O DEPOIMENTO ESPECIAL COMO PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA NO ÂMBITO DE CRIMES SEXUAIS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UMA ANÁLISE DA PRIMAZIA DA PROTEÇÃO INTEGRAL DA LEI 13.431/2017 NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O DEPOIMENTO ESPECIAL COMO PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA NO ÂMBITO DE CRIMES SEXUAIS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UMA ANÁLISE DA PRIMAZIA DA PROTEÇÃO INTEGRAL DA LEI 13.431/2017 NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

7 de dezembro de 2025 Off Por Cognitio Juris

SPECIAL TESTIMONY AS EARLY PRODUCTION OF EVIDENCE IN THE CONTEXT OF SEXUAL CRIMES AGAINST CHILDREN AND ADOLESCENTS: AN ANALYSIS OF THE PRIMACY OF COMPREHENSIVE PROTECTION OF LAW 13.431/2017 IN THE JURISPRUDENCE OF THE SUPERIOR COURT OF JUSTICE

Artigo submetido em 05 de dezembro de 2025
Artigo aprovado em 06 de dezembro de 2025
Artigo publicado em 07 de dezembro de 2025

Cognitio Juris
Volume 15 – Número 58 – 2025
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Silvya Erasmo Macêdo de Medeiros[1]
Juan de Assis Almeida[2]

RESUMO: A presente pesquisa aborda a sistemática da Escuta Protegida de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes sexuais, instituída pela Lei n.º 13.431/2017. A análise se dá sob a perspectiva da harmonização entre o princípio da proteção integral e as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. O problema de pesquisa reside na tensão processual gerada pela necessidade de preservar a integridade psíquica do infante — evitando-se a revitimização decorrente de sucessivas inquirições —  e a produção dessa prova na fase inquisitorial, sustentando a aplicabilidade do contraditório diferido (ou postergado) como solução hermenêutica, sem gerar cerceamento de defesa.  A justificativa do estudo pauta-se na urgência de compatibilizar a persecução penal com as particularidades da memória infantojuvenil, sujeita ao perecimento e à contaminação pelo decurso do tempo. A metodologia adotada consiste em pesquisa bibliográfica aplicada, com abordagem hipotético-dedutiva e qualitativa, fundamentada na análise da doutrina, legislação e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Os resultados demonstram que a aplicação do contraditório diferido e a mediação técnica da oitiva não violam as garantias fundamentais do acusado, mas constituem adaptações procedimentais, validadas pelas Cortes Superiores mediante a aplicação do princípio pas de nullité sans grief. Conclui-se que o atual arcabouço jurídico, ao retirar a criança do cenário de confronto direto com o acusado e mediar sua oitiva por técnicas especializadas, concretiza uma mudança de paradigma processual, onde a eficácia punitiva do Estado não se sobrepõe à integridade psíquica da vítima em desenvolvimento.

Palavras-Chaves: Lei 13.431/2017. Depoimento Especial. Prova Antecipada. Contraditório Diferido. Proteção Integral. Revitimização. Jurisprudência do STJ.

ABSTRACT: This research addresses the framework of Protected Listening for children and adolescents who are victims or witnesses of sexual crimes, established by Law No. 13.431/2017. The analysis is conducted from the perspective of harmonizing the principle of integral protection with the constitutional guarantees of the adversarial principle and ample defense. The research problem lies in the procedural tension generated by the need to preserve the child’s psychological integrity — avoiding revictimization resulting from successive inquiries — and the production of this evidence during the inquisitorial phase, sustaining the applicability of the deferred adversarial principle (contraditório diferido) as a hermeneutic solution, without causing curtailment of defense. The justification for the study is based on the urgency of making criminal prosecution compatible with the particularities of juvenile memory, which is subject to fading and contamination over time. The methodology adopted consists of applied bibliographic research, with a hypothetical-deductive and qualitative approach, grounded in the analysis of doctrine, legislation, and jurisprudence of the Superior Court of Justice. The results demonstrate that the application of the deferred adversarial principle and the technical mediation of the hearing do not violate the accused’s fundamental guarantees but constitute procedural adaptations, validated by the Superior Courts through the application of the pas de nullité sans grief principle. It is concluded that the current legal framework, by removing the child from the scenario of direct confrontation with the accused and mediating their hearing through specialized techniques, materializes a procedural paradigm shift, where the State’s punitive efficacy does not override the psychological integrity of the developing victim.

Keywords: Law 13.431/2017. Special Testimony. Early Production of Evidence. Deferred Adversarial Principle. Integral Protection. Revictimization. STJ Jurisprudence.

  1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda a dicotomia entre o dever punitivo do Estado e o dever de proteção integral à infância. Durante muito tempo o direito processual penal no Brasil tratou as crianças vítimas de crimes – especialmente sexuais –, como meros objetos de prova, submetendo-as a sucessivas inquirições em busca de uma “verdade” fática, muitas vezes, às custas de sua integridade psíquica.

É nesse cenário que, com o advento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), opera-se uma mudança paradigmática: a criança deixa de ser objeto processual para tornar-se sujeito de direitos, dotada de prioridade absoluta.

No entanto, apesar dessa evolução legislativa, os crimes contra a dignidade sexual infantojuvenil impõem um desafio probatório singular ao sistema de justiça. Muito embora, majoritariamente, sejam crimes materiais que deixam vestígios — passíveis de testificação via exame de corpo de delito —, sua prática ocorre, normalmente, de forma velada e distante dos olhos de testemunhas. Ademais, o lapso temporal frequente entre a ocorrência do abuso e a sua descoberta muitas vezes compromete a prova pericial física, fazendo com que a palavra do infante assuma valor probatório central e, por vezes, única.

Revela-se, portanto, o conflito principiológico que norteia esta pesquisa: de um lado, o direito fundamental do Estado à produção da prova ante a persecução penal, bem como a garantia da ampla defesa e contraditório do acusado; e de outro, o direito fundamental da criança à não-revitimização.

É preciso destacar que o sistema processual penal, ao exigir que a criança reprise às minúcias de um abuso sexual sucessivas vezes, em oitivas na delegacia, perícias ou perante juízo, perpetua, de certa forma, ainda mais o efeito dos danos primários, configurando o que a doutrina intitula violência institucional ou secundária.

É nesse contexto que a Lei 13.431/2017, comumente chamada Lei da Escuta Protegida, normatizou o instituto do Depoimento Especial, não apenas como uma técnica de inquirição, mas como um mecanismo de garantia de direitos.

O presente artigo propõe-se a analisar a compatibilização entre a primazia da proteção integral das crianças e dos adolescentes prevista no instituto da escuta protegida como meio de prova antecipada da Lei 13.431/2017 e o devido processo legal sob a ótica da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Busca-se, sobretudo, demonstrar como o STJ tem validado o procedimento para equilibrar a proteção à infância com as garantias do contraditório e da ampla defesa do acusado.

Desta maneira, a pesquisa se baseou numa revisão bibliográfica sobre temas jurídicos relevantes para construção textual, especialmente sobre a carga principiológica de proteção integral de crianças e adolescentes, o fenômeno dos crimes sexuais contra essa população especial, bem como promoveu-se uma pesquisa jurisprudencial a fim de compreender como o Superior Tribunal de Justiça, como órgão essencial na uniformização da interpretação da lei federal, tem compreendido a compatibilização de direitos fundamentais expostos na problemática da pesquisa.

Como guia narrativo, o trabalho foi seccionado em quatro partes de desenvolvimento: num primeiro momento se analisa as garantias constitucionais e legais das crianças e adolescentes, lançando luzes sobre a evolução principiológica da doutrina da situação irregular para a da proteção integral e da prioridade absoluta como norte hermenêutico para esse público em estágio especial de desenvolvimento humano; para em seguida descrever-se aspectos psicossociais da violência sexual contra a população infantojuvenil; além da reflexão sobre o Depoimento Especial como meio antecipado de prova da Lei 13431/2017 e, por fim, uma análise do entendimento jurisprudencial  do Superior Tribunal de Justiça sobre a ponderação do direito ao contraditório e ampla defesa e a primazia das crianças no depoimento especial, a fim de determinar como o STJ compatibiliza tais direitos sob forma do chamado contraditório diferido.

2. A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E O ECA COMO FUNDAMENTO DA ESCUTA PROTEGIDA

            A compreensão da Lei nº 13.431/2017 demanda, preliminarmente, o exame do substrato dogmático que a legitima. Este capítulo dedica-se a analisar a ruptura paradigmática operada pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que transmutaram a condição jurídica do infante de objeto de intervenção para sujeito de direitos. Para tanto, o estudo se divide na análise da evolução legislativa e constitucional desse paradigma, avançando para a compreensão da vulnerabilidade processual específica do público infantojuvenil e os impactos psicológicos da violência, elementos que, conjugados, fundamentam a necessidade imperativa de um rito de oitiva especializado.

2.1 O PARADIGMA DA PROTEÇÃO INTEGRAL: FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS

A compreensão do atual sistema de garantias infantojuvenil exige, previamente, uma análise da evolução legislativa que resultou na superação da Doutrina da Situação Irregular (Amin, 2019, p. 64-65). Até o advento da Constituição Federal de 1988, o tratamento jurídico dispensado à infância no Brasil era regido pelo Código de Menores (Lei n.º 6.697/1979), diploma que refletia uma concepção “menorista” e assistencialista. Sob essa ótica, a criança e o adolescente não eram vistos como sujeitos de direitos, mas como “menores” em situação de carência ou delinquência, sendo objetos de intervenção estatal apenas quando se encontravam em “situação irregular”.

Essa lógica foi radicalmente rompida com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, que inaugurou no ordenamento jurídico brasileiro a Doutrina da Proteção Integral. O art. 227 da CRFB/88 estabeleceu, em síntese, que:

“é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.

A Doutrina da Proteção Integral, portanto, funda-se na premissa de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos universais e de direitos especiais, decorrentes de sua condição de pessoa em desenvolvimento. A autora Andréa Rodrigues Amin, elucida que essa doutrina é formada por um “conjunto de enunciados lógicos, que exprimem um valor ético maior, organizada por meio de normas interdependentes que reconhecem criança e adolescente como sujeitos de direito” (Amin, 2019, p. 62), integrando-se perfeitamente ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

Já no plano infraconstitucional, essa diretriz consagrou-se com a edição da Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente. O ECA rompeu definitivamente com o binômio “carência-delinquência” do código anterior, universalizando a proteção. Como destaca a doutrina especializada, superou-se o direito tradicional que não percebia a criança como indivíduo autônomo, para adotar uma visão garantista onde a proteção não é favor, mas direito exigível.

Com isso, um dos pilares centrais dessa nova sistemática é o Princípio da Prioridade Absoluta. Previsto no caput do art. 227 da CRFB/88 e regulamentado pelo art. 4º do ECA, este princípio determina que crianças e adolescentes devem ter primazia em todas as esferas de interesse, inclusive — e especialmente — no âmbito das políticas públicas e da administração da justiça.

Tal prioridade não se limita a uma preferência abstrata, mas impõe um dever de agir do Estado. No contexto da violência sexual, isso significa que o sistema de justiça deve adaptar seus ritos e procedimentos para não violar a dignidade da vítima em desenvolvimento. Se antes a inquirição buscava a “verdade real” a qualquer custo, tratando a criança como objeto de prova, agora, sob a égide da proteção integral, a produção da prova deve subordinar-se à integridade física e psíquica do infante. É a proteção que legitima o processo, e não o contrário.

2.2 A VULNERABILIDADE PROCESSUAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL

Apesar da robustez teórica da Proteção Integral, a prática processual nos crimes sexuais revela uma lacuna: a vulnerabilidade processual da vítima frente à burocracia estatal. Todavia, essa proteção enfrenta desafios práticos quando se trata de crimes contra a dignidade sexual, decorrentes da vulnerabilidade processual das vítimas e do risco da violência secundária causada pelo próprio funcionamento do Estado. Essa vulnerabilidade processual decorre da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

Diferentemente dos adultos, que possuem ferramentas cognitivas e emocionais para lidar com os trâmites legais, a exposição da criança ao sistema de justiça tradicional pode configurar uma nova agressão. O cenário da violência institucional se materializa quando o Estado, que deveria proteger, submete a vítima a procedimentos desgastantes, ambientes hostis e inquirições despreparadas, operando sob uma lógica adultocêntrica que historicamente negligenciou as necessidades específicas do público infantojuvenil, (MINAYO, 2004).

Antes do advento da Lei 13.431/2017, a oitiva dessas vítimas ocorria nos moldes da inquirição comum, muitas vezes em contato direto com o agressor e sem o devido acolhimento, violando frontalmente os princípios da dignidade humana. A referida legislação surge, portanto, como resposta normativa a essa violência institucional, estabelecendo os métodos da escuta protegida (escuta especializada e depoimento especial) com o objetivo de adaptar o rito processual à condição do depoente, conciliando a necessidade de produção probatória com a preservação da integridade do infante.

Todavia, a implementação efetiva desses mecanismos ainda enfrenta obstáculos. Relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que, a despeito dos avanços normativos, a prática forense por vezes ainda reproduz dinâmicas revitimizantes, seja pela falta de estrutura física adequada — como a ausência de salas de depoimento especial —, seja pela insuficiência de equipes técnicas instruídas. A superação da violência institucional exige, portanto, não apenas a existência de leis protetivas, mas uma mudança estrutural no sistema de justiça, garantindo que a criança seja ouvida como sujeito de direitos em situação de especial vulnerabilidade.

2.3 ASPECTOS PSICOLÓGICOS DA VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTOJUVENIL: O TRAUMA E A NECESSIDADE DA ABORDAGEM ESPECIALIZADA

É imprescindível a compreensão dos aspectos psíquicos que englobam a violência contra crianças e adolescentes, tendo em vista a necessidade de uma aplicação adequada e empática do sistema protetivo previsto no ordenamento jurídico nacional. Diferente de outras maneiras de agressão, o abuso sexual na criança atinge a integridade mais potencialmente, já que, de forma majoritária, ocorre em um contexto de dependência emocional e quebra de confiança da vítima para com o agressor.

Mais que isso, as crianças com traumas decorrentes de estupro podem – e quase sempre apresentam –, de forma generalizada, rompimento da confiança de qualquer laço afetivo no seu ambiente social e de convivência, enxergando quaisquer sujeitos como potenciais agressores.

Os dados epidemiológicos nacionais desmistificam a ideia de que o perigo reside predominantemente fora de casa, revelando que a violência sexual envolvendo infantes é um fenômeno enraizado no ambiente doméstico. Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, no período de 2015 a 2021, a residência foi o local de ocorrência em 70,9% dos casos envolvendo crianças de 0 a 9 anos e em 63,5% dos casos com adolescentes (BRASIL, 2024, p. 5, 7).

A proximidade do agressor é igualmente alarmante, visto que familiares representam o principal vínculo nos casos contra crianças (38,9%) e uma parcela significativa contra adolescentes (22,4%) (BRASIL, 2024, p. 5, 7). Essa configuração, onde o agressor habita o espaço privado da vítima e possui sua confiança, gera vulnerabilidades extremas e dificulta a intervenção externa, transformando o lar em um local de risco silencioso e contínuo.

Conforme destacam Felizardo, Zürcher e Melo (2006, p. 72), ao analisarem a obra de Wirtz (1990), o abuso sexual intrafamiliar configura um “ataque total contra o ser da pessoa”, ferindo gravemente a personalidade e a identidade sexual da criança. A autora utiliza a expressão Seelenmord para ilustrar que a vítima, ao invés de receber o cuidado e o respeito devidos, é violentada justamente por aquele de quem depende emocionalmente, caracterizando uma quebra de confiança devastadora.

Do ponto de vista clínico, os impactos são diversos e graves. Conforme observam Sanchez e Minayo (2006, p. 34), as vítimas podem apresentar “dificuldade de aprendizagem, distúrbios de comportamento como dispersão, fobias e terror noturno, comportamentos autodestrutivos, isolamento social, precoces atitudes erotizadas”. Tais sintomas evidenciam que o dano transcende a esfera física, alojando-se na subjetividade da vítima e exigindo do sistema de justiça uma abordagem que não agrave esse quadro.

No aspecto jurídico, a tensão entre a “verdade material” (a prova do fato) e a “verdade psicológica” (o trauma) é um ponto sensível na aplicação da Lei 13.431/17, conforme destacado em estudos da área. Embora a normativa do Conselho Nacional de Justiça (Resolução 299/2019) busque regulamentar a proteção de crianças e adolescentes, dados recentes do Relatório do CNJ (2024) demonstram que essa harmonização ainda enfrenta desafios práticos significativos, como a insuficiência de equipes multidisciplinares e a falta de capacitação continuada.

            Em levantamento realizado com magistrados estaduais, 71,7% indicaram que costumam determinar a realização de perícia ou estudo psicossocial antes de decidir sobre afastamentos ou inversão de guarda em casos de abuso sexual. Isso demonstra que a magistratura reconhece a insuficiência da prova testemunhal pura e a necessidade de um suporte técnico-psicológico robusto para compreender a dinâmica do abuso sem expor a criança desnecessariamente.

            Ainda assim, a revitimização, ou violência secundária — definida pelo Decreto n.º 9.603/2018 como o discurso ou prática institucional que submete crianças a procedimentos desnecessários —, permanece um risco latente, especialmente em crimes sexuais onde a repetição do relato é traumática. Esse risco é acentuado, também, pela percepção das equipes técnicas dos Tribunais.

No relatório do CNJ de 2024, 56,5% dos assistentes sociais e 59,8% dos psicólogos entendem que a aplicação da técnica de depoimento especial nunca ou raramente é suficiente para detectar se uma criança ou adolescente sofreu alienação parental (BRASIL, 2024, p. 67).

Tais dados demonstram que a técnica, muitas vezes vista como solução probatória única, possui limitações severas para captar fenômenos complexos e a realidade psíquica da criança, exigindo cautela em sua aplicação para não gerar diagnósticos equivocados ou revitimização.

            Dessarte, a intervenção estatal não deve agravar o quadro de violência preexistente. A violência institucional configura-se quando o próprio agente público, por ação ou omissão, prejudica o atendimento à vítima. O imperativo é que o sistema de justiça incorpore a compreensão de que o desenvolvimento infantojuvenil ocorre sob circunstâncias que podem ser danosas quando permeadas pela violência sexual, necessitando de uma abordagem verdadeiramente qualificada.

3. A LEI 13.431/17 E A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA ESCUTA PROTEGIDA

Diante do cenário de vulnerabilidade infantojuvenil e da necessidade de superar a violência institucional, a Lei n.º 13.431/2017 surge como o marco normativo que instrumentaliza a proteção integral no âmbito da persecução penal. Este diploma legal não se limitou a criar recomendações éticas, mas instituiu um verdadeiro sistema de garantias de direitos, positivando mecanismos processuais que alteram a lógica da inquirição tradicional.

A norma materializa os mandamentos constitucionais ao impor ao Estado o dever de adaptar sua estrutura investigativa e processual, operacionalizando a escuta protegida através de metodologias específicas desenhadas para conciliar a elucidação dos fatos com a preservação da integridade psíquica do sujeito violentado.

3.1 DEFINIÇÃO E DIFERENÇAS ENTRE A ESCUTA ESPECIALIZADA E O DEPOIMENTO ESPECIAL

Conforme a Lei 13.431 de 2017 instituiu o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, a oitiva deverá ocorrer por intermédio de dois institutos distintos: a Escuta Especializada e o Depoimento Especial. A instauração bifurcada dos procedimentos visa, primordialmente, a redução dos danos provocados pela violência. Embora ambos compartilhem o objetivo comum de proteger a integridade psíquica da vítima e evitar a revitimização, possuem naturezas jurídicas, finalidades e procedimentos distintos.

            A Escuta Especializada, portanto, trata-se de procedimento realizado perante órgãos da rede de proteção e possui caráter eminentemente assistencial. É o que está expresso no art. 7º da referida lei:

art. 7º Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade.


            Nesse sentido, qualquer membro dos órgãos de segurança pública, das escolas, da assistência social ou dos conselhos tutelares poderá realizar o procedimento descrito, sempre com o propósito exclusivamente protetivo.

Vê-se que o mecanismo adotado assegura o acompanhamento do infante visando à superação das consequências da violência sofrida ou testemunhada. É imperioso destacar que a Escuta Especializada não compõe, necessariamente, natureza de prova testemunhal para o processo penal. Deste modo, pode-se dizer que a sua função não é a elucidação da dinâmica fática do crime: quem cometeu, como o cometeu, quando o cometeu, mas sim, a análise de risco e a extensão do cuidado a ser prestado, garantindo-se o efetivo afastamento do agressor.

            Em contraponto, o Depoimento Especial se apresenta como um mecanismo de produção de prova, onde o infante ou adolescente realiza a oitiva perante a autoridade policial ou judiciária. Diferentemente da escuta especializada, o depoimento especial tem natureza probatória, destinando-se à colheita de elementos de informação na fase investigativa ou de prova na fase processual, conforme definição legal taxativa do art. 8º:


art. 8° Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária. (BRASIL, 2017, não paginado).

A diferenciação entre a finalidade assistencial de um e a finalidade probatória do outro é fundamental para compreender a sistemática estabelecida pela lei. Sobre essa distinção, Bueno (2017, p. 15) elucida que:

“pela redação atribuída pela Lei 13.431/2017, a oitiva dar-se-á obrigatoriamente de duas maneiras: através da escuta especializada, que deve ser realizada perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade; e através do depoimento especial, onde a oitiva da criança ou adolescente vítima ou testemunha far-se-á perante autoridade policial ou judiciária.”

Apesar das naturezas distintas, ambos os procedimentos, conforme versa o art. 10 da Lei 13.431/17, compartilham requisitos procedimentais comuns: devem ser realizados em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência. Além disso, deve-se resguardar a vítima de qualquer contato, ainda que visual, com o acusado.

Portanto, pode-se afirmar que a principal diferença teórica dos institutos reside no fato de que o Depoimento Especial é regido pelo princípio da não repetibilidade. Isso porque a  intenção da norma é que haja, preferencialmente, uma única oitiva com força probatória, evitando-se, assim, o processo de revitimização e o eventual surgimento de falsas memórias no decorrer de sucessivas inquirições.

E é justamente por seu caráter probatório que este instituto carece do rito cautelar específico de antecipação, conforme se verá adiante.

3.2. O DEPOIMENTO ESPECIAL COMO MECANISMO DE PROVA ANTECIPADA

            Conforme o deslinde do tópico anterior, a premissa da não repetibilidade do depoimento infantojuvenil impõe ao sistema geral de justiça uma reengenharia do momento processual adequado à colheita dessa prova. Tendo em vista o objetivo da oitiva única, é inviável que se aguarde a fase instrutória no processo, uma vez que, majoritariamente, só ocorre alguns anos após o crime.

            O Depoimento Especial, portanto, se consolida neste momento através do rito cautelar de antecipação de prova. Sabiamente, o art. 11 da Lei 13.431/17 estabelece:

art. 11. O depoimento especial reger-se-á por protocolos e, sempre que possível, será realizado uma única vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado.

§ 1º O depoimento especial seguirá o rito cautelar de antecipação de prova:

I – quando a criança ou o adolescente tiver menos de 7 (sete) anos;

II – em caso de violência sexual.

§ 2º Não será admitida a tomada de novo depoimento especial, salvo quando justificada a sua imprescindibilidade pela autoridade competente e houver a concordância da vítima ou da testemunha, ou de seu representante legal.

A previsão legal demonstra, com isso, a intenção do legislador em conceder à oitiva da criança ou adolescente o tratamento de prova urgente, assegurando sua preservação antes mesmo da instauração da ação penal.

            Nesse contexto, são dois os pilares para a fundamentação da antecipação: primeiro, a proteção da integridade psicológica do infante e em segundo, a garantia da qualidade do elemento probatório. A produção antecipada evita que a criança ou adolescente permaneça com a pendência do processo, reduzindo os danos decorrentes da rememoração traumática tardia.

Quanto à garantia de qualidade da prova, a doutrina majoritária cuidou em trazer a distinção entre prova cautelar e prova antecipada: conforme leciona Lopes Junior (2020), a prova antecipada é aquela produzida antes do momento processual oportuno em razão da urgência e da relevância, visando evitar o perecimento da fonte de prova. No contexto da violência contra vulneráveis, o “objeto” que corre risco de perecimento não é apenas um vestígio físico, mas a memória da vítima.

Di Gesu (2014 apud ROCHA, 2019) ressalta que existe uma preocupação em salvaguardar a memória da criança ou adolescente a ser inquirido, tanto dos efeitos maléficos do transcurso do tempo quanto das sucessivas entrevistas. Essa observação evidencia que a passagem temporal constitui elemento prejudicial à fidedignidade do testemunho infantil, uma vez que a memória torna-se naturalmente mais suscetível a distorções e esquecimentos à medida que se distancia do evento original. Assim, a antecipação da prova justifica-se pela necessidade de “congelar” o testemunho o mais próximo possível do evento, garantindo sua integridade e confiabilidade.

No mais, há casos em que a realização do Depoimento Especial em sede de produção antecipada é prioritária, qual seja, quando a criança possuir menos de sete anos ou em casos de violência sexual. Nessas hipóteses, a vulnerabilidade das vítimas é maior e, portanto, carece de celeridade procedimental.

Para operacionalizar essa medida, a autoridade policial, ao constatar situação de risco envolvendo criança ou adolescente vítima de violência, pode representar ao Ministério Público para que este proponha a ação cautelar de antecipação de prova, conforme disposto no art. 21, inciso VI, da referida lei.

É imperioso ressaltar, contudo, que a validade dessa prova antecipada condiciona-se à estrita observância do art. 11 da Lei 13.431/17, que exige a garantia da ampla defesa do investigado e a citação para acompanhamento do ato, sob pena de nulidade.

Ademais, a legislação estabelece que não será admitida nova tomada de Depoimento Especial, salvo quando comprovada sua imprescindibilidade e com a concordância da vítima ou de seu representante legal. Isso impõe o caráter definitivo dessa prova. Já o depoimento, que deve ser registrado em áudio e vídeo, passa a integrar os autos e poderá ser utilizado em todas as fases processuais subsequentes, dispensando nova oitiva na audiência de instrução e julgamento.

3.3 A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO: ENTRE A PERSECUÇÃO PENAL E A TUTELA DA VULNERABILIDADE

Quando se trata de antecipar a produção de provas envolvendo crianças e adolescentes, o Ministério Público se vê diante de um desafio que transcende sua função tradicional de acusador. Embora seja o titular natural da ação penal, o Parquet precisa, nesse cenário, desempenhar simultaneamente outro papel igualmente importante: o de guardião dos direitos daqueles que não podem se defender sozinhos.

A Lei 13.431/2017 reconhece essa dupla responsabilidade ao atribuir ao órgão ministerial a tarefa de assegurar que o próprio sistema de justiça não se transforme em mais um agente de violência. Isso significa que, ao tomar conhecimento de uma situação de risco ou identificar a vulnerabilidade da vítima, cabe ao Ministério Público mobilizar-se imediatamente para requerer a oitiva antecipada. Esse movimento não é meramente burocrático — trata-se de uma corrida contra o tempo. Quanto mais próximo do evento traumático for colhido o relato, maiores as chances de que a memória esteja íntegra, sem os efeitos deletérios do esquecimento natural ou das interferências externas que inevitavelmente surgem com o passar dos dias.

Há, porém, outra dimensão essencial dessa atuação ministerial. Uma vez realizado o Depoimento Especial, o Ministério Público assume a função de verdadeiro protetor contra tentativas de submeter a criança a novas inquirições. Como a própria legislação estabelece uma regra bastante clara, não se repete o depoimento, exceto em situações excepcionais devidamente justificadas e com o consentimento da vítima ou de quem a representa, recai sobre os promotores e procuradores a responsabilidade de resistir a eventuais pedidos da defesa que visem à repetição desnecessária da oitiva. Não se trata de cercear direitos, mas de impedir que a busca legítima pela verdade se converta em instrumento de tortura institucional.

É preciso compreender, ainda, que a solidez jurídica dessa prova antecipada, tão valorizada pelo Superior Tribunal de Justiça nos precedentes a serem analisados, depende diretamente do cuidado com que o Ministério Público fiscaliza o procedimento. Especialmente no que diz respeito à presença da defesa técnica durante o ato, é fundamental que o Parquet zele para que o contraditório, ainda que exercido de forma adaptada, seja rigorosamente observado. Somente assim a oitiva antecipada ganha legitimidade suficiente para dispensar nova inquirição na fase judicial, poupando a criança do reencontro doloroso com seu trauma.

4. O CONTRADITÓRIO DIFERIDO: HARMONIZAÇÃO ENTRE PROTEÇÃO INTEGRAL E GARANTIAS PROCESSUAIS

A presente seção dedica-se, primordialmente, a demonstrar que a proteção integral e as garantias do acusado não são excludentes, mas harmonizadas através da técnica do contraditório diferido. Para fundamentar essa premissa, a análise estrutura-se em dois momentos lógicos: primeiramente, revisitam-se os contornos dogmáticos clássicos do contraditório e da ampla defesa, essenciais à validade do processo; na sequência, examina-se como esses institutos são adaptados — e não suprimidos — pela Lei 13.431/2017, consolidando a constitucionalidade da prova antecipada.

4.1 O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

            Antes de adentrar-se na questão da constitucionalidade ou da eficácia do instituto do Depoimento Especial, é preciso abordar as garantias fundamentais que alicerçam o direito processual penal democrático. Nesse cenário, pontuam-se os princípios do contraditório e da ampla defesa, insculpidos no art. 5°, inciso LV, da CRFB/88.

            É imprescindível que o devido processo legal seja norteado pelos princípios supracitados, uma vez que estes são propulsores da legitimidade da jurisdição e pilares para a construção de um provimento justo. Por isso, a ampla defesa e o contraditório não podem ser considerados mera formalidade. No contexto da prova testemunhal, tais garantias assumem relevo ainda maior, pois é através delas que se assegura ao acusado a oportunidade de confrontar as imputações que lhe foram direcionadas.

            O princípio do contraditório, na moderna dogmática processual, supera a concepção clássica e reducionista de simples ciência bilateral dos atos processuais. Conforme leciona Lopes Junior (2020), o contraditório deve ser compreendido em sua dimensão substancial, atuando como um efetivo “poder de influência” sobre a decisão judicial. Não basta que a defesa seja comunicada; a esta deve ser ofertada a oportunidade de participar da construção da prova, de impugná-la e de apresentar contraprovas. É no direito de inquirir e reinquirir testemunhas que o contraditório se materializa na fase instrutória.

Já a ampla defesa deve ser exercida tanto por profissional habilitado (defesa técnica) quanto por meio da autodefesa, oportunizando ao acusado apresentar sua versão e valer-se do direito de presença. Pacelli (2020) destaca que a ampla defesa assegura ao réu a utilização de todos os meios de prova admitidos em direito para resistir à pretensão punitiva estatal.

            Contudo, tais princípios não são absolutos e devem ser compatibilizados com outros direitos de igual envergadura constitucional, como a dignidade da pessoa humana e a proteção integral. O ponto central deste desafio hermenêutico é: como assegurar ao acusado o direito de confrontar a testemunha sem que esse confronto se transforme em um instrumento de revitimização? A solução reside na moldagem do procedimento: o contraditório deve ser preservado, mas sua forma de exercício é repaginada.

4.2 A ESCUTA PROTEGIDA E A MITIGAÇÃO DO CONTRADITÓRIO: ANÁLISE DO CONTRADITÓRIO POSTERGADO

            Como já visto, a entrada em vigor da Lei 13.431/17 trouxe mecanismos que colidem com estruturas tradicionalmente estabelecidas. É crucial diferenciar que, para o Depoimento Especial (prova antecipada), a legislação impõe uma rigorosa observância às garantias do contraditório no momento do ato.

Ao contrário das provas meramente cautelares — onde o contraditório é postergado —, a prova antecipada exige a estrutura formal do contraditório no instante de sua produção. O próprio art. 11 da Lei 13.431/17 assegura que a realização da oitiva deve garantir a ampla defesa do investigado. Isso demonstra que, mesmo no âmbito da investigação preliminar, a defesa técnica deve participar do ato, assegurando a possibilidade de formulação de perguntas, ainda que por intermédio de profissional especializado.

O rito apresenta, portanto, uma natureza híbrida: visa simultaneamente à proteção da vítima e à preservação da prova, sem descuidar das garantias processuais do acusado, harmonizando a necessidade estatal de punir com o dever constitucional de proteção.

Entretanto, autores como Guimarães e Silva (2023) identificam uma atenuação desse exercício, configurando um contraditório mitigado ou adaptado. A defesa não formula perguntas diretamente à vítima, mas submete seus questionamentos ao facilitador, que possui autonomia para reformulá-los ou desconsiderá-los caso os julgue revitimizantes. Conforme observam os referidos autores, tal intermediação visa impedir que o sistema de justiça se converta em agente de violência, restringindo a forma do contraditório para viabilizar a proteção integral.

Situação diversa ocorre na Escuta Especializada. Sendo um procedimento assistencial conduzido pela rede de proteção ou órgãos policiais, predomina claramente o contraditório diferido. Os relatos colhidos nesses contextos ingressam no processo criminal como documentos ou laudos.

Nessas hipóteses, a defesa não acompanha a coleta do relato. O contraditório será exercido posteriormente (diferido), após o acesso aos autos, quando será possível questionar a adequação metodológica ou eventuais vícios. Nucci (2018) reforça que depoimentos colhidos em ambientes extra forenses exigem posterior validação judicial mediante contraditório efetivo. Assim, admite-se temporariamente a ausência da defesa na Escuta pela urgência protetiva, mas assegura-se o amplo direito de impugnação técnica em momento posterior.

5. ENTENDIMENTO SOBRE A VALIDADE DA ESCUTA PROTEGIDA REALIZADA EM FASE INQUISITORIAL: UMA ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO (STJ)

            O Superior Tribunal de Justiça vem construindo, de forma consistente, jurisprudência favorável à validade da escuta protegida quando realizada ainda na fase investigatória. Tal posicionamento da Corte representa um avanço significativo na aplicação dos mecanismos protetivos trazidos pela Lei 13.431/17.

            Diversos julgamentos recentes confirmam que a colheita do depoimento especial durante o inquérito policial ou em procedimentos investigatórios do Ministério Público não compromete as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

            Essa compreensão parte de uma premissa central: a fase preliminar da persecução penal possui caráter inquisitorial. Seu propósito limita-se à formação da convicção ministerial sobre a existência de elementos suficientes para a propositura da ação penal, não havendo ainda juízo definitivo sobre os fatos. Dessa forma, a orientação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) evidencia aspecto fundamental da teoria processual penal — o contraditório diferido. Não se exige, nessa etapa, que a defesa acompanhe simultaneamente a produção de cada elemento informativo.

O contraditório será assegurado de forma plena durante a fase judicial, quando a defesa poderá exercer amplamente seu direito de questionar e contestar as provas anteriormente produzidas.

5.2 AgRg no RHC 180.525/RN

            A Quinta Turma do STJ firmou esse entendimento ao julgar o Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus n.º 180.252/RN. O colegiado afirmou que a realização do depoimento especial na fase investigatória não compromete a ampla defesa, uma vez que o contraditório fica diferido para o momento processual. Destacou-se, ainda, que a lei desaconselha a repetição da oitiva, admitindo-a apenas quando demonstrada sua imprescindibilidade, justamente para evitar que a vítima seja submetida novamente ao relato traumático:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA. DEPOIMENTO ESPECIAL DA VÍTIMA . POSSIBILIDADE. OBSERVÂNCIA À LEI N. 13.431/2017 . AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. PRINCÍPIO PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF. ENTENDIMENTO DOMINANTE NO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO . 1. O depoimento especial de vítimas vulneráveis, especialmente em crimes sexuais, pode ser colhido antecipadamente, nos termos da Lei n. 13.431/2017, visando evitar a revitimização e garantir a preservação da prova . 2. A mudança de entendimento do Ministério Público quanto à necessidade da produção antecipada da prova não impede o juízo de deliberar de forma fundamentada, dentro de sua competência jurisdicional. A realização do ato em juízo não viola o princípio acusatório, pois não representa atuação inquisitiva do magistrado, mas sim medida prevista em lei. 3 . Não há nulidade sem demonstração de prejuízo concreto (pas de nullité sans grief). No caso, a defesa não demonstrou de que forma o procedimento adotado teria comprometido o contraditório e a ampla defesa, especialmente considerando que o ato foi realizado na presença do advogado constituído. 4. A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a produção antecipada de provas não configura nulidade quando observados os princípios do devido processo legal e da ampla defesa . 5. Agravo regimental não provido. (STJ – AgRg no RHC: 180252 RN 2023/0141941-6, Relator.: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Julgamento: 11/02/2025, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJEN 19/02/2025)

5.3 AgRg no AREsp 1.946.961/PR

Igualmente relevante foi o precedente estabelecido pela Sexta Turma no julgamento do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 1.946.961/PR. O tribunal determinou que o acusado não pode invocar a nulidade do depoimento especial alegando que a vítima deveria ser ouvida uma única vez ou que teria havido violação ao princípio da não revitimização. Conforme o acórdão, essa alegação esbarra no art. 565 do CPP/41, dispositivo que proíbe qualquer das partes de arguir nulidade relativa a formalidade que interesse exclusivamente à parte contrária:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO. DECISÃO DA PRESIDÊNCIA. RECONSIDERAÇÃO . ESTUPRO DE VULNERÁVEL. DEPOIMENTO ESPECIAL. COLHEITA ANTECIPADA DE PROVA. VALIDADE . CONTRADITÓRIO DIFERIDO. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. PRINCÍPIO DO PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF. 1 . Efetivamente impugnados os fundamentos da decisão de inadmissão do recurso especial, o agravo merece ser conhecido, em ordem a que se evolua para o mérito. 2. O depoimento especial da vítima, previsto na Lei 13.431/2017 (arts . 7º, 8º e 9º), pode ser tomado de forma antecipada, antes de deflagrada a persecução penal (art. 11 e § 1º), considerada a condição de adolescente possível vítima de abuso sexual, justificada a urgência da medida para resguardar a fidedignidade das declarações e permitir a superação de eventuais traumas com a maior brevidade. 3. Na hipótese, consoante ressaltado pelo acórdão, “a adoção da perícia psicológica como modalidade de oitiva da ofendida foi adotada por expressa recomendação do setor profissional competente, visando a sua não revitimização (e, portanto, a não repetição do ato), tudo com o objetivo de melhor atender o interesse da adolescente” . 4. A jurisprudência desta Corte, na linha da lei processual (art. 563 – CPP), adota o princípio do pas de nullité sans grief, segundo o qual incumbe à parte demonstrar o efetivo prejuízo para justificar a anulação de atos processuais, o que não ocorre na presente hipótese, porquanto o recorrente não logrou demonstrar os aspectos em que a colheita da prova teria prejudicado a defesa. 5 . “A renovação da oitiva da suposta vítima, tal como pretendida pelos impetrantes, é expressamente dissuadida pela Lei 13.431/2017, a qual estabelece, em seu artigo 11, § 2º, que não será admitida a tomada de novo depoimento especial, salvo quando justificada a sua imprescindibilidade pela autoridade competente e houver a concordância da vítima ou da testemunha, ou de seu representante legal” (HC 640.508/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 06/04/2021, DJe 13/04/2021) . 6. Agravo regimental provido para conhecer do agravo, mas para negar provimento ao recurso especial.

(STJ – AgRg no AREsp: 1946961 PR 2021/0248675-0, Relator.: Ministro OLINDO MENEZES DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1 REGIÃO, Data de Julgamento: 14/12/2021, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/12/2021)

5.4 AgRg no REsp 2.108.770/PR

Na mesma direção, a Quinta Turma, ao apreciar o Agravo Regimental no Recurso Especial 2.108.770/PR, reiterou que não existe, na fase preliminar, direito absoluto do investigado de participar da oitiva da vítima.

Conforme destacou o colegiado, ainda que se trate de nulidade absoluta, sua declaração depende da comprovação de prejuízo efetivo, em observância ao princípio pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo). A jurisprudência ressalta que decretar a invalidade do ato significaria expor novamente a criança ou adolescente ao relato dos fatos traumáticos, contrariando frontalmente a finalidade protetiva da legislação:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. DEPOIMENTO ESPECIAL DE VÍTIMA. REVITIMIZAÇÃO. AGRAVO DESPROVIDO. […] 3. A jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça privilegia a integridade da vítima e a não revitimização, entendendo que a anulação do depoimento especial implicaria nova oitiva, o que deve ser evitado.

Constata-se, assim, que o Superior Tribunal de Justiça tem interpretado a Lei 13.431/2017 à luz de sua finalidade. O contraditório diferido não configura eliminação de garantias processuais, mas sim adaptação necessária do procedimento. Essa compatibilização concretiza os princípios constitucionais da dignidade humana e da proteção integral, demonstrando que a persecução penal não pode se realizar às custas da revitimização daqueles que o Estado tem o dever prioritário de proteger.        

6. CONCLUSÃO

A presente pesquisa propôs-se a examinar como o ordenamento jurídico brasileiro lida com a tensão entre as garantias processuais do acusado e a necessidade de proteção integral às crianças e adolescentes vítimas de violência, especialmente após as inovações da Lei n.º 13.431/2017. A análise confirmou que o sistema de justiça criminal superou o paradigma revitimizante ao validar, via STJ, a Escuta Protegida como instrumento de equilíbrio entre punição e proteção.

Demonstrou-se que a busca pela verdade no processo penal encontra limites éticos e técnicos. A prática tradicional de repetição da prova oral revelou-se inadequada, tanto por comprometer a qualidade probatória, dada a vulnerabilidade da memória infantojuvenil ao tempo e a sugestões, quanto por submeter a vítima à revivência do trauma. A compatibilização entre a ampla defesa e a proteção integral viabilizou-se, portanto, pela produção antecipada de provas e pelo contraditório diferido.

Verificou-se que a mediação técnica e o afastamento do acusado não configuram cerceamento de defesa, mas uma adaptação procedimental necessária. O contraditório é preservado, ainda que postergado, assegurando à defesa a possibilidade de impugnação sem expor a criança ao confronto direto.

O exame da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça confirmou a validade da escuta protegida realizada na fase investigatória, em respeito ao princípio da não revitimização. A Corte Superior tem aplicado consistentemente o princípio pas de nullité sans grief, rejeitando nulidades sem a demonstração de prejuízo concreto. Assim, as adaptações no contraditório imediato cumprem a dupla finalidade de preservar a integridade da vítima e garantir a confiabilidade do relato.

Constatou-se, ainda, que a Lei n.º 13.431/2017 sinaliza uma efetiva mudança de paradigma, transitando de um modelo adultocêntrico para um que reconhece a criança como sujeito de direitos em condição peculiar de desenvolvimento. Embora persistam desafios infraestruturais e de capacitação, apontados nos relatórios do Conselho Nacional de Justiça, o arcabouço jurídico atual oferece os instrumentos necessários para que a responsabilização penal não ocorra à custa da saúde psíquica da vítima.

Conclui-se, portanto, que a proteção integral e as garantias processuais não são valores antagônicos, mas direitos coexistentes mediante adequada ponderação. O Depoimento Especial, observando o contraditório diferido, materializa essa harmonização, demonstrando ser possível investigar e punir crimes graves sem converter o sistema de justiça em agente de nova violência contra aqueles que já foram vitimados.

REFERÊNCIAS

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[1] Bacharelanda em Direito. Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Norte (UFRN). Caicó – Rio Grande do Norte, Brasil. E-mail: silvya.erasmo.707@ufrn.edu.br

[2] Doutor em Direito e Mestre em Direitos Humanos. Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal – Rio Grande do Norte, Brasil. E-mail: juan.almeida@ufrn.br