2015, p. 64), em nota de rodapé, transcreve sua resposta dada numa entrevista com Filippo Del Lucchese: “inclusive dentro da escravidão capitalista ainda somos rebeldes, fugitivos, nós nos tornamos selvagens. Ser móveis, inteligentes, possuir linguagens, ser capazes de liberdade, não é um dado natural, é uma potência maquinal, ou produto de uma resistência criativa”.
[20] Em Gilles Lipovetsky (2005, p. 112), “desde a era clássica, a partir da instituição das sociedades estatais, o cômico se opõe às normas sérias, ao sagrado e ao Estado por representar uma espécie de um segundo mundo carnavalesco e popular na Idade Média, o mundo da liberdade satírica do espírito subjetivo. Hoje em dia essa dualidade tende a se liquefazer sob a força invasora do fenômeno humorístico que anexa todas as esferas da vida social, mesmo que seja contra a nossa vontade”.
[21] “Atrás dessa cacofonia de risos organizados está, sabe-se bem, o novo tirano que zomba perdidamente dos valores morais: o índice de audiência, ele próprio agente do deus supremo, que é a economia. Certamente o cômico que vende bem é aquele que o público exige. Produz-se então uma osmose entre as tendências profundas e os interesses, terminando em um cômico de supermercado, do qual se louva o caráter liberador e oxigenante num mundo pouco propício ao exercício do riso” (MINOIS, 2003, p. 622).
[22] Vale a leitura de Tom Alexandre Brandão (2018), que se debruça, ainda que de forma efêmera, sobre o tema da proteção dos direitos autorais e da propriedade industrial do humorista.