O DIREITO AO TRABALHO DIGNO E O DIREITO À DESCONEXÃO NO CONTEXTO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS
1 de março de 2022THE RIGHT TO DECENT WORK AND THE RIGHT TO DISCONNECTION IN THE CONTEXT OF DIGITAL PLATFORMS
Cognitio Juris Ano XII – Número 39 – Edição Especial – Março de 2022 ISSN 2236-3009 |
RESUMO: O presente trabalho tem como finalidade estudar a influência das novas tecnologias de informação e comunicação no direito ao lazer à desconexão do trabalho, a partir da teoria dos direitos fundamentais e do direito ao trabalho digno. O trabalho em questão tem, portanto, como objetivo responder a seguinte questão: diante das novas tecnologias de informação e comunicação, que podem impedir o trabalhador de se desconectar, a existência de um direito fundamental de desconexão, pode servir como instrumento de garantia do direito fundamental ao lazer do trabalhador? Dessa forma, pretende-se, primeiramente, realizar um estudo acerca da teoria dos direitos fundamentais, especialmente os direitos específicos e inespecíficos dos trabalhadores, bem como analisar a aplicabilidade dos direitos de personalidade nas relações laborais. Num segundo momento, verificar o impacto das tecnologias, nas relações de trabalho, bem como verificar a repercussão da hiperconexão nos direitos sociais fundamentais dos trabalhadores, em especial, nos direitos à privacidade, à liberdade, ao lazer, ao descanso e à saúde. Busca-se, ao final, defender a existência de um direito social fundamental implícito à desconexão, nos períodos destinados ao descanso e ao lazer, o qual tem como finalidade servir de instrumento de garantia e proteção. Utiliza-se, para tanto, o método abordagem dedutivo e técnica de pesquisa documental e bibliográfica.
Palavras-chave: direitos sociais. direitos fundamentais. trabalho digno. direito à desconexão.
ABSTRACT: The present work aims to study the influence of new information and communication technologies on the right to leisure to disconnect from work, based on the theory of fundamental rights and the right to decent work. The work in question therefore aims to answer the following question: given the new information and communication technologies, which can prevent workers from disconnecting, the existence of a fundamental right to disconnect can serve as an instrument to guarantee the right fundamental to the worker’s leisure? Thus, it is intended, first, to carry out a study on the theory of fundamental rights, especially the specific and unspecific rights of workers, as well as to analyze the applicability of personality rights in labor relations. In a second moment, to verify the impact of technologies on work relations, as well as to verify the repercussion of the hyperconnection on the fundamental social rights of workers, in particular, on the rights to privacy, freedom, leisure, rest and health. In the end, it seeks to defend the existence of an implicit fundamental social right to disconnection, in periods destined for rest and leisure, which aims to serve as an instrument of guarantee and protection. For this purpose, the deductive approach method and documental and bibliographic research technique are used.
Keywords: social rights. fundamental rights. decent Work. right to disconnect.
1 INTRODUÇÃO
O direito ao lazer como direito social fundamental tende a ser enxergado aversão, muitas vezes sendo remetido como oposto ao direito do trabalho. O próprio desenvolvimento histórico do direito do trabalho contribuiu para este olhar cultural distorcido.
A viabilidade do exercício do direito ao lazer e sua compatibilidade com o direito social ao trabalho tem sua discussão centrada na dignidade da pessoa humana, que ambos os direitos estão atrelados.
Abordaremos aqui o direito de ao lazer à desconexão do trabalhador como integrante do repertório dos direitos sociais fundamentais que são base ao desenvolvimento pleno da personalidade do cidadão. A presente reflexão considera o direito ao lazer e à desconexão, passando aos direitos da personalidade a vida privada e integridade mental do trabalhador.
Surge, portanto, a necessidade do direito à desconexão do homem com o seu trabalho, uma efetiva ruptura entre o tempo de trabalho e o de lazer, como prevê e garante o art. 6° da Constituição Federal, o qual coloca o trabalho e o lazer no mesmo patamar, como direitos fundamentais, mostrando que ambos têm a mesma importância, por isso merecem a mesma proteção jurídica.
No entanto, torna-se cada vez mais difícil assegurar o direito ao lazer do trabalhador. Pois, tanto o empregado, como o empregador, ficam à mercê dos seus equipamentos eletrônicos, já que permanecem conectados muitas horas por dia.
Em razão disso, constata-se relevante verificar como está previsto e garantido o direito à desconexão do trabalhado por parte do empregado diante dos princípios constitucionais e trabalhistas. Nesse sentido, questiona-se: diante das novas tecnologias de informação e comunicação, que podem impedir o trabalhador de se desconectar, há existência de um direito de desconexão e que pode servir como instrumento de garantia do direito fundamental ao lazer do trabalhador?
A apreciação do tema proposto dar-se-á a partir do método de abordagem dedutivo, uma vez que, se analisa do geral para o particular com o objetivo de refletir sobre a necessidade ou não do reconhecimento de um implícito fundamental ao direito à desconexão com base no direito social ao lazer. Também será empregado o método histórico de investigação, para que se obtenha a progressão do tema em função das influências históricas da cultura trabalhista na sociedade brasileira contemporânea.
Além desses, utilizar-se-á o método comparativo para que se possa determinar o vínculo entre os princípios fundamentais de segunda geração, o modo pelo qual estão sendo aplicados e as implicações advindas das novas tecnologias nas relações laborais. Logo, pretende-se que o tema seja compreendido a partir dos direitos humanos e sociais fundamentais, da contextualização do direito do trabalho no contexto dos direito humanos, do surgimento do direito ao lazer, para, por fim, tratar do direito à desconexão do trabalhador e da sua necessidade de reconhecimento como direito social implícito.
2 Direito a desconexão como parâmetro ao trabalho digno na perpesctiva do desenvolvimento sustentável
A ideia de desenvolvimento sustentável historicamente está associada à preservação do meio ambiente, assumindo lugar de destaque na contraposição aos modelos de crescimento econômico irrestrito, praticados na segunda metade do século XX.
No entanto, é a partir da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1983, e dos diversos eventos de cúpula realizados pela Organização das Nações Unidas na década de 1990, fortaleceu-se a noção de para além da preocupação ecológica, um desenvolvimento que se pretende buscar benefício ao longo do tempo para assegurar também sustentabilidade social e econômica.
Dessa forma, por intermédio do trabalho digno que caminha ao lado das práticas que respeitam o desenvolvimento econômico sustentável, adotando atitudes que promovam o bem-estar coletivo da sociedade e incentivem a regulamentação, fiscalização e cumprimento das normas internacionais sobre o tema.
Assim conforme estabelece a OIT (2020), podemos conceituar trabalho digno em quatro pilares:
a) respeito aos direitos fundamentais no trabalho; b) salário-mínimo adequado; c) limitação da jornada de trabalho, e d) saúde e segurança no trabalho. Sendo assim, trabalho digno seria aquele criado, consolidado e exercido conforme as regras estabelecidas pelos diversos atores sociais envolvidos na relação de trabalho.
Portanto, afirma-se que o trabalho digno pode ser compreendido como aquele que respeita os direitos fundamentais individuais e sociais do trabalhador, visando o bem-estar individual e coletivo, a efetiva valorização social do trabalho e a dignidade humana, conforme estabelece a Carta Magna de 1988 no art. 1º e incisos III e IV, e os demais direitos sociais fundamentais trabalhistas individuais e sociais.
Logo o meio ambiente de trabalho equilibrado é tido como direito fundamental por ser indispensável a qualidade de vida, consoante expressa o art. 225, caput, da CF/1988, que tem relação direta com o direito à saúde, em especial a do trabalhador, previsto no art. 6º do texto constitucional.
Além disso, a leitura combinada dos arts. 6º, 7º, XXII, e 200, VIII, todos da Carta Magna, torna incontestável que o ambiente laboral saudável é um direito fundamental do trabalhador. Tendo em vista que o direito ambiental do trabalho, é consequência, em parte, da junção e da relação de questões partilhadas entre os ramos do direito do trabalho e do direito ambiental (PADILHA, 2015, p. 106-107), cumpre frisar que, além de saúde, aduz a pessoa humana o direito a qualidade de vida no trabalho, sendo, para isso, crucial o equilíbrio daquele espaço que se encontra profundamente ligado à proteção da dignidade do trabalhador.
Nesse sentido, o trabalho digno, ideal de um dos elementos fundadores da sociabilidade humana, e é objeto de análise nesta primeira seção, na medida em que, com a agenda da ONU 2030, restou definitivamente consagrado como um dos vetores de desenvolvimento econômico sustentável.
2.1 Conceito de trabalho digno na Organização Internacional do Trabalho
Desde sua fundação, a OIT promove o direito ao trabalho como principal fonte de justiça e paz social mundial. Sua criação, pelo Tratado de Versalhes, logo após a Primeira Guerra Mundial, e sua incorporação pela Organização das Nações Unidas, em 1945, demonstram sua relação e importância para precaução e solução de conflitos.
Neste documento foram estabelecidas oito convenções fundamentais (Convenções nº 29, 87, 98, 100, 105, 111, 138 e 182), cujo cumprimento independeria de ratificação pelos Estados-membros.
Os temas contidos em tais convenções versam sobre: a) a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; c) a abolição efetiva do trabalho infantil; e d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.
Seguindo tais premissas, a Declaração do Centenário da OIT para o Futuro do Trabalho estabelece que todos os trabalhadores devem desfrutar de uma proteção que considera o trabalho digno como parâmetro central: a) respeito aos direitos fundamentais no trabalho; b) salário mínimo adequado; c) limitação da jornada de trabalho; e d) saúde e segurança no trabalho.
Assim, pode-se afirmar que a proteção ao trabalho digno deve abranger tanto os princípios e direitos fundamentais consagrados na Declaração de 1998 da OIT como os preceitos previstos na Declaração do Centenário, ressaltando que as condições de trabalho seguras e saudáveis são fundamentais para o trabalho digno; e de que governos, empregadores e trabalhadores devem orientar esforços para aproveitar todo o potencial tecnológico para promover desenvolvimento econômico sustentável a todas as pessoas.
3 DIREITOS TRABALHISTAS COMO DIREITOS SOCIAIS E FUNDAMENTAIS DA DIGNIDADE DO TRABALHADOR
Para abordar do direito ao lazer à desconexão, faz-se necessária a observação de que os direitos dos trabalhadores são protegidos tanto na legislação estrangeira quanto nacional.
Esta proteção decorre das diretrizes internacionais, por meio do art. XXIV da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que protege o repouso, o lazer e a limitação de horas de trabalho ou das diretrizes nacionais, a partir do art. 1°, incisos III e IV da Constituição de 1988, que dispõe sobre a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.
Desse modo, é imprescindível para a compreensão do tema, apresentar os direitos humanos e fundamentais no trabalho e o direito do trabalho nos direitos humanos, a fim de demonstrar que os direitos do trabalho não são protegidos somente no direito nacional.
Em um segundo momento, apresenta-se a evolução e o surgimento deste direito, explanando os direitos angariados para chegar a um direito específico nominado de jornada de trabalho, quando se encontra o foco da problemática do direito à desconexão, que são agravados pelos implementos das novas tecnologias, dando origem a esta face do direito trabalhista.
Segundo Pinto (2006, p. 119):
A discussão doutrinal acerca do que é fundamental nos direitos humanos foi ultrapassada pela sistemática constitucional brasileira, quando o legislador originário fez gravar, mediante avançados e superiores valores, os direitos sociais no Título II, Capítulo II, da Carta Política, dentre os direitos e garantias fundamentais da sociedade brasileira – sejam estes individuais ou coletivos. Desde então, não deve haver distinção em natureza de importância entre os direitos individuais e coletivos, as garantias civis, políticas em fase dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Os direitos fundamentais têm como pressupostos proteger a dignidade humana e fixar modos básicos de convivência em sociedade, “a vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana, enquanto valores históricos e filosóficos, nos conduzirá sem óbices ao significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana” (BONAVIDES, 2007, p. 516).
Nesse sentido, Kümmel (2007, p. 05) defende que os direitos sociais e trabalhistas incluem-se entre os fundamentais: “Denominado constitucionalismo social e ocupando a mais alta classe na hierarquia dos direitos, os direitos constitucionais trabalhistas passaram a ser considerados direitos fundamentais; a servir de freio às tendências desregulamentadoras do direito do trabalho […].”
Assim, o direito do trabalho está ligado a todos os outros direitos ditos como sociais fundamentais. Essa ligação tornou-se cada vez mais estreita, ainda mais com as novas necessidades da sociedade de hoje, que não são as mesmas de um século atrás, o que faz com que os direitos fundamentais sejam, certamente, expandidos.
3.1 Teoria dos Direitos Fundamentais nas relações laborais
Um trabalhador só possui liberdade de trabalhar quando tem o mínimo existencial garantido, fora isto a tendência é se sujeitar a condições desumanas. Por isso a utilização das ferramentas de controle de produção de forma abusiva ou desproporcional poderá privar o trabalhador de seu direito de liberdade, de desconectar e afetará consequentemente seus direitos da personalidade.
Logo, é evidente a necessidade do acesso do direito ao lazer, já que a partir dele consegue-se proteger uma variedade de outros direitos sociais fundamentais dentro e fora das relações de trabalho.
A garantia ao lazer torna possível o desenvolvimento social e biopsíquico do indivíduo. É através do lazer é possível garantir e proteger toda uma variedade de outros direitos fundamentais e sua violação tem impactos negativos significantes.
Não temos apenas a flexibilização do ambiente, mas também o tempo de trabalho. Para os autores Russel (2002) e Domenico de Masi (2000) consideravam que com a criação das novas tecnologias, os trabalhadores passariam a trabalhar menos e se dedicar mais ao lazer. Inclusive Russel (2002, p. 33), em seu livro “O elogio ao ócio” defendia a redução da jornada para quatro horas diárias:
Quando sugiro a redução da jornada de trabalho para quatro horas, não quero com isto dizer que o tempo remanescente deveria necessariamente ser gasto em frivolidades. Quero dizer que quatro horas diárias de trabalho deveriam ser suficiente para dar às pessoas o direito de satisfazer as necessidades básicas e os confortos elementares da vida e que o resto de seu tempo deveria ser usado da maneira que lhes parecesse mais adequada. Uma condição fundamental de um tal sistema social é que a educação ultrapasse as suas atuais fronteira e adote como parte de seus objetivos o cultivo de aptidões que capacitem as pessoas a usar seu lazer de maneira inteligente.
Lafargue (1999) defendia, igualmente, que a classe operária deveria lutar não pelo Direito ao Trabalho, mas reclamar por jornadas limitadas a três horas diárias. Infelizmente esse ideal não se concretizou, pois as novas tecnologias foram criadas com a finalidade de facilitar a forma de prestação de trabalho no entanto percebe-se que ao invés de reduzir o tempo destinado ao labor, intensificou a problemática do tempo livre de trabalho.
No que tange ao ordenamento jurídico possuímos um conjunto de normas impostas que suprem as necessidades de proteção. Como o processo de transformação da sociedade é extremamente dinâmico, é possível concluir que normatizar uma atividade exclusiva, quiçá palpitante na atualidade, objeto de exploração e subordinação algorítma a um determinado equipamento eletrônico.
- AS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E SEUS IMPACTOS NAS RELAÇOES DE TRABALHO
A evolução da sociedade sempre influenciou o mundo do trabalho, podendo-se citar como exemplo a transição da revolução agrícola para a industrial, em que famílias começaram a migrar do campo para a cidade, para o fim de trabalhar nas grandes indústrias que surgiam, impulsionadas pela criação da máquina à vapor, da eletricidade, entre outros.
O emprego das tecnologias de informação e comunicação no âmbito das relações laborais favorecem cada vez mais essa excessiva conexão, pois permitem que as tarefas sejam cumpridas longe do ambiente de trabalho e após o término da jornada.
Denota-se que o empregador deixa de ser a pessoa “individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço” (BRASIL, 1943) e passa a ser o algoritmo que contrata, fiscaliza, determina a remuneração e avalia o trabalhador.
O direito fundamental à desconexão, confere ao trabalhador a prerrogativa de não permanecer sujeito à ingerência, solicitações ou contatos advindos do empregador para o qual o obreiro trabalha, “em seu período destinado ao descanso diário, semanal ou anual, e ainda em situações similares , em especial diante da existência das novas tecnologias” (OLIVEIRA, 2010). Isto é, o direito à desconexão é o direito do trabalhador de usufruir de seus momentos de folga, sem permanecer à disposição do empregador, desconectandose totalmente de seu labor para o fim de se revigorar física e mentalmente (MELO; RODRIGUES, 2018).
As novas tecnologias estão em constante evolução e aperfeiçoamento, de forma que o legislador não acompanharia tamanha velocidade. Quando se tem uma lei especifica para certo tipo de tecnologia, é visto que após a sua entrada em vigência logo será defasada, se não for desprovida de eficácia desde antes da sua entrada em vigor.
O aparelho que conecta o empregado ao seu trabalho hoje, pode não ser o mesmo de amanhã, e, como este se encontra devidamente protegido, basta fiscalizar e conscientizar as pessoas que a vida não gira, somente, em torno do trabalho.
5 O DIREITO À DESCONEXÃO E AO LAZER COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL DO TRABALHADOR
As novas tecnologias do Século XXI, superando o industrialismo manufatureiro clássico de meados do Século XX, trouxeram novas complexidades as relações de trabalho.
Os evidentes ganhos de produtividade deste novo modelo produtivo implicam obscuridade adicional aos limites estabelecidos para o tempo dedicado ao trabalho contratado e o tempo destinado às atividades livres do trabalhador.
Nota-se, portanto, que o indivíduo moderno não é mais o senhor de seu tempo, pois, o tempo do trabalho está cada vez mais invadindo as horas destinadas ao lazer do trabalhador. Ou seja, mesmo diante das inovações tecnológicas que deveriam aumentar o tempo ocioso do indivíduo, vem tirando em decorrência da predominância da ideologia da produtividade (KEHL, 2009).
Não existem mais momentos de descanso e de lazer, existem apenas momentos de trabalho. Os trabalhadores deixam de ser pessoas e, novamente, passam a ser instrumentos da linha de produção, que agora não é mais física, e sim, controle virtual.
O direito a desconexão também está fortemente atrelado às questões relativas as tecnologias de aplicativos de comunicação à distância, pelas quais o empregador pode incidir na vida do trabalhador a qualquer momento.
Desconectar, reflete em desligar-se das tarefas de seu trabalho e do contato com superiores, colegas e clientes. Sem a possibilidade da desconexão, o estresse ligado ao trabalho não permitem o trabalhador uma vida social plena.
Existem, portanto, muitos direitos fundamentais que em razão de sua estrutura complexa, possuem faculdade que os qualificam simultaneamente como “direitos” e “garantias” fundamentais (ANDRADE, 2006), dentre eles, pode-se inserir o direito à desconexão, que como acima mencionado, trata-se de um direito fundamental implícito, que tem como função a proteção e a garantia de outros direitos fundamentais do trabalhador.
Conforme acima demonstrado, conforme saliente Maffra (2015) o direito à desconexão consiste no direito do indivíduo de trabalhar menos, mantendo-se o equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal, bem como protegendo-se a saúde e a vida privada do trabalhador.
Além disso, o direito de desconexão tem como função nada além de preservar o direito ao lazer (BRASIL, 1988) , isto é, trata-se de uma garantia do trabalhador de laborar menos, de não permanecer à totalmente conectado à disposição do empregador nas horas livres, através das ferramentas tecnológica, permitindo que o sujeito se desligue totalmente de suas atividades laborais, podendo nesse tempo se divertir, praticar esportes, atividades culturais ou ainda relacionadas a sua formação, participar socialmente da comunidade.
5.1 Dignidade Humana do Trabalhador na Era Digital e Trabalho Decente
Nesse contexto, percebe-se que a prestação pessoal dos serviços não foi substituída pela tecnologia, na verdade mudou a relação do empregador com o trabalhador, definido nos moldes da Revolução Industrial, tendo como pressupostos básicos como a subordinação, que está gradativamente dando lugar ao trabalho on-demand com suas peculiaridades.
Verifica-se assim que o uso da tecnologia nas relações de trabalho pode resultar diferentes repercussões econômicas, sociológicas e jurídicas que refletem diretamente na saúde e vida do trabalho, pois é uma forma de exploração mais focada no enaltecimento do trabalho autônomo e com pouca cobertura de direitos sociais.
Assim, o desenvolvimento individual e social através do trabalho não é possível, pois a construção da identidade acaba por ser suprimida pela exploração (GOSDAL, 2006, p. 115).
Segundo o sociólogo Antunes (2009), não seria uma nova classe de precariados, na verdade é uma categoria mais oprimida da classe-que-vive-do-trabalho em decorrência do novo proletariado digital. Contrapondo a teoria proposta por Standing (2014), que defende o surgimento do “precariado” como uma nova classe em formação que desponta a partir da evolução do capitalismo industrial para o capitalismo neoliberal globalizado, este ensaio busca dialogar com algumas teorias e definições do que vem a ser uma classe social.
Ruy (2015) também discorda da afirmação de Standing de que o precariado se constituiria como uma nova classe social. Para o autor é na verdade expressão de um fenômeno de precarização da força de trabalho nos anos recentes de globalização.
A perspectiva lançada pelo trabalho, ou seja, a sua importância tanto para a reprodução do sistema capitalista, que tende a explorar a mão de obra, como também para dignificação do trabalho, que vai além da perspectiva econômica de ganho de bens, pode ser harmonizada a partir da ideia de que o trabalho proposto nos moldes constitucionais é o trabalho decente, como conclui Delgado (2006).
Na sequência, quanto ao lugar constitucional do valor social do trabalho, em analogia à teoria Araújo (2016, p. 129) propõe três dimensões ao valor social do trabalho, quais sejam: uma dimensão fundamentadora, que é dada pela previsão constitucional da realização do valor social; uma dimensão orientadora dos atos das instituições político jurídicas, o que implica da ilegitimidade das ações contrárias a tal valor; e uma crítica, a qual serve de critério para uma valoração normativa e jurisdicional das normas.
É nesse esse aspecto da dignidade enquanto diretriz constitucional à atuação do Estado e dos agentes particulares que se pauta a discussão sobre a aplicação conjunta dos princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho.
Nessa forma, quando se assume o caráter necessário protetivo do trabalho, que incluir um aspecto negativo sob o ponto de vista do trabalhador, será a dignidade humana o elemento capaz de determinar que o trabalho deve cumprir seu papel social e econômico, mas não poderá ser degradante, sob pela de ferir a dignidade.
5.2 A importância do Direito a Desconexão na saúde mental do trabalhador
O direito à desconexão está relacionado também ao direito à saúde, na medida em que busca resguardar o bem-estar, o meio ambiente equilibrado e trabalho digno, por meio da limitação da jornada de trabalho e o efetivo respeito aos períodos de descanso.
Assim, é fundamental a tutela ao meio ambiente de trabalho, visando a resguardar a saúde física e mental do teletrabalhador.
Autores como Melo e Rodrigues (2018) apresentam o conceito amplo: “meio ambiente do trabalho é constituído por todos os elementos que compõem as condições de trabalho de uma pessoa, relacionadas à sua sadia qualidade de vida”.
A saúde está associada à dignidade da pessoa humana e à qualidade de vida. Neste sentido, o preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020) dispõe que:
A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.
A OIT aponta algumas causas do aumento das doenças mentais em razão da pressão no meio ambiente do trabalho, tais como: a sobrecarga de informações; intensificação do trabalho; altas exigências de mobilidade e flexibilidade; demanda por disponibilidade constante em função dos avanços tecnológicos.
A Convenção n. 155, da OIT, ratificada pelo Brasil em 18 de maio de 1992, prevê que todo Membro deverá “pôr em prática e reexaminar periodicamente uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio-ambiente de trabalho” (OIT, 1981). Note-se que de acordo com a referida Convenção em seu artigo 5, “b”, o fator “tempo de trabalho” é fundamental para implantação de políticas de saúde e segurança no trabalho, sendo de suma importância a sua disciplina, para que se possa preservar a saúde a segurança dos trabalhadores (VECCHI, 2017).
Da mesma maneira, quando a Constituição Federal prevê, no inciso XXII, do artigo 7º, o direito fundamental à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, também está concedendo alcance à duração do trabalho e evidenciando, a preocupação com a higidez no ambiente laboral.
Assim, a não desconexão do trabalho pode ser identificada como uma força que produz tensão ao trabalhador, pois ao ultrapassar os limites físicos e psíquicos do sujeito, aumentando a carga psíquica e, por consequência, o sofrimento, em consonância com a ótica de Dejours. O que ocasiona o estresse ocupacional, a depender dos níveis, pode gerar distúrbios mais graves, como a Síndrome de Burnout.
Por isso, é necessário compreender a relação entre direito à desconexão e saúde a partir da abordagem psicossomática, segundo a qual o ser humano é um todo, ou seja, ao ambiente laboral.
Assim, deve ser analisado por completo, englobando a mente, trata-se portanto de uma compreensão biopsicossocial do sujeito. Dessa maneira, o adoecimento da mente pode gerar o adoecimento do corpo físico e vice-versa.
Ou seja, os distúrbios mentais apresentados manifestam sintomas físicos que acometem a saúde do corpo e, da mesma maneira, alguns problemas físicos podem desencadear doenças psíquicas. Portanto, a saúde física e a mental estão inter-relacionadas ao lazer/descanso e o direito à desconexão visa resguardar ambas.
Considerações Finais
O direito ao lazer/desconexão, bem como o direito ao trabalho digno possuem suas bases e objetivos na dignidade da pessoa humana, sendo que ambos se complementam em busca deste objetivo comum.
Nesse caso, o direito à desconexão e o acesso ao lazer possibilitam ao trabalhador o contato social e familiar, bem como sua integridade psíquica, gerando reflexos positivos a vida privada e individual e para o próprio ambiente do trabalho.
Nesse sentido, o trabalho digno também deve ser promovido ao lado do fortalecimento da inspeção e fiscalização do trabalho, bem como o respeito às normas de saúde e segurança que conduzem para o desenvolvimento economicamente sustentável como propõe a ONU. Pois, além de promover o trabalho de forma digna e segura, a tecnologia pode servir de auxílio na substituição de trabalhos exaustivos e precários para trabalhos menos penosos, desgastantes ou que utilizem menos força física.
As novas tecnologias nasceram para facilitar a vida do homem e não para conecta-lo de forma que ocupe o tempo livre de trabalho, o direito ao lazer é garantido como direito social fundamental valido e justo, por isso faz-se imprescindível fazer uso dele por intermédio do direito à desconexão laboral, seja para a proteção da vida em sociedade, da saúde, da intimidade ou da vida do trabalhador.
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[1] Mestranda em Direito e Desenvolvimento pelo Centro Universitário de João Pessoa – Unipê (Brasil).
E-mail: rodriguesnascimento.diandra@gmail.com
[2] Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e Mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba, professor universitário e advogado.