DIREITO DE ARREPENDIMENTO DO CONSUMIDOR E COMÉRCIO ELETRÔNICO: APLICABILIDADE AOS BENS VIRTUAIS
1 de fevereiro de 2022CONSUMER’S RIGHT TO REPENT AND E-COMMERCE: APPLICABILITY TO VIRTUAL GOODS
Cognitio Juris Ano XII – Número 38 – Edição Especial – Fevereiro de 2022 ISSN 2236-3009 |
RESUMO: O artigo analisa o direito de arrependimento do consumidor previsto no artigo 49, do Código de Defesa de Consumidor e sua aplicação quando das transações realizadas no comércio eletrônico, em especial no que se refere aos bens virtuais. Inicia-se analisando a evolução da tecnologia com o avanço da internet e a popularização do comércio eletrônico. Posteriormente, examina o sistema de proteção do consumidor e aspectos do Código de Defesa do Consumidor. Adiante, examina o direito de arrependimento do consumidor e suas características para sua efetivação. Por fim, pondera sobre a aplicação do direito de arrependimento quando da compra de bens virtuais. Justifica-se o tema pela importância de analisar os direitos do consumidor no comércio eletrônico, tendo em vista que há grande aumento de utilização da internet para compra de bens. O artigo tem por objetivo estudar a aplicação do direito de arrependimento do consumidor em relação aos bens virtuais. Utilizou-se o método dedutivo com a pesquisa descritiva e explicativa, observando-se o uso de bibliografia e legislação. Conclui-se que o direito de arrependimento é aplicável quando da compra de bens virtuais no comércio eletrônico, devendo-se considerar a vulnerabilidade do adquirente e a boa-fé objetiva.
Palavras-chaves: Comércio eletrônico; Bens virtuais; Direito de arrependimento.
ABSTRACT: The article studies the consumer’s right to repent under Article 49 of the Consumer Protection Code and its application to transactions carried out in e-commerce, especially with regard to virtual goods. It begins by analyzing the evolution of technology with the advancement of the Internet and the popularization of e-commerce. Later, it examines the consumer protection system and aspects of the Consumer Protection Code. Later, it examines the consumer’s right of repent and its characteristics for its effectiveness. Finally, it considers the application of the right of repent when purchasing virtual goods. The subject is justified by the importance of analyzing consumer rights in e-commerce, given that there is a great increase in the use of the Internet to purchase goods. The article aims to study the application of the consumer’s right of repent in relation to virtual goods. The deductive method was used with descriptive and explanatory research, observing the use of bibliography and legislation. It concludes that the right of repent is applicable when purchasing virtual goods in e-commerce, and the vulnerability of the purchaser and objective good faith must be considered.
Keywords: E-commerce; Virtual goods; Right to repent.
INTRODUÇÃO
Com a evolução da sociedade novas tecnologias surgiram, havendo avanços com a criação e popularização da internet, sendo que com essa difusão da nova tecnologia da informação ocorreram mudanças na forma de relacionar e consequentemente de fazer comércio, surgindo assim, o comércio eletrônico.
A defesa do consumidor, que tem caráter constitucional no Brasil, deve ser exercida com vistas a garantir a proteção do consumidor que é a parte mais fraca ou vulnerável da relação jurídica. Diante disso, o Código de Defesa do Consumidor vem garantir a efetivação da proteção do consumidor, exaltando-se dessa Lei os princípios da vulnerabilidade do consumidor e da boa-fé objetiva.
Dentro desse cenário de proteção do consumidor há o chamado direito de arrependimento, que é a possibilidade de o adquirente devolver o produto ou serviço comprado fora do estabelecimento comercial, havendo para tanto um prazo de reflexão de sete dias.
Considerando tal conjuntura, o objetivo do trabalho é analisar a possibilidade de o direito de arrependimento ser aplicado à compra bens virtuais.
Para tanto, observará os aspectos da evolução da tecnologia com a massificação do uso da internet e o comércio eletrônico.
Posteriormente, se procederá à análise do sistema de proteção do consumidor e as características do direito de arrependimento.
Por fim, no último tópico, será estudada a possibilidade de uso do direito de arrependimento no que tange aos bens virtuais adquiridos no comércio eletrônico, realizando um comparativo entre a legislação brasileira e a europeia, bem como analisando a situação no MERCOSUL.
O estudo se justifica pela importância de ponderar sobre os direitos do consumidor no comércio eletrônico que atualmente tem grande parcela de participação nas transações relativas a compra de bens pelos consumidores.
Como metodologia de pesquisa, se utilizará de investigação descritiva e explicativa com aporte na pesquisa bibliográfica e documental e análise da legislação, com o uso do método dedutivo.
1. TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO, INTERNET E COMÉRCIO ELETRÔNICO
Ao longo da história, houve fatos que impulsionaram o desenvolvimento em termos de tecnologia, entre os quais pode-se destacar a Revolução Industrial, dividida na primeira, segunda e terceira Revolução Industrial.
A primeira Revolução Industrial começou na Inglaterra no final do século XVIII e se expandiu ao redor do mundo no início do século XIX. Nesse período, houve um grande salto na mecanização da produção industrial. É caracterizada pelo surgimento do motor a vapor. A segunda Revolução Industrial, que surgiu no final do século XIX, é amplamente caracterizada pelo surgimento da eletricidade, petróleo e indústria química. Por sua vez, a terceira Revolução Industrial (revolução informática) é marcada por grandes mudanças no setor tecnológico informacional. É nesse período que surge a chamada Tecnologia da Informação que é:
uma denominação que reflete a convergência de diversas correntes do desenvolvimento tecnológico, incluindo microeletrônica, ciência da computação, telecomunicações, engenharia de software e análise de sistemas. É uma tecnologia que aumenta incrivelmente a habilidade para registrar, armazenar, analisar e transmitir informação, tendo como características a flexibilidade, integridade, e a não-existência de limites geográficos, bem como, a possibilidade de manipular grandes volumes de informação. (OLIVEIRA, 2005, p. 206).
A tecnologia da informação mais importante no contexto atual e mais conhecida é a internet, sendo que se originou de outras redes de computadores interconectadas que se desenvolveram ao longo dos anos.
Em meados de 1957, com o lançamento pela Rússia do primeiro satélite artificial na Terra o Sputinik, os EUA, em resposta, criaram a ARPA (Advanced Research Projects Agency). A ARPA foi criada inicialmente exclusivamente para fins militares, mas ao longo dos anos também começou a trabalhar no desenvolvimento de novas tecnologias que depois foram disseminadas por todo o ambiente civil (CARMO; CARDOSO, 2017, p. 138).
Em 1969, foi estendida para uso em universidades, ligando inicialmente quatro universidades no oeste dos Estados Unidos. Uma rede física foi construída conectando quatro pontos à UCLA, SRI (em Stanford), à Universidade de Santa Barbara e à Universidade de Utah. Aproximadamente quatro anos após a rede se expandiu com a conexão de novos pontos (CUSTÓDIO; SILVA, 2009, p. 182).
Como o passar dos anos, já na década de 1980, o acesso foi liberado para uso comercial e na década de 1990 houve a popularização da internet.
Vários são os conceitos de internet, entre eles tem-se que é
[…]a interligação de redes de computadores espalhadas pelo mundo, que passam a funcionar como uma só rede, possibilitando a transmissão de dados, sons e imagens de forma rápida. Essa interligação de redes pode ser feita por sistema telefônico de cabos de cobre ou de fibras óticas, por transmissão vias ondas de rádio ou via satélite, por sistema de televisão a cabo etc. O usuário a ela se conecta, geralmente, por intermédio de um aparelho conhecido por modem, associado à utilização de programas de computadores com essa finalidade (TEIXEIRA, 2018, p. 29).
Ainda, a Lei do Marco Civil (Lei 12.965, de 23 de abril de 2014) define internet como sendo o “sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes” (BRASIL, 2014).
A internet pode ser considerada como um dos eventos mais importantes e revolucionários da história da humanidade. Pela primeira vez no mundo, é possível para um cidadão comum ou uma pequena empresa acessar de maneira barata e rápida informações que existem em outras partes remotas do mundo ou alcanças qualquer pessoa conectada a um aparelho que esteja ligada em rede mundial (MARQUES; KLEE, 2014, p. 481).
Tal tecnologia é considerada um grande avanço científico, sendo que
a Internet é a síntese e o auge de todo o desenvolvimento tecnológico e científico do século XX e da primeira década do século XXI. Ela reúne os mais avançados inventos de várias áreas científicas, desde a eletrônica, com os seus mais poderosos computadores, até a telecomunicação, com emissão e transmissão de som e imagem por cabos, fibra ótica, rádio e satélites. É o território da liberdade; viaja-se para qualquer lugar do mundo sem passaporte. Tornamo-nos cidadãos do mundo globalizado (CAVALIERI FILHO, 2019, p. 186).
Com essa popularização da internet, as relações entre as pessoas também se adaptaram a esse novo meio, surgindo, assim, novas formas de interação. Uma dessas novas possibilidades de interação se deu na área comercial, na qual se originou o que hoje se denomina comércio eletrônico.
O comércio eletrônico pode ser considerado como a compra e venda de produtos ou prestação de serviços realizados em meio virtual.
Fábio Ulhôa Coelho entende que comércio eletrônico é
a venda de produtos ou prestação de serviços realizadas por meio de transmissão eletrônica de informações […]. É a venda de produtos (virtuais ou físicos) ou a prestação de serviços em que a oferta e o contrato são feitos por transmissão e recepção eletrônica de dados. O comércio eletrônico realiza-se no ambiente da rede mundial de computadores (COELHO, 2012, p. 54-55).
Por sua vez, Humberto Theodoro Júnior destaca que o comércio eletrônico é entendido como o acordo comercial realizado eletronicamente, em que não há um contato físico, havendo em verdade a celebração do contrato em meio virtual ou eletrônico (THEODORO JÚNIOR, 2017, p. 130).
Hoje em dia, a comercialização através da internet já é uma realidade acessível a qualquer pessoa, seja ela física ou jurídica. Destacando-se que
inicialmente os negócios na internet se baseavam somente na presença, ou seja, em ter um site na rede. Em uma segunda etapa as empresas passaram a realizar transações, comprar e vender de forma on-line. Hoje, já em uma terceira etapa, o foco está em pensar de maneira sistêmica em como o ambiente da internet pode colaborar com o sucesso da empresa. É possível perceber que o formato de relacionamento entre as partes (empresa e consumidor) também se modifica. Na primeira fase, a relação pode ser considerada passiva. A empresa coloca uma informação no site e o usuário somente recebe essa informação. Na segunda etapa, a relação passa da simples informação para um processo de escolha e compra de algum produto, pode-se dizer que é uma relação ativa. Hoje em dia, a terceira fase vem edificando uma forma de relação interativa onde as partes envolvidas se interagem para trocar informações, comunicar, realizar transações entre outras ações (CARMO; CARDOSO, 2017, p. 139).
O comércio electrónico está dividido em algumas modalidades, que são: a) B2B, business-to-business; b) B2C, business-to-consumer; c) C2C, consumer-to-consumer.
O business-to-business, ou B2B, é, basicamente, o comércio eletrônico praticado entre empresas, sendo esta relação regida pelo direito comercial. Envolve a comercialização de bens e a prestação de serviços entre empresários em geral, excluindo a participação direta dos consumidores.
Há algum tempo, as relações comerciais eletrônicas eram privilégio das grandes empresas e de seus fornecedores, pois com os altos recursos de que dispunham, elas constituíam uma rede privada de telecomunicações. Hoje, qualquer empresa tem acesso a esse tipo de comércio, tendo em vista a popularização da internet.
O business-to-consumer, ou B2C, pode ser definido como a negociação entre o fornecedor de produtos e serviços e o consumidor final. O que caracteriza fundamentalmente esse tipo de comercialização são as pessoas envolvidas, onde existe necessariamente uma relação de consumo.
O consumer-to-consumer, ou C2C, corresponde à comercialização de produtos e serviços entre consumidores. Tem a característica de uma relação de direito privado, onde se aplicam as regras do direito civil.
Ressalta-se que
a Internet é uma rede mundial de computadores operada por pessoas que interagem e se comunicam trocando entre si mensagens, arquivos de textos, de dados e de imagens, de som e de voz. Uma vez utilizada pelas empresas, a Internet possibilitou a negociação sem fronteiras, tanto na relação entre empresas (business to business – B2B), quanto na relação entre empresas e consumidores (business to consumer – B2C) (AZEVEDO; KLEE, 2013, p. 231).
Certo é que o comércio eletrônico pode ser caracterizado como uma forma de comercialização no meio virtual ou mais uma maneira de se praticar negócios, inferindo-se que as regras atinentes à legislação aplicáveis ao comércio regular (ou realizado em ambiente não virtual) sejam igualmente aplicáveis ao comércio eletrônico.
2. A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
A defesa do consumidor é cláusula pétrea, prevista no artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal (CF), expondo que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (BRASIL, 1988), bem como é um dos princípios da ordem econômica (artigo 170, V, CF).
Em análise à situação da norma constitucional de previsão de proteção do consumidor, Leonardo de Medeiros Garcia, expõe que
a Constituição Federal de 1988, incorporando uma tendência mundial de influência do direito público sobre o direito privado, chamada pela doutrina de ”constitucionalização do Direito Civil” ou de “Direito Civil Constitucional”, adotou como princípio fundamental, estampado no art. 5°, XXXII, “a defesa do consumidor”.
A inclusão da defesa do consumidor como direito fundamental na CF vincula o Estado e todos os demais operadores a aplicar e efetivar a defesa deste ente vulnerável, considerado mais fraco na sociedade[…] A Constituição, sob o novo enfoque que se dá ao direito privado, funciona como centro irradiador e marco de reconstrução de um direito privado brasileiro mais social e preocupado com os vulneráveis (GARCIA, 2017, p. 17).
Com base nessa necessidade de promover a defesa do consumidor, parte mais fraca na relação de consumo, o legislador constituinte previu a obrigação de que fosse elaborado uma lei para a defesa do consumidor, consoante artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Tal legislação protecionista veio por meio da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que representa uma importante inovação no ordenamento jurídico do Brasil, pois vem a dar efetividade ao comando de proteção do consumidor prevista na Constituição Federal (AZEVEDO; KLEE, 2013, p. 217).
Acerca da proteção do consumidor prevista na Constituição Federal é proveniente da transformação ou evolução social do período, pois
no campo da relação contratual de consumo, é mister reconhecer que o surgimento do direito do consumidor traduziu as transformações pelas quais passou o direito contratual no século XX, de relativização dos princípios constitutivos da teoria contratual clássica – assentada no dogma fundamental da autonomia da vontade – em razão da busca pelo real equilíbrio e justiça nas relações contratuais em especial, das que envolvem sujeitos em evidente desigualdade de forças.
O microssistema do Código de Defesa do Consumidor, Lei de ordem pública e interesse social (art. 1.º), concretiza, no cumprimento de sua finalidade protetiva, o princípio da função social do contrato, por meio do qual se condiciona a satisfação dos direitos/liberdade individuais dos contratantes à realização de interesses coletivos (ideia de solidariedade social orgânica, prevista na Constituição da República, art. 3º, I), pertencentes ao contexto em que estão inseridas essas relações jurídico-contratuais (AZEVEDO; KLEE, 2013, p. 219-220).
Em análise sobre o Código de Defesa do Consumidor Luiz Antônio Rizzatto Nunes destaca que a lei consumerista é de natureza de ordem pública com evidente interesse social, tendo um caráter principiológico. O CDC é aplicável sempre que houve uma relação de consumo, devendo-se observar suas regras e princípios (NUNES, 2018, p. 81-82).
Pode-se ressaltar que
O CDC – Código de Defesa do Consumidor – é uma lei principiológica, pois não versa especificamente sobre determinado contrato firmado entre fornecedor e consumidor, ou seja, de um negócio jurídico específico. Ao contrário, estabelece parâmetros para todos os contratos de consumo. São normas cogentes de proteção do consumidor, tendo a função de intervir e garantir o equilíbrio e a harmonia das relações jurídicas entre fornecedor e consumidor (TEIXEIRA, 2018, p. 273).
Observa-se que o CDC é uma norma de regência contratual, pois visa a equilibrar as relações entre consumidores e fornecedores, principalmente em função da economia de escala, em que as negociações são despersonalizadas, o que ressalta a ideia de consumo de massa e por consequência a necessidade de proteção do lado mais fraco da relação jurídica.
O CDC é regido por princípio que garantem a proteção do consumidor e o equilíbrio da relação de consumo, destacando-se o princípio da vulnerabilidade do consumidor e o princípio da boa-fé objetiva.
Acerca do princípio da vulnerabilidade Luiz Antônio Rizzatto Nunes pondera que
O inciso I do art. 4º reconhece: o consumidor é vulnerável. Tal reconhecimento é uma primeira medida de realização da isonomia garantida na Constituição Federal. Significa ele que o consumidor é a parte fraca da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico. O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor. […] O segundo aspecto, o econômico, diz respeito à maior capacidade econômica que, por via de regra, o fornecedor tem em relação ao consumidor (NUNES, 2018, p. 122-123).
No mesmo sentido, explicando acerca do princípio da vulnerabilidade previsto no CDC, destaca-se que o consumidor é parte vulnerável, mais fraca da relação de consumo, pois não tem acesso ao poder aquisitivo, informações técnicas ou ainda, haja vista a publicidade agressiva desenvolvida pelos fornecedores, por isso
há de se entender a fragilidade dos consumidores, em face dos fornecedores, quer no que diz respeito ao aspecto econômico e de poder aquisitivo, quer no que diz respeito às chamadas informações disponibilizadas pelo próprio fornecedor ou ainda técnica. Ora, referidas informações, que podem ser, por exemplo, verdadeiras ou falsas, ou então desatenderem às expectativas dos consumidores, mediante oferta, publicidade ou apresentação[…], apresentando-se, por conseguinte, na fase chamada pré-contratual. Essa vulnerabilidade ainda está presente na fase de contratação na aquisição de um produto ou da prestação de um serviço. Sabendo-se que hoje em dia, dada a massificação da produção e, consequentemente, do crédito e das vendas, a grande maioria dos contratos é de adesão, ou seja, contrato em que as condições gerais e cláusulas são unilaterais e previamente ditadas por apenas uma das partes, cabendo à outra tão-somente aceitá-las ou não, é grande o risco de prejuízo ao consumidor, parte mais fraca. E por último essa vulnerabilidade se manifesta na fase pós-contratual, em que podem surgir vícios ou defeitos, tornando os produtos adquiridos ou serviços contratados inadequados aos fins aos quais se destinam, ou então nocivos ou perigosos à incolumidade física ou saúde dos consumidores que, além disso, poderão experimentar prejuízos em decorrência desses mesmos vícios ou defeitos (FILOMENO, 2018, p. 58-59).
Observa-se que na relação de consumo, no âmbito de mercado de consumo, o consumidor é a parte mais fraca, exaltando-se, assim, a necessidade de se reconhecer a vulnerabilidade tanto no plano econômico quanto no âmbito técnico, haja vista que
com a constatação de que a relação de consumo é extremamente desigual, imprescindível foi buscar instrumentos jurídicos para tentar reequilibrar os negócios firmados entre consumidor e fornecedor, sendo o reconhecimento da presunção de vulnerabilidade do consumidor o princípio norteador da igualdade material entre os sujeitos do mercado de consumo (ALMEIDA, 2013, p. 289).
A vulnerabilidade do consumidor pode ser: 1) técnica em que o adquirente do bem não tem conhecimentos totais sobre o bem a ser comprado; 2) jurídica, no sentido de que o consumidor não tem entendimento específico no que tange aos conhecimentos jurídicos, contáveis e econômicos; e, 3) fática, em relação à necessidade de o consumidor ter de adquirir determinado bem do fornecedor (MARQUES, 2016, p. 326-333).
Outro princípio que rege as relações de consumo é o princípio da boa-fé objetiva que diz respeito ao dever de seguir regras de honestidade e não buscar prejudicar a outra parte na relação jurídica. É um padrão a ser seguido como regra de integridade.
No Código de Defesa do Consumidor vem exaltado no artigo 4º, inciso III, ao expressar que a política nacional das relações de consumo deve buscar a “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor […] sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores” (BRASIL, 1990).
A boa-fé objetiva refere-se à necessidade de as partes da relação comercial observarem os deveres atinentes à melhor condução da negociação para ambas as partes, com honestidade, integridade e fidelidade, portanto, ressalta um dever de conduta entre os que fazem partem da relação consumerista. Há um conjunto de ética de comportamento que deve ser seguido pelos contraentes, em todas as fases do contrato, incluindo após sua extinção (GARCIA, 2017, p. 60-61).
Ressalta-se que a boa-fé objetiva igualmente reflete a necessidade de observância dos chamados deveres anexos ao negócio efetuado, destacando-se os deveres de respeito, informação, lealdade e probidade, honestidade e cooperação (TARTUCE, 2014, p. 85-56).
Sobre a boa-fé na contratação Cláudia Lima Marques assevera que
a necessária boa-fé na contratação significa transparência obrigatória em relação ao parceiro contratual, respeito obrigatório aos normais interesses do outro contratante, ação positiva do parceiro contratual mais forte para permitir ao parceiro contratual mais fraco as condições necessárias para a formação de uma “vontade racional” (MARQUES, 2016, p. 980).
Durante todo o contrato as partes devem seguir as premissas da boa-fé objetiva, havendo a necessidade de buscarem a cooperação e a não prejudicar o outro contratante, principalmente o fornecedor em relação ao consumidor, parte vulnerável da relação.
3. O DIREITO DE ARREPENDIMENTO DO CONSUMIDOR
O direito de arrependimento do consumidor está previsto no artigo 49, do CDC que expressa que
o consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados (BRASIL, 1990).
O direito de arrependimento é a faculdade de o consumidor proceder à devolução do produto ou serviço adquirido fora do estabelecimento empresarial após um período de reflexão, prazo esse que é definido no CDC como sendo de sete dias após o recebimento do produto ou serviço. É um direito potestativo, não havendo necessidade de justificativa por parte do consumidor em exercer esse direito, pois “a compra sujeita ao prazo de reflexão realiza-se sob a modalidade de condição suspensiva puramente potestativa. Ou seja, o comprador não é obrigado a motivar a sua desistência” (NADER, 2018, p. 253).
Referido direito surge como decorrência da necessidade de proteger o consumidor de compras realizadas sem a regular análise sobre o produto ou sem a ponderação sobre a própria compra, haja vista que em comprar realizadas fora do estabelecimento comercial pode haver compras por impulso ou aquisição de produtos que não eram necessários ao consumidor (ALMEIDA, 2013, p. 854).
Pondera-se que o objetivo da legislação consumerista é possibilitar que o consumidor proceda à “verificação da correspondência entre a [sua] expectativa […] e o produto real adquirido, devido à majoração da sua vulnerabilidade, em decorrência do distanciamento entre as partes contratantes” (KLEE, 2014, p. 218).
Com efeito,
[…]esse fundamento – impossibilidade de o consumidor examinar o bem de perto, tocá-lo e vê-lo em funcionamento – não pode ser o único, e nem mesmo o principal, a justificar o instituto. Primeiro, porque tal fundamento faz pouco sentido em relação aos serviços, sendo que o direito de arrependimento também se aplica a eles, conforme expressa dicção do art. 49 do CDC. Segundo, porque se essa fosse a única razão de ser do instituto, ele não poderia ser aplicado a situações nas quais o consumidor, por já deter todas as informações relevantes no momento da contratação, não poderia ter sua expectativa frustrada com o recebimento do produto ou serviço […]; ou mesmo na hipótese de uma venda a domicílio, pelo sistema door-to-door, na qual o consumidor teve a oportunidade de examinar o produto, tocá-lo e vê-lo em funcionamento […]. [Acrescenta-se que] o dispositivo visa, principalmente, proteger a declaração de vontade do consumidor contra técnicas agressivas de vendas fora do estabelecimento, instituindo um prazo de reflexão obrigatório para que o adquirente decida, com calma, sobre a real necessidade do bem ou serviço. […] O objetivo principal da norma passaria a ser, portanto, o de proteger o consumidor contra as chamadas “compras emocionais” ou “por impulso”, feitas de forma precipitada e sem a necessária reflexão, em decorrência do emprego de técnicas agressivas de vendas que atingem o consumidor em sua residência ou local de trabalho (PIZZOL, 2019, p. 144).
O direito de arrependimento tem razão de ser tanto para possibilitar a melhor análise do produto ou serviço adquirido quanto para barrar eventuais prejuízos decorrentes de compras por impulso e decorrentes de formas agressivas ou com a falsa impressão de a negociação ter sido realizada de forma mais livre possível.
Em relação à possibilidade de o referido direito ser aplicado às compras realizadas pela internet, no comércio eletrônico, é de se destacar que o rol existente no artigo 49, CDC é meramente exemplificativo, não havendo óbice que se reconheça a sua aplicação ao comércio eletrônico.
É certo que o direito de arrependimento existe quando a contratação se der fora do estabelecimento comercial. Isso pode ocorrer das mais variadas formas. O Código enumerou, de modo exemplificativo, algumas dessas maneiras de contratação: por telefone e em domicílio. O caráter de numerus apertus desse elenco é dado pelo advérbio “especialmente”, constante da norma. Essa expressão indica claramente o propósito da lei de enumerar exemplos e não hipóteses taxativas. Toda relação de consumo que for celebrada fora do estabelecimento comercial está sujeita ao regime do direito de arrependimento (NERY JÚNIOR et al, 2019, p. 771).
Considerando-se o rol exemplificativo do artigo 49, CDC o direito de arrependimento é plenamente aplicável às transações realizadas pela internet, pois “pode-se afirmar que as relações jurídicas estabelecidas em ambiente virtual também estão reguladas por essa norma, porque são contratações a distância, celebradas fora do estabelecimento comercial” (KLEE, 2014, p. 218). Pode-se observar que a contratação dar-se-á fora do estabelecimento empresarial sendo o comércio eletrônico mais uma forma de contratação.
O fato de a compra ter sido efetuada através da internet não impede a possibilidade de o consumidor exercer o direito previsto no artigo 49, do CDC, haja vista que se trata de mais uma modalidade de compra à distância.
Acerca da aplicabilidade do direito de arrependimento do consumidor ao comércio eletrônico de se ressaltar o Decreto n. 7.962, de 2013 que expressa em seu artigo 1º “este Decreto regulamenta a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico, abrangendo os seguintes aspectos:[…] III – respeito ao direito de arrependimento” (BRASIL, 2013). Igualmente, o mesmo Decreto em seu artigo 5º expõe que “o fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor” (BRASIL, 2013).
Vê-se que é clara a aplicação do direito de arrependimento previsto no artigo 49 do CDC aos negócios realizados pela internet, ressaltando que o Decreto no 7.962 de 2013, “editado para regulamentar o CDC em matéria de comércio eletrônico, tratou expressamente do direito de arrependimento em seu artigo 5º, sem fazer ressalvas, reforçando, com isso, a aplicabilidade do art. 49 aos contratos eletrônicos em geral” (PIZZOL, 2019, p. 148).
Além das citadas normas, no mês de março de 2020 foi editado o decreto 10.271 que “dispõe sobre a execução da Resolução GMC nº 37/19, de 15 de julho de 2019, do Grupo Mercado Comum, que dispõe sobre a proteção dos consumidores nas operações de comércio eletrônico” (BRASIL, 2020).
O referido decreto determina o cumprimento da Resolução n. 37/2019 do MERCOSUL que impõe ao Estados Partes a necessidade de observância de direito mínimos aos consumidores no âmbito do comércio eletrônico, entre tais direitos consta o de “arrependimento ou retratação nos prazos que a norma aplicável estabelecer” (BRASIL, 2020).
Assim, extrai-se que o direito de arrependimento é plenamente aplicável ao comércio eletrônico, não havendo qualquer entrave a sua observância nessa modalidade de comercialização.
4. APLICABILIDADE DO DIREITO DE ARREPENDIMENTO DO CONSUMIDOR AOS BENS VIRTUAIS
Como ressaltado anteriormente, o direito de arrependimento do consumidor é aplicável ao comércio eletrônico, porém são necessárias ponderações acerca da possibilidade desse direito ser utilizado quando da compra de bens virtuais.
Bens virtuais podem ser entendidos como bens não corpóreos, pois não se encontram concretamente, mas sim através da informação gerada no âmbito do espaço computacional.
Consoante definição de Adelmo da Silva Emerenciano, os bens virtuais ou bens digitais como expressa o autor, constituem conjuntos organizados de instruções, na forma de linguagem de sobrenível, armazenados em forma digital, podendo ser interpretados por computadores e por outros dispositivos assemelhados que produzam funcionalidades predeterminadas. Possuem diferenças específicas tais como sua existência não-tangível de forma direta pelos sentidos humanos e seu trânsito, por ambientes de rede teleinformática, uma vez que não se encontram aderidos a suporte físico (EMERENCIANO, 2002, p. 93).
Ainda no mesmo sentido de definição de bem virtual, entende-se que “os bens digitais, então, são uma espécie de software de computador que, como qualquer outro, é transmitido de uma máquina para outra na forma de fluxos de elétrons, denominados bits” (SANTOS, 2014).
Diante dessa não existência física e a consequente existência em um ambiente virtual é que poderia haver dúvidas sobre a aplicabilidade do direito de arrependimento nas compras dos bens virtuais.
Acerca das negociações em meio virtual, se poderia dizer que nas compras pela internet o consumidor teria uma maior liberdade e mais acesso à informação, imaginando que não seria cabível falar em arrependimento do consumidor, porém a situação na realidade é diferente. A ideia de mais liberdade e acesso a maiores detalhes do produto em verdade pode caracterizar uma minoração no potencial do consumidor decidir sobre a compra, pois como usuário da rede, o potencial adquirente é [i] guiado por links e conexões entre sites, intencionalmente criados, [ii] recebe apenas as informações que o fornecedor deseja lhe transmitir, [iii] é vítima de manipulações de preços, [iv] tem sua privacidade invadida e, a depender do caso, [v] sequer consegue utilizar sua língua nativa para celebrar o contrato. […] há uma pseudoliberdade nesse ambiente, quando, na verdade, apenas teriam se sofisticado os métodos de controle sobre o consumidor (PIZZOL, 2019, p. 149).
Igualmente, destaca o mesmo autor acerca da maior agressividade da publicidade e maior influência desta na decisão de compra do consumidor, asseverando que os métodos de publicidade aplicados na internet também são bastante agressivos, desmontando a enganosa imagem de que, no e-commerce, o consumidor adquire por iniciativa própria, no conforto de seu lar, longe das pressões dos vendedores. Ao contrário do que se dá no comércio tradicional, em que a publicidade se restringe a espaços e momentos delimitados (um comercial de TV, um outdoor, uma página de jornal etc.), no comércio virtual, o marketing ocorre em um fluxo permanente, acompanhando o internauta em todos os momentos de sua navegação, mesmo em sítios que não têm finalidade comercial imediata. Banners e pop-ups aparecem diante do usuário a todo o momento. Spams abarrotam sua caixa de e-mail. Para assistir a um vídeo no YouTube, é preciso assistir antes a um vídeo publicitário, ao menos por um período mínimo. Nos sites de busca, links patrocinados aparecem no topo da lista e com maior destaque. Ao acompanhar celebridades no Instagram, o usuário é bombardeado por posts de produtos e serviços. Ao arrastar um bem para seu “carrinho de compras”, o consumidor recebe, de imediato, indicações de produtos relacionados, bem como de outros bens que também foram adquiridos por pessoas que compraram o primeiro (PIZZOL, 2019, p. 149).
Com efeito, esta pseudoliberdade traz prejuízos ao consumidor, pois há uma potencialização de métodos invasivos de publicidade, ocorrendo compras sem uma necessária reflexão sobre o produto adquirido, seja qual for o tipo de produto (PIZZOL, 2019, p. 150).
Diante desta forma de impossibilidade de melhor análise do bem adquirido e ainda haja vista as técnicas de marketing cada vez mais invasivas, não se pode querer limitar o direito de arrependimento a um tipo de produto, ainda mais se considerando que a legislação não faz qualquer ressalva sobre sua aplicação, salvo que o bem ou serviço seja adquirido fora do estabelecimento comercial (PIZZOL, 2019, p. 150).
Destaca-se que a possibilidade de aplicação do direito de arrependimento aos bens virtuais deve ser atrelada à boa-fé do consumidor. Seguindo esse entendimento expressa Newton de Lucca: embora tenha me pronunciado, desde o primeiro momento, pela possibilidade de aplicação desse direito de arrependimento, previsto no art. 49 do CDC brasileiro, sempre sustentei, igualmente, que seu exercício haveria de estar inteiramente subordinado à boa-fé objetiva, contemplada como norma principiológica, no art. 4º, III, do mesmo diploma legal. Não me parece razoável, assim, que os consumidores estejam a adquirir produtos digitalizados e, logo após efetuarem o download destes, manifestem seu arrependimento com base no retro citado art. 49. como devolver, com efeito, algo que, após o download, já se acha incorporado ao patrimônio – no caso, o disco rígido instalado na unidade central de processamento – do consumidor? (LUCCA, 2003, p. 110).
Pondera-se que em artigo mais recente Newton de Lucca reitera acerca da possibilidade de aplicação do direito de arrependimento aos bens virtuais, destacando mais uma vez a necessidade de que o consumidor esteja em evidente boa-fé (LUCCA, 2012, p. 28).
É certo que se poderia cogitar que poderia haver enriquecimento sem causa do consumidor ao ponderar que o bem virtual seria de impossível devolução, haja vista que quando do download já foi incorporado ao patrimônio do consumidor, entretanto tal ilação não pode ser levada a extremo de impedir o consumidor de boa-fé de exercer seu direito legítimo.
Assim, para exemplificar, um software (programa de computador) que é comprado via internet, através da efetuação de um download diretamente do servidor do fornecedor para o computador do consumidor. De início, observa-se que tal bem se incorporou ao patrimônio do consumidor, assim não poderia ser devolvido, mas se tal bem tivesse o uso limitado aos sete dias de reflexão, se fosse dado ao consumidor algum serial que durasse sete dias e, que para usufruir do programa integralmente necessitaria de uma nova chave, dessa forma seria aplicável o direito de arrependimento, que o consumidor após os sete dias poderia exigir a devolução do valor pago e devolveria ao fornecedor o software (nesse caso deixaria de utilizá-lo).
Ressaltando a possibilidade de aplicação do direito de arrependimento do consumidor aos bens virtuais, Analice Castor de Mattos entende que é possível, pois quanto aos contratos de consumo eletrônico de fornecimento de bens imateriais ou incorpóreos, cuja execução, na maioria das vezes, dar-se-á imediatamente após a contratação, e aos contratos em que o fornecedor confere a possibilidade de “individualizar” o produto – como por exemplo, montar um veículo escolhendo as peças disponibilizadas – aplica-se da mesma forma a regra do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor. Cabe ao fornecedor, conhecendo o risco da desistência do negócio, já que tal risco integra sua atividade, buscar alternativas eficazes para minimizar eventuais prejuízos que venha a sofrer. Na primeira hipótese, pode criar bloqueios anticópia que perdurariam até o final do prazo dos sete dias (MATTOS, 2007, p. 128).
Ressalta-se que além da boa-fé objetiva, não se pode olvidar que há a vulnerabilidade do consumidor em relação ao fornecedor, sendo que essa relação de inferioridade do adquirente dos produtos pode dificultar um discernimento sobre aquilo que se está comprando, sendo mais uma justificativa para que seja aplicado o direito de arrependimento aos bens virtuais.
É de se ponderar que no direito estrangeiro encontram-se soluções diversas para a aplicação do direito de arrependimento no que tange aos bens virtuais.
Em Portugal, no Decreto-Lei 24/2014 há o chamado direito de livre resolução. Em tal dispositivo legal é previsto que o consumidor tem o prazo de 14 dias para devolver o produto adquirido fora do estabelecimento comercial, porém expressa em seu artigo 16 que tal direito não é aplicável aos bens virtuais (PORTUGAL, 2014).
Na Espanha, há o chamado derecho de desistimiento que prevê que o consumidor pode desistir da contratação celebrada à distância e fora do estabelecimento comercial no prazo de 14 dais, igual como em Portugal.
O Real Decreto Legislativo n. 1/2007 prevê, porém, exceção ao direito de desistência em seu artigo 103, destacando que não se aplica o direito de desistência ao produto digital fornecido por meio de download e que o consumidor tenha sido informado e consentido acerca de tal situação (ESPANHA, 2007).
Na França, por meio do Code de la consommation (Código do consumidor) há o droit de rétractation (direito de retratação) que prevê um período para que o consumidor possa devolver o bem adquirido fora do estabelecimento mercantil. Entretanto, a mesma legislação prevê que não é possível a retratação em relação aos bens digitais (FRANÇA, 2016).
Na União Europeia, em geral, há a Diretriz 2011/83/UE que regulamenta o direito dos consumidores no âmbito europeu e em tal diretriz há o chamado direito de retratação que impõe que o consumidor tem o prazo de 14 dias para devolver o produto adquirido em contratação celebrada à distância ou fora do estabelecimento comercial.
Destaca-se que na referida diretriz há situações em que expressamente é excluído o direito de arrependimento (ou retratação), sendo a aquisição de bens virtuais uma delas, expressando que ao fornecimento de conteúdos digitais não se aplica o direito de retração (UNIÃO EUROPEIA, 2011).
Cumpre destacar que as diretrizes da União Europeia não são de repetição obrigatória nos Estados-Membros quanto à forma, porém os Estados devem observar a necessidade de alcançar os resultados almejados pelas diretrizes, bem como incorporar nas legislações locais os regramentos (BORCHARDT, 2011, p. 95-96).
No âmbito do MERCOSUL, conforme anteriormente explanado, há o regramento acerca da necessidade de os Estados-Partes observarem regras mínimas para a proteção dos consumidores no comércio eletrônico, destacando a existência do direito de arrependimento ou direito de retratação. Porém, não há qualquer indicação acerca de tal direito no que tange aos bens virtuais ou produtos digitais.
Em relação ao Brasil, não há qualquer limite ao direito de arrependimento prevista na legislação, sendo que se aplicando a principiologia do Código de Defesa do Consumidor, em especial, como já ressaltado, o princípio da vulnerabilidade do consumidor e o princípio da boa-fé objetiva é certo que deve ser garantido o referido direito quando da compra de bens virtuais realizadas no comércio eletrônico.
CONCLUSÕES
Com a evolução da humanidade novas tecnologias surgiram e se desenvolveram rapidamente, entre essas tecnologias tem-se a internet que é atualmente uma das mais importantes tecnologias da informação. A internet possibilitou a criação de novas formas de se relacionar e interagir e, entre os quais o comércio eletrônico.
O comércio eletrônico, que é a realização de transações comerciais no meio virtual, viabilizou uma nova forma dos fornecedores venderem seus produtos para os consumidores em geral, sendo que atualmente há um grande volume de transações nesse meio.
Seguindo regramento da Constituição Federal de 1988 para garantir a proteção do consumidor foi criado o Código de Defesa do Consumidor, que é norma com caráter principiológico que busca proteger o consumidor, pois é a parte mais fraca da relação de consumo.
Princípios que ganham destaque no âmbito da defesa do consumidor são o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor e a necessidade de observância da boa-fé objetiva na relação de consumo, tanto durante a realização do contrato quanto após a finalização dele.
Considerando-se a superioridade do fornecedor há a previsão do chamado direito de arrependimento do consumidor, previsto no artigo 49, direito esse que prevê a possibilidade de devolução do produto ou serviço adquirido à distância ou fora do estabelecimento comercial, no prazo de sete dias a contar do recebimento do bem. Igualmente, tal direito é justificado, pois possibilita ao consumidor uma melhor análise do bem adquirido, bem como o protege das compras por impulso e decorrentes de formas agressivas de marketing.
O direito de arrependimento é aplicável aos bens adquiridos no comércio eletrônico, haja vista tratar-se de uma nova forma de compra fora do estabelecimento comercial, inclusive tal entendimento foi incorporado na legislação pátria.
Em relação aos bens virtuais adquiridos no comércio eletrônico há divergências quanto à sua aplicação, pois se entenderia que poderia haver enriquecimento sem causa do consumidor.
No direito estrangeiro o direito de arrependimento não se aplica aos bens virtuais, conforme se observa da legislação da França, Espanha, Portugal e consoante Diretriz 2011/83/EU há recomendação que os países da União Europeia sigam o mesmo entendimento.
No Brasil não há dispositivo específico em legislação sobre a situação, porém considerando-se a norma principiológica do Código de Defesa do Consumidor, bem como se exaltando o princípio da vulnerabilidade de consumidor e a boa-fé objetiva é certo que o direito de arrependimento é aplicável quando da compra de bens virtuais no comércio eletrônico.
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[1] Mestrando em Direito pela Universidade de Marília – UNIMAR. Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco. Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. email: ronan.martins2020@gmail.com
[2] Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália, Doutor em Direito – Função Social do Direito pela FADISP – Faculdade Autônoma de Direito, Mestre em Direito – Teoria do Direito e do Estado pela UNIVEM – Centro Universitário Eurípides de Marília, Graduado em Direito pela Instituição Toledo de Ensino de Presidente Prudente, Especialização em Direito Processual Civil e Especialização em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino de Presidente Prudente. Professor permanente do Programa de Mestrado e Doutorado e da graduação na UNIMAR – Universidade de Marília-SP. Advogado da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP. E-mail: sandromgodoy@uol.com.br