RESSOCIALIZAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL

RESSOCIALIZAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL

15 de novembro de 2025 Off Por Cognitio Juris

REHABILITATION IN THE PRISON SYSTEM

Artigo submetido em 12 de novembro de 2025
Artigo aprovado em 15 de novembro de 2025
Artigo publicado em 15 de novembro de 2025

Cognitio Juris
Volume 15 – Número 58 – 2025
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Marlon Bezerra Moraes[1]
Janaina Pâmela Silva dos Santos [2]
Delner do Carmo Azevedo[3]

RESUMO: A ressocialização no sistema prisional constitui um dos maiores desafios enfrentados pelo Estado e pela sociedade contemporânea. O processo de reintegração social dos indivíduos privados de liberdade exige políticas públicas eficazes, condições estruturais adequadas e uma gestão prisional que valorize a educação, o trabalho e o acompanhamento psicossocial. No entanto, a realidade das prisões brasileiras demonstra um cenário de superlotação, falta de recursos e violação de direitos fundamentais, o que dificulta o cumprimento da função ressocializadora da pena. A ausência de programas consistentes de reabilitação contribui para a reincidência criminal e a perpetuação do ciclo de exclusão social. A Constituição Federal de 1988 e a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) estabelecem que o objetivo da pena não deve ser apenas punitivo, mas também educativo e transformador, visando à reinserção do apenado na comunidade. Assim, torna-se essencial repensar as políticas penitenciárias e fortalecer as ações voltadas à educação, à profissionalização e ao acompanhamento pós-pena. A ressocialização, portanto, deve ser compreendida como um processo multidimensional, que envolve o Estado, a família e a sociedade civil, sendo indispensável para a efetivação dos princípios da dignidade humana e da justiça social.

Palavras-chave: ressocialização; sistema prisional; reintegração social.

ABSTRACT: Resocialization within the prison system represents one of the greatest challenges faced by the State and modern society. The reintegration of incarcerated individuals requires effective public policies, adequate structural conditions, and prison management that prioritizes education, work, and psychosocial support. However, the Brazilian prison reality reveals overcrowding, lack of resources, and violations of fundamental rights, hindering the resocializing purpose of punishment. The absence of consistent rehabilitation programs contributes to criminal recidivism and the perpetuation of social exclusion. The Federal Constitution of 1988 and the Penal Execution Law (Law No. 7.210/1984) establish that punishment should not only be punitive but also educational and transformative, aiming at the inmate’s reintegration into society. Therefore, it is essential to rethink penitentiary policies and strengthen actions related to education, professional training, and post-sentence support. Resocialization must be understood as a multidimensional process involving the State, family, and civil society, being fundamental for the realization of human dignity and social justice.

Keywords: resocialization; prison system; social reintegration.

1 INTRODUÇÃO

A ressocialização no sistema prisional constitui um dos temas mais complexos e desafiadores enfrentados pelo Estado e pela sociedade contemporânea. O sistema carcerário brasileiro, historicamente marcado por desigualdades, superlotação e precariedade estrutural, tem se mostrado ineficiente em alcançar sua função essencial de reintegração social dos apenados. A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) estabelece que a pena deve ter caráter não apenas punitivo, mas também educativo e transformador, com vistas à reeducação e ao retorno digno do indivíduo à sociedade. No entanto, a realidade prisional revela um distanciamento entre o que está previsto na norma e o que efetivamente ocorre nas instituições penais.

Diante desse contexto, surge o problema: em que medida o sistema prisional brasileiro tem conseguido cumprir sua função ressocializadora prevista na Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984)? A partir dessa questão, define-se como objetivo geral analisar criticamente a eficácia das políticas e práticas de ressocialização implementadas no sistema prisional brasileiro, considerando os desafios estruturais, administrativos e sociais que impedem a concretização desse propósito.

A justificativa para a escolha do tema baseia-se em sua relevância social e jurídica. A ausência de políticas eficazes de reintegração amplia o ciclo de exclusão, pobreza e criminalidade, impactando não apenas o apenado, mas também sua família e a coletividade (BRASIL, 2024). Estudos demonstram que programas voltados à educação prisional e ao trabalho aumentam significativamente as chances de empregabilidade após o cumprimento da pena, reduzem o estigma social e contribuem para a diminuição da reincidência criminal (OLIVEIRA, 2022; CNJ, 2024). Assim, compreender a ressocialização como um direito fundamental e como dever do Estado é indispensável para o fortalecimento da cidadania e da segurança pública.

Espera-se, como resultado, que a pesquisa aponte caminhos para o aprimoramento das políticas penitenciárias, destacando a importância de investimentos em educação, capacitação profissional e acompanhamento psicossocial. Tais medidas podem contribuir para transformar o ambiente prisional em um espaço de reconstrução da dignidade humana e de efetivação da função social da pena, aproximando a prática institucional dos princípios constitucionais e humanitários que regem o Estado Democrático de Direito.

2 O SISTEMA PENINTENCIÁRIO BRASILEIRO

Todo indivíduo submetido a uma sanção penal deve ter assegurados todos os seus direitos e garantias, devendo estes ser preservados tanto pelos princípios constitucionais quanto pelas demais normas jurídicas (BOCALETI, 2017). É indiscutível a relevância da atuação do Estado e do Poder Judiciário para que os direitos fundamentais sejam efetivamente respeitados, garantindo a concretização de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, no qual prevaleça a igualdade entre todos os cidadãos (DEMBOGURSKI; OLIVEIRA; DURÃES, 2021).

Observa-se, entretanto, que o sistema prisional atual carece de eficácia, revelando-se falho e desumano. Hoje, as prisões se tornaram verdadeiros depósitos de pessoas, onde se aguarda a morosa atuação de uma justiça ineficiente, que acaba por fomentar ainda mais a criminalidade (BITENCOURT, 2003).

A pena de prisão, enquanto resposta ao crime, é elemento essencial do discurso jurídico, cuja função primária é a segregação, afetando diretamente o sentimento de pertencimento à coletividade. Assim, possui natureza nitidamente retributiva, punindo aquele que viola as normas de convivência social por meio de sua exclusão do meio comunitário. Em outras palavras, aquele que ameaça a ordem social é afastado compulsoriamente do convívio comum (MESSUTI, 2003).

Quando a prisão passou a ser o principal instrumento de punição estatal, acreditava-se ser um meio eficaz de promover a ressocialização do condenado; contudo, com o passar dos anos, essa crença vem se dissipando, demonstrando que o sistema penitenciário se encontra em profunda crise (BITENCOURT, 2003). É evidente que o sistema penal e as práticas de punição ainda precisam evoluir, sendo imprescindível refletir sobre a realidade carcerária em níveis nacional e regional, a fim de assegurar o cumprimento dos preceitos constitucionais.

Muitas vezes, a sensação de segurança jurídica proporcionada pela pena é ilusória, pois, ao analisar a efetividade das políticas criminais de ressocialização, constata-se que ainda há muito a ser aprimorado para garantir o respeito aos direitos humanos no sistema prisional brasileiro (MARTINES, 2019).

Os direitos das pessoas privadas de liberdade no Brasil são frequentemente violados dentro das unidades prisionais, onde vivem em condições desumanas que afrontam a dignidade e os direitos humanos. O mais preocupante é que essa realidade desperta atenção apenas de uma parcela reduzida da sociedade. Essas situações são destacadas pelo autor para evidenciar a gravidade das violações de direitos existentes nos estabelecimentos prisionais.

2. 1 A Ressocialização como pilar Jurídico da execução penal e instrumento de reintegração social no brasil

A ressocialização, no plano jurídico e normativo, configura-se como um dos pilares fundamentais da execução penal no ordenamento brasileiro, sendo compreendida como o processo de reintegração do indivíduo ao convívio social por meio de políticas que visam restaurar sua dignidade, autonomia e senso de pertencimento. A Constituição Federal de 1988, ao consagrar em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, estabelece o princípio orientador de todas as ações estatais voltadas à execução da pena. Nesse contexto, o sistema prisional deve assegurar condições que favoreçam a reeducação e o retorno do apenado à sociedade, em consonância com o artigo 5º, XLVII, que veda penas cruéis, e com o artigo 6º, que inclui a educação e o trabalho como direitos sociais fundamentais.

A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) concretiza esse princípio ao definir, em seu artigo 1º, que a execução da pena tem por objetivo efetivar as disposições de sentença criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado. (Brasil, 1984). Desse modo, a execução penal ultrapassa o caráter meramente retributivo da sanção, assumindo função ressocializadora e preventiva, baseada na transformação do indivíduo e na reconstrução de sua cidadania. Os princípios da execução penal, como legalidade, individualização da pena, humanidade e proporcionalidade, são garantias que limitam o poder punitivo estatal e orientam as políticas de reintegração social.

De acordo com Mirabete (2014), a finalidade da pena não deve restringir-se à punição, mas deve buscar a readaptação social do condenado por meio da educação e do trabalho, compreendidos como instrumentos essenciais para o desenvolvimento moral e ético do indivíduo. Para o autor, a pena deve operar como “meio de regeneração”, permitindo que o infrator, ao compreender as consequências de seus atos, retome sua convivência social dentro dos parâmetros legais e éticos. Nessa mesma linha, Bitencourt (2021) sustenta que a função ressocializadora da pena representa uma obrigação do Estado de oferecer condições efetivas de reabilitação, não podendo ser reduzida a mera retórica. Segundo ele, a ressocialização requer políticas públicas permanentes, baseadas em educação, assistência psicológica e capacitação profissional, capazes de reduzir a reincidência e promover a inclusão social.

Assim, a ressocialização, sob o ponto de vista jurídico e normativo, é expressão concreta dos valores constitucionais de humanidade e dignidade, exigindo uma atuação estatal comprometida com o respeito aos direitos fundamentais dos apenados e com a efetividade das políticas de reintegração social. Trata-se, portanto, de um imperativo ético e jurídico que reafirma o caráter humanista do direito penal brasileiro.

2.2 Educação prisional e formação profissional como vetor de ressocialização

A educação prisional aparece na literatura contemporânea como um dos principais instrumentos para a promoção da ressocialização, sendo tratada tanto como direito básico quanto como estratégia preventiva contra a reincidência. Estudos realizados no Brasil entre 2018 e 2024 destacam que, embora a educação de jovens e adultos (EJA) e cursos profissionalizantes tenham potencial transformador, sua oferta enfrenta limitações estruturais, baixa oferta de vagas, falta de materiais pedagógicos, rotatividade de professores e restrições impostas pela rotina carcerária (OLIVEIRA, 2022; BARBOSA, 2023). A literatura aponta três funções interligadas da educação prisional: (1) capacitação técnica para acesso ao trabalho formal ou informal após a saída; (2) construção de repertório cognitivo e socioemocional que favoreça tomada de decisões e empatia; e (3) reconstrução de identidade cidadã com ênfase em direitos e deveres (OLIVEIRA, 2022; UNIBRA, 2022).

Evidências empíricas nacionais apontam correlações entre participação em cursos formais e diminuição da reincidência; entretanto, muitos estudos alertam que o efeito depende fortemente da qualidade do programa e da articulação com políticas de inserção laboral (por exemplo, encaminhamento a vagas, parcerias com empresas, certificação reconhecida) (BARBOSA, 2023; CNJ, 2024). Assim, um curso de curta duração sem certificação formal tende a gerar efeitos limitados, enquanto programas longo-prazo integrados a estágios e certificação aumentam empregabilidade (BRASIL, 2024).

Outra dimensão relevante é a pedagogia aplicada: a adaptação de metodologias para contextos de EJA e população carcerária exige formação docente específica, recursos didáticos adequados e avaliação contínua. Pesquisas indicam que práticas participativas, que valorizem experiências pregressas e promovam projetos coletivos, reforçam vínculos sociais e autorresponsabilidade (OLIVEIRA, 2022). Além disso, a educação prisional não pode ser pensada isoladamente: precisa se articular com serviços de saúde mental, assistência social e programas de trabalho para que a transição à vida livre não seja abrupta e sem suporte (BARBOSA, 2023).

No plano legislativo e de políticas públicas, documentos recentes (Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária 2024) enfatizam a educação como eixo central da execução penal e propõem metas de ampliação e qualificação. No entanto, a implementação enfrenta desafios financeiros e de governança, e exige monitoramento com indicadores de qualidade e impacto (BRASIL, 2024). Relatórios do CNJ (2024) também registram iniciativas estaduais promissoras que combinam ensino médio supletivo, cursos técnicos, e parcerias com instituições públicas e privadas; essas experiências oferecem modelos de boas práticas que podem ser adaptados em outros estados (CNJ, 2024).

Por fim, estudos de avaliação destacam a importância de indicadores de resultado (taxas de emprego pós-egresso, reincidência, continuidade dos estudos) e de avaliações longitudinais que superem análises apenas descritivas (BARBOSA, 2023). A combinação de educação de qualidade, certificação profissional e políticas de encaminhamento ao trabalho configura-se, segundo a literatura recente, como um vetor robusto de ressocialização quando há integração interinstitucional e compromisso de financiamento.

2. 3 Modelos alternativos (APAC) e práticas comunitárias: potencialidades e críticas

O modelo APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) ganhou destaque como alternativa humanizadora ao sistema prisional tradicional e tem sido historiado, avaliado e debatido por pesquisadores desde a década passada. Na literatura recente (2018–2024), surgem análises que valorizam os resultados de redução de reincidência e de melhoria do ambiente interno quando implementado segundo os “doze elementos” do método, que incluem trabalho, religiosidade, responsabilidade coletiva e participação da comunidade (POZZOLI, 2021; LAURO, 2023). Estudos de campo registram que unidades APAC apresentam indicadores positivos em comparação a unidades convencionais, sobretudo em medidas de disciplina interna, reinserção laboral e laços comunitários (RBEP/DEPEN, 2020; POZZOLI, 2021).

No entanto, a literatura contemporânea também apresenta críticas e ressalvas. Há debates sobre a replicabilidade do modelo em contextos diversificados: o sucesso da APAC em certas localidades depende fortemente da mobilização comunitária, financiamento voluntário, adesão religiosa e existência de redes locais de apoio, fatores que nem sempre se replicam em grandes centros urbanos ou em contextos com precariedade institucional (LAURO, 2023; BARBOSA, 2023). Críticas apontam para o risco de transferência de responsabilidade estatal para atores privados e religiosos sem garantias formais de fiscalização e respeito aos direitos individuais (DANTAS, 2020; ALFREDO, 2024).

Outro ponto de controvérsia refere-se às evidências metodológicas: alguns estudos que reportam baixo índice de reincidência em APAC carecem de amostras comparativas robustas e de controles para seleção diferencial (apenas presos com perfis específicos podem ser encaminhados ao método), o que exige pesquisas mais rigorosas e longitudinais para confirmar causalidade (POZZOLI, 2021). Ainda, há discussões éticas sobre a ênfase em religiosidade e disciplina, que podem conflitar com pluralidade de crenças e com a necessidade de garantias constitucionais em ambientes de privação de liberdade (DANTAS, 2020).

Além da APAC, experiências de “prisões comunitárias”, programas de monitoramento eletrônico com oferta de trabalho e medidas alternativas (uso de tornozeleira, penas alternativas integradas a atividades sociais) surgem como caminhos complementares. Avaliações de políticas públicas no período 2018–2024 (BRASIL, 2024; CNJ, 2024) apontam que modelos híbridos, que combinam segurança, educação, trabalho e participação comunitária — tendem a ser mais adaptáveis e politicamente viáveis quando mantêm mecanismos de controle estatal e monitoramento de resultados.

A bibliografia contemporânea sugere que a APAC e modelos comunitários oferecem potencial real para a ressocialização, mas sua efetividade depende de governança, transparência, seleção adequada de participantes, articulação com políticas de trabalho e garantia de direitos. Recomenda-se cautela: adoção sem avaliação e regulação pode produzir resultados heterogêneos e riscos institucionais; por outro lado, se integrados a políticas públicas e avaliados criticamente, esses modelos podem compor uma matriz plural de execução penal voltada à reintegração.

2. 4 Políticas públicas, governança e indicadores de impacto: monitoramento e recomendações

A eficácia de iniciativas de ressocialização depende não só de boas práticas locais, mas de arranjos institucionais consistentes, financiamento adequado e sistemas de monitoramento orientados a resultados. O Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária 2024 traça diretrizes e metas para ampliar educação, trabalho e ressocialização, mas sua operacionalização enfrenta desafios de governança compartilhada entre União, estados e municípios (BRASIL, 2024). Relatórios recentes do CNJ (2024) e análises acadêmicas (BARBOSA, 2023; ALFREDO, 2024) sinalizam falta de indicadores padronizados e de avaliações independentes que permitam comparar programas e escalonar boas práticas.

A construção de indicadores exige dados integrados: registros prisionais, informações de trabalho e seguridade social, e sistemas de acompanhamento pós-libertação. Estudos demonstram que a existência de políticas públicas articuladas (encaminhamento a vagas de trabalho, programas de mentoring, apoio psicossocial) amplifica os efeitos da educação e da formação técnica (BARBOSA, 2023; CNJ, 2024). Do ponto de vista financeiro, a alocação de recursos deve priorizar programas com evidência de impacto e mecanismos de avaliação externos, potenciais parcerias com setor privado e incentivos à contratação de egressos, sempre preservando garantias de não-discriminação.

Quanto à governança, recomenda-se a institucionalização de comitês intersetoriais em nível estadual e nacional com representação do poder público, sociedade civil, universidades e organizações que atuam com pessoas privadas de liberdade, garantindo participação e transparência (BRASIL, 2024). A criação de protocolos de referência e contrarreferência entre unidades prisionais e serviços externos (CRAS, empregadores, universidades) é apontada como prática necessária para continuidade do processo de reintegração.

3 A Ressocialização como Finalidade da Pena no Sistema Prisional Brasileiro

A ressocialização representa um dos pilares centrais da execução penal, consagrada como objetivo essencial do sistema prisional brasileiro. De acordo com a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), em seu artigo 1º, “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Essa previsão demonstra que o legislador não restringe a pena ao caráter retributivo, mas amplia sua finalidade para incluir a reeducação e a reinserção do indivíduo à convivência em sociedade. Assim, o cumprimento da pena deve ir além da punição, constituindo-se em um processo pedagógico e social de reconstrução da cidadania.

No campo doutrinário, Mirabete (2017) destaca que a pena não deve ser compreendida apenas como instrumento de coerção estatal, mas como mecanismo de transformação individual e social.

A reflexão de Mirabete reforça que a sanção penal, para cumprir sua função constitucional e humanista, deve ser orientada por políticas públicas eficazes que promovam o desenvolvimento pessoal e social dos apenados. Todavia, a realidade prisional brasileira demonstra um abismo entre o ideal normativo e a prática institucional, marcada pela superlotação, pela ausência de programas de reabilitação e pela precariedade das condições de vida nos estabelecimentos penais.

O sistema penitenciário, em vez de promover a reeducação e a reintegração social, frequentemente se converte em um espaço de marginalização e desumanização. Bitencourt (2018, p. 87) observa que “as prisões brasileiras, em grande parte, funcionam como verdadeiras escolas do crime, onde o condenado se vê privado de oportunidades de mudança e submetido a um ambiente que reforça a criminalidade”. Essa constatação aponta para a falência estrutural do modelo prisional vigente, que, ao negligenciar a dignidade humana, compromete o próprio sentido da execução penal.

3.1 Uma Análise Sociológica, Criminológica e Educacional do Sistema Prisional Brasileiro

Do ponto de vista jurídico e constitucional, a ressocialização encontra fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Esse princípio impõe ao Estado o dever de assegurar que todo indivíduo, mesmo após a prática de um delito, seja tratado com respeito, tendo reconhecida sua condição de sujeito de direitos. Assim, o cumprimento da pena deve observar a finalidade reeducativa, garantindo ao apenado acesso à educação, ao trabalho e à assistência psicológica e social. Silva (2020, p. 142) ressalta que “a dignidade da pessoa humana é o alicerce que legitima qualquer intervenção estatal na liberdade, e sua violação compromete não apenas o indivíduo encarcerado, mas a própria legitimidade do sistema jurídico”.

A Lei de Execução Penal, em consonância com os princípios constitucionais, estabelece uma série de direitos destinados a assegurar a integridade física e moral dos presos, bem como a criação de condições para seu desenvolvimento pessoal. O artigo 10 dispõe que “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. Tal dispositivo reforça a ideia de que a execução penal deve estar vinculada à política social mais ampla, integrando ações de educação, trabalho, cultura e saúde.

Contudo, a realidade das prisões brasileiras, conforme apontam os relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2024), é marcada por graves deficiências estruturais. Estabelecimentos superlotados, ausência de programas de reabilitação e escassez de profissionais qualificados tornam o processo de ressocialização quase inviável.

Sob a ótica sociológica e criminológica, o processo de ressocialização não pode ser reduzido à simples adaptação do indivíduo às normas sociais. Ele deve envolver a criação de oportunidades concretas de reconstrução da identidade e do projeto de vida do apenado. Foucault (2019, p. 236), ao analisar o papel das instituições disciplinares, adverte que o cárcere, ao tentar corrigir o indivíduo por meio do isolamento e da vigilância, acaba por produzir sujeitos estigmatizados e marginalizados:

Essa crítica foucaultiana evidencia a contradição inerente ao sistema prisional, que, ao pretender corrigir, frequentemente agrava as condições de exclusão e marginalização. Assim, para que a ressocialização seja efetiva, é imprescindível que o Estado adote políticas públicas voltadas à humanização do cárcere e à reestruturação do sistema penal.

Entre as medidas fundamentais para a concretização desse objetivo estão a ampliação do acesso à educação formal e profissionalizante dentro dos presídios, a valorização do trabalho prisional e o fortalecimento dos programas de acompanhamento pós-egresso. A educação, especialmente, desempenha papel central na reconstrução da cidadania. Freire (2018, p. 45) sustenta que “a educação libertadora é o instrumento mais eficaz para a transformação do ser humano, pois o liberta das amarras da ignorância e o conduz à consciência crítica de sua realidade”. Aplicada ao contexto prisional, essa concepção reforça a necessidade de transformar o ambiente carcerário em espaço de aprendizado e reconstrução da autonomia.

Ademais, o trabalho prisional deve ser compreendido não como forma de exploração, mas como atividade educativa e produtiva, capaz de proporcionar qualificação e autoestima. A Lei de Execução Penal, em seu artigo 28, reconhece o trabalho do preso como dever social e condição de dignidade humana. No entanto, o número de vagas laborais é reduzido e muitas vezes restrito a atividades manuais de baixa complexidade. Ampliar essas oportunidades e garantir remuneração justa são medidas que fortalecem o sentido ressocializador da pena.

Outro ponto essencial é o acompanhamento pós-pena, que tem como objetivo facilitar a reinserção social e profissional do egresso. A falta de suporte estatal e o preconceito social dificultam o recomeço do ex-detentos, conduzindo muitos à reincidência. Programas de apoio, como os Centros de Referência para Egressos do Sistema Prisional, quando bem estruturados, demonstram que é possível reduzir os índices de retorno ao crime por meio da integração entre Estado, sociedade civil e iniciativa privada.

A efetivação da ressocialização exige uma abordagem multidimensional, que articule aspectos jurídicos, sociais e humanos. É preciso superar o paradigma meramente punitivo e reconhecer que o encarceramento, por si só, não cumpre função regeneradora. A execução penal deve ser concebida como um processo contínuo de reconstrução da dignidade humana, fundamentado na educação, no trabalho e no respeito aos direitos fundamentais. Como conclui Mirabete (2017, p. 31), “a pena perde seu sentido quando se limita à privação da liberdade; ela só se justifica quando se torna instrumento de regeneração moral e social do condenado”.

Dessa forma, a ressocialização deve ser compreendida não como um favor estatal, mas como um direito constitucionalmente assegurado e um dever do Estado Democrático de Direito. O desafio que se impõe é transformar o discurso jurídico em prática efetiva, garantindo que o sistema prisional cumpra, de fato, sua função de promover a justiça social, reduzir a criminalidade e restituir à sociedade indivíduos capazes de reconstruir suas trajetórias de forma digna e produtiva.

3.2 A Ressocialização do detento para fins de readaptação ao meio social

Conforme Barcinski e Cúnico (2017, p. 1.260), “O sistema prisional brasileiro entende a ressocialização dos detentos como uma forma de readequá-los ao convívio social”. Dessa forma, o processo de ressocialização, como tentativa de tornar o indivíduo mais consciente e apto à convivência coletiva, seria algo desejável e viável caso o sistema prisional garantisse os meios previstos em lei para tal finalidade.

O trabalho e o estudo permitem ao preso tornar-se “útil” à sociedade e obter seu sustento. Assim, sob o aspecto material, inexistiriam razões para reincidir (BRITTO; SILVA, 2019). A pena, por si só, especialmente no regime fechado e em presídios superlotados e insalubres, não ressocializa nem restaura a sensibilidade e a empatia; ao contrário, “deseduca”, endurece o caráter e estimula a revolta (LEOPOLDO, 2018).

Diversas teorias da pena foram formuladas. A primeira, de natureza retributiva, entende a punição como compensação pelo mal causado, isto é, castigo pelo delito, são as teorias absolutas (VIEIRA, 2018). Nessas concepções, o foco recaía sobre o passado, sem considerar o futuro do apenado. Muitas penas eram cruéis e degradantes, sem impedir a reincidência, pois o Estado não buscava reeducar o indivíduo, mas apenas punir (ARBAGE, 2017). Sousa (2018) destaca que, frequentemente, o mal imposto pela pena era mais grave que o próprio crime, violando o princípio da proporcionalidade. Em seguida, surgiram as teorias relativas ou preventivas da pena, que lhe atribuem função preventiva (SANTOS; SILVA; MASULLO, 2020).

Nessas teorias, a pena não visa retribuir o mal, mas prevenir novas infrações. Se nas teorias absolutas o castigo decorre do fato delituoso, nas relativas ele se impõe para evitar reincidência. A pena passa, então, a ter finalidade futura e preventiva (FERREIRA, 2018). Assim, o Direito Penal busca inibir delitos e impedir novas infrações (OLIVEIRA, 2018).

A ressocialização, portanto, requer condições adequadas para que o preso se reestruture e retorne ao convívio social, garantindo o exercício da dignidade humana (GOMES, 2019). Pipino (2019) ressalta o valor ressocializador do trabalho, evidenciando os benefícios que proporciona à conservação da personalidade e ao autodomínio físico e moral, essenciais para a vida em liberdade.

Projetos educacionais e laborais dentro dos presídios são fundamentais para que o egresso volte ao mercado de trabalho capacitado e não reincida (SILVA, 2003). O artigo 22 da LEP determina que a assistência social deve preparar o preso para o retorno à sociedade, reforçando o artigo 10 da mesma lei. Além disso, prevê amparo e reintegração do egresso (CUNHA, 2010).

O artigo 25 estabelece a assistência ao egresso mediante orientação, apoio, alojamento e alimentação por dois meses, prorrogáveis mediante comprovação do esforço em obter emprego. Já o artigo 27 impõe ao serviço social a colaboração na inserção laboral (GOMES, 2019). Tais dispositivos reforçam a importância da ressocialização e da reinserção social. A falta de moradia digna, escolaridade e qualificação profissional leva muitos indivíduos ao encarceramento e, posteriormente, à reincidência, por ausência de políticas eficazes de reintegração e apoio jurídico-social (ARBAGE, 2017).

Diante disso, constata-se que o Estado não cumpre integralmente seu dever de zelar pelo preso durante e após o cumprimento da pena, devido à falta de interesse político e social (BOCALETI, 2017). A superlotação e a escassez de unidades prisionais restringem o acesso a estudo e trabalho, desumanizando a pena e esvaziando seu caráter ressocializador (SOUSA, 2018). A liberdade não se limita à soltura; o Estado deve oferecer suporte estrutural para reintegrar o egresso, desenvolvendo programas e atividades que favoreçam sua reinserção social, concretizando os objetivos da execução penal.

CONSIDERAÇÃO FINAL

A análise da ressocialização no contexto do sistema prisional brasileiro permite compreender que a execução penal ainda enfrenta profundas contradições entre o discurso jurídico e a realidade concreta vivenciada pelos apenados. Embora a Lei de Execução Penal estabeleça a reeducação e a reintegração social como finalidades essenciais da pena, o que se observa, na prática, é a prevalência de um modelo punitivo, desumanizado e excludente. A ausência de políticas públicas efetivas, a superlotação carcerária, as precárias condições estruturais e a carência de programas de trabalho e educação impedem que o preso alcance uma verdadeira transformação pessoal. Nesse cenário, a ressocialização acaba se tornando um ideal teórico, distante das condições mínimas necessárias para sua concretização.

A doutrina, representada por autores como Barcinski e Cúnico (2017), Gomes (2019) e Pipino (2019), ressalta que a ressocialização não se resume à contenção física do infrator, mas à oferta de oportunidades para que ele reconstrua sua identidade social e retome o convívio comunitário de forma digna. O trabalho e a educação se revelam instrumentos indispensáveis nesse processo, pois possibilitam o desenvolvimento da autonomia e do senso de responsabilidade. No entanto, a falta de políticas de apoio ao egresso e de programas sociais voltados à sua reintegração perpetua o ciclo da reincidência e da marginalização.

Assim, é imprescindível repensar a função social da pena e resgatar seu caráter humanizador, conforme defendem Britto e Silva (2019) e Ferreira (2018). A execução penal deve transcender o viés retributivo e adotar uma perspectiva voltada à prevenção e à transformação. O Estado precisa assumir sua responsabilidade de garantir condições adequadas nas unidades prisionais e promover ações de capacitação, acompanhamento psicológico e assistência social, de modo a efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana.

Por fim, a ressocialização não deve ser vista apenas como obrigação estatal, mas como compromisso ético de toda a sociedade, que deve reconhecer no apenado um sujeito de direitos em processo de reconstrução. A reintegração social exige o engajamento conjunto do poder público, da comunidade e das instituições civis, pois somente por meio de políticas inclusivas, humanas e continuadas será possível romper o ciclo da exclusão e consolidar um sistema penal verdadeiramente justo, educativo e emancipador.

REFERÊNCIAS

ALFREDO, J. A humanização da pena e os desafios da governança prisional. São Paulo: Atlas, 2024.

ARBAGE, A. F. A função social da pena: reflexões sobre a retribuição e prevenção. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.

BARBOSA, C. R. Educação e trabalho como instrumentos de ressocialização: um estudo sobre políticas prisionais brasileiras. Brasília: Universidade de Brasília, 2023.

BARCINSKI, M.; CÚNICO, S. Ressocialização e sistema prisional: desafios da reintegração social no Brasil. Revista Psicologia & Sociedade, Porto Alegre, v. 29, n. 4, p. 1258–1270, 2017.

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[1] Acadêmico no curso de Direito pelo Centro Universitário São Lucas; marlonphd24@gmail.com.

[2] Acadêmica no curso de Direito pelo Centro Universitário São Lucas; jana_pamela@hotmail.com.

[3] Professor Especialista, orientado no curso de Direito pelo Centro Universitário São Lucas;  http://lattes.cnpq.br/0603434002082954; delnercazevedo@gmail.com.