AS CRIPTOMOEDAS COMO MEIO ALTERNATIVO EM RELAÇÃO ÀS MOEDAS FIDUCIÁRIAS E O PLURALISMO JURÍDICO OBSERVADO ENTRE AMBAS
30 de setembro de 2025CRYPTOCURRENCIES AS AN ALTERNATIVE METHOD IN RELATION TO FIDUCIARY CURRENCIES AND THE LEGAL PLURALISM OBSERVED BETWEEN THEM
Artigo submetido em 22 de setembro de 2025
Artigo aprovado em 25 de setembro de 2025
Artigo publicado em 30 de setembro de 2025
| Cognitio Juris Volume 15 – Número 58 – 2025 ISSN 2236-3009 |
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| Autor(es): Fernando Pompeu Luccas[1] |
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Sumário: 1. Introdução – 2. História da moeda fiduciária: do escambo às moedas fiduciárias e digitais. 2.1. O Padrão-Ouro – 3. A invenção da Blockchain e a criação do Bitcoin – 4. As demais criptomoedas – 5. O Pluralismo Jurídico – curso forçado versus adoção tecnológica – 6. Desafios e oportunidades na resolução do problema inflacionário das moedas fiduciárias e a adoção das criptomoedas. – 7. Conclusão – 8. Bibliografia
Resumo: A difusão de criptomoedas e arranjos baseados em blockchain reabriu debates sobre a natureza do dinheiro, a repartição de competências regulatórias e a urgência de formas não estatais de regulação e governança. O presente artigo examina os fundamentos técnicos e jurídicos dos criptoativos, faz análise crítica da atual primariedade regulatória e discute propostas de coordenação que mitiguem riscos sem inibir a inovação. A metodologia aplicada engloba pesquisa técnico analítica, com revisão narrativa de literatura, e tem por procedimento o caráter discursivo do autor, trazendo seu conhecimento prático na área. Limitações: estudo puramente empírico da parte prática, constatando-se também, no campo jurídico, ausência de usual regulamentação. Resultados/Argumentos: os criptoativos se mostram como uma importante alternativa à moeda fiduciária e à proteção contra a inflação, tendo seu universo de uso, atualmente, funcionando como organismo próprio e com carência de regulamentação global específica. Conclusões: mostra-se necessário um olhar atento às aplicações dos criptoativos versus os problemas atuais das moedas fiduciárias, principalmente da falta de lastro concreto. Recomenda-se uma regulamentação progressiva multinível, preservando e garantindo a inovação de forma responsável.
Palavras-chave: Pluralismo Jurídico; Moeda fiduciária; Curso Forçado; Lastro; Blockchain; Bitcoin; Criptomoedas; Criptografia; Inflação; Descentralização.
Abstract: The spread of cryptocurrencies and blockchain-based arrangements has reopened debates on the nature of money, the distribution of regulatory competences, and the urgency of non-state forms of regulation and governance. This article examines the technical and legal foundations of cryptoassets, provides a critical analysis of the current regulatory primacy, and discusses coordination proposals that mitigate risks without inhibiting innovation. The applied methodology encompasses technical-analytical research with a narrative literature review and adopts a discursive approach from the author, incorporating his practical knowledge in the field. Limitations: a purely empirical study of the practical dimension, while also noting, in the legal sphere, the absence of customary regulation. Results/Arguments: cryptoassets present themselves as an important alternative to fiat currency and as protection against inflation, with their current ecosystem functioning as a self-regulated organism lacking specific global regulation. Conclusions: careful attention is required regarding the applications of cryptoassets versus the current issues of fiat currencies, particularly the lack of concrete backing. A progressive multilevel regulation is recommended, one that preserves and ensures innovation responsibly.
Keywords: Legal Pluralism; Fiat Currency; Legal Tender; Backing; Blockchain; Bitcoin; Cryptocurrencies; Cryptography; Inflation; Decentralization.
1. Introdução
Nos últimos anos, as criptomoedas emergiram como uma importante alternativa no cenário financeiro global, desafiando as concepções tradicionais sobre dinheiro e transações.
Desde o surgimento da principal delas – o Bitcoin – em 2008, as moedas digitais têm atraído a atenção de investidores, especuladores, reguladores e entusiastas de tecnologia, gerando debates aquecidos sobre seu potencial e suas implicações.
Para compreender completamente o impacto das criptomoedas, o pluralismo jurídico relacionado às moedas de curso forçado e elas (consideradas como descentralizadas), é essencial traçar um paralelo com a história da moeda em si, desde os primórdios do escambo até a adoção das moedas fiduciárias lastreadas em ouro, a perda do lastro e suas implicações (como o problema da inflação), e a chegada aos dias atuais, com a discussão e a adoção, cada vez mais frequente, dos criptoativos.
A coexistência, cada vez mais discutida, entre tais sistemas monetários, traz uma série de desafios e oportunidades para a economia moderna. Nesse contexto, a invenção da tecnologia Blockchain se destaca como um marco fundamental, fornecendo uma infraestrutura segura e descentralizada para a realização de transações financeiras.
O advento do Bitcoin não só inaugurou uma nova era de ativos digitais, como também inspirou o desenvolvimento de milhares de outras criptomoedas, cada uma com suas características e propósitos únicos.
Este artigo tem como objetivo explorar a evolução do sistema financeiro, analisando sua história, os pontos relativos ao lastro, o pluralismo jurídico existente entre o curso forçado e a descentralização com o advento das criptomoedas, bem como as oportunidades e desafios que elas apresentam no atual sistema financeiro. Ao longo do texto, buscaremos entender como as criptomoedas podem transformar não apenas a forma como realizamos transações financeiras, mas também o próprio conceito financeiro na sociedade contemporânea.
2. A história da moeda: do escambo às moedas fiduciárias e digitais
A moeda, hoje elemento essencial das economias, possui uma trajetória histórica que reflete o desenvolvimento das sociedades humanas e a evolução das relações econômicas.
Desde os primórdios, sua função foi se transformando, adaptando-se às necessidades de cada época e moldando o sistema financeiro como conhecemos hoje.
No início da organização social, as comunidades eram baseadas no autoconsumo, sendo que cada grupo produzia apenas o necessário para sua subsistência. Com o aumento da população e a criação de excedentes, surgiram as trocas de mercadorias entre grupos, sendo tais trocas realizadas por meio de escambo, ou seja, a permuta direta entre bens.
Porém, à medida que as sociedades se tornaram mais complexas, o escambo se revelou insuficiente, especialmente em mercados onde havia uma grande variedade de produtos e participantes. Isso levou à necessidade de um “equivalente geral”, uma mercadoria que pudesse ser usada como meio de troca universal.
Assim, surgiu a “moeda-mercadoria”, que variava conforme o ambiente cultural de cada região. Em algumas sociedades, o gado era utilizado como moeda, enquanto em outras, o sal desempenhava essa função. A palavra “pecuniário”, derivada do latim “pecus” (gado), e “salário”, que remete ao uso do sal como meio de pagamento, são vestígios linguísticos dessa fase inicial.
Com o tempo, as características necessárias para uma “boa moeda” foram se consolidando. Para ser eficiente, a moeda precisava ser durável, divisível, homogênea e de fácil transporte. Essas qualidades foram encontradas nos metais preciosos, como ouro e prata, que passaram a ser utilizados como moeda.
As primeiras moedas metálicas foram cunhadas no Reino da Lídia, na Anatólia, entre 640 e 630 a.C. Essa inovação comercial impulsionou o comércio e gerou riqueza, tonando o pequeno reino um centro econômico próspero.
A moeda metálica não apenas facilitou as trocas, mas também passou a desempenhar funções essenciais como padrão de valor e reserva de riqueza. Sua durabilidade e confiabilidade a tornaram um elemento central nas economias emergentes, permitindo que as sociedades avançassem para sistemas econômicos mais complexos.
Porém, embora os metais preciosos fossem eficientes como moeda, sua não total conveniência para transporte e armazenamento levou ao surgimento da moeda-papel, melhor nesses quesitos.
Inicialmente, comerciantes e ourives passaram a guardar metais preciosos em locais seguros e emitir notas que representavam os depósitos. Essas notas começaram a ser usadas como meio de pagamento, pois eram mais práticas do que o próprio metal, sendo esse sistema dependente da confiança dos depositantes de que poderiam resgatar seus metais quando necessário.
Esse sistema perdurou por muitos anos, sendo que, no período moderno (séculos XVII – XIX), surgiu então a “centralização estatal”, com o advento dos bancos centrais – como o Riksbank sueco (1668) e o Bank of England (1694) – responsáveis por emitir notas bancárias conversíveis em ouro e prata.
2.1. O padrão-ouro
No final do século XIX, consolidou-se o denominado padrão-ouro, fazendo com que as moedas nacionais tivessem o seu valor atrelado ao metal precioso depositado nos cofres estatais. Isso proporcionou estabilidade cambial internacional até ser interrompida pelas guerras mundiais do século XX.
A Primeira Guerra Mundial marcou o início do fim desse sistema, pois os governos suspenderam a conversibilidade para financiar os esforços bélicos, ocorrendo hiperinflações devastadoras em países como a Alemanha, nos anos 1920. Após 1944, foi estabelecido o sistema Bretton Woods: moedas atreladas ao dólar americano – este, sim, ainda conversível em ouro.
Porém, em 1971, no governo de Richard Nixon, os Estados Unidos abandonaram oficialmente o padrão-ouro, marcando o fim da era das moedas lastreadas em metais preciosos. Esse movimento levou à ascensão das moedas fiduciárias – aquelas cujo valor não é respaldado por um ativo físico específico, mas sim pela confiança dos usuários na estabilidade econômica do governo emissor.
Chegando-se ao século XX, assistimos a digitalização progressiva dos meios de pagamento: cartões eletrônicos substituíram cheques; sistemas interbancários globais (como SWIFT) aceleraram transferências internacionais etc.
Esse sistema é o que podemos chamar de oficial atualmente, com as moedas estatais de curso forçado sendo aceitas nos seus respectivos países ou blocos de países (caso do euro), tendo o dólar ainda o principal papel de moeda global e reserva de valor, seguido por outras moedas fortes, como o próprio euro.
Porém, cada vez mais nos deparamos com problema econômicos advindos desse sistema, em especial por conta da ausência de lastro, o que permite a emissão de moeda de acordo com as políticas econômicas de cada governo, causando, em muitos casos, o descontrole financeiro, a alta inflação e, consequentemente, a diminuição do poder de compra.
Diante dessa situação, e do desenvolvimento da tecnologia Blockchain, em 2008 foi criada uma nova forma de moeda, chamada Bitcoin, criando um novo sistema de finanças, caracterizado pela descentralização, não havendo emissão e controle estatal, fazendo com que passássemos a ter uma evidente questão de pluralismo jurídico, com as moedas estatais tendo as suas devidas regulamentações, e o Bitcoin tendo seguidos questionamentos por diversos países, exatamente pela falta de legislação específica e controle estatal.
Porém, esse ponto não impediu sua adoção, sendo observado, ao longo dos anos subsequentes, cada vez uma maior popularização do ativo, saindo apenas da esfera dos chamados early adopters, para a adoção por investidores tradicionais, institucionais e países, principalmente como reserva de valor.
3. A invenção da Blockchain e a criação do Bitcoin
A tecnologia Blockchain, criada em 2008 por Satoshi Nakamoto junto com o Bitcoin, revolucionou a forma de registrar e validar transações digitais, ao proporcionar um sistema descentralizado e seguro, eliminando intermediários e solucionando problemas como o “gasto duplo”.
Baseado em uma espécie de “livro-razão público distribuído”, onde blocos de informações são validados por consenso entre participantes da rede e protegidos por criptografia avançada, a blockchain garante transparência, imutabilidade e segurança dos dados. Embora tenha surgido para viabilizar moedas digitais, rapidamente mostrou potencial para transformar diversos setores além das finanças, como saúde, logística e governança, consolidando-se como uma inovação tecnológica capaz de impactar profundamente as relações econômicas, jurídicas e sociais.
Em relação ao Bitcoin, podemos o definir, de maneira simplista, como uma moeda digital criada, como dito, em 2008, e tendo, como uma de suas principais características, a emissão limitada à 21 milhões de unidades. Sua emissão se dá de forma descentralizada – ou seja, sem depender de regulamentação, governos ou bancos -, ocorrendo pela denominada “Mineração” que, aprofundando um pouco mais o tema, é a atividade desenvolvida por algumas pessoas físicas e/ou empresas que disponibilizam grande capacidade computacional para resolver problemas matemáticos complexos em prol da rede, o que será ainda melhor tratado à frente.
Podemos definir as características do Bitcoin em quatro pilares fundamentais: a emissão limitada, a criptografia, a descentralização e o mecanismo de proof of work (prova de trabalho).
Sobre criptografia, cada transação da criptomoeda é assinada digitalmente com chaves criptográficas únicas, o que minimiza ao máximo tentativas de fraude (na tecnologia de hoje, consideradas praticamente impossíveis).
A descentralização, por sua vez, decorre do fato de que milhares de computadores ou servidores, que são denominados na rede como “nós”, totalmente independentes, suportam cópias sincronizadas da blockchain, de modo que nenhuma pessoa ou autoridade possa alterar os registros anteriores sem que toda a rede, ou seja, os milhares de computadores, perceba a incoerência e invalide a transação.
Já a prova de trabalho (proof of work) obriga os denominados “Mineradores” – participantes da rede que colocam o seu poder computacional à prova para trabalhar por ela – a resolverem cálculos matemáticos complexos para criar novos blocos a cada novo bloco criado e, assim, inserir transações validadas na cadeia de blocos. Esse processo consome enorme quantidade de energia e tempo, tornando inviável a falsificação de registros, o que dá ainda mais segurança ao sistema.
Outro aspecto importantíssimo do Bitcoin, que o faz ser um dos principais ativos de reserva de valor, é a sua escassez programada. Ao contrário das moedas fiduciárias, cuja oferta pode ser expandida de acordo com as políticas monetárias dos países, o Bitcoin, com seu teto fixo em 21 milhões de unidades, aproxima-se da escassez natural de metais preciosos (como o ouro), porém ainda melhor, pois não há possibilidade de se ultrapassar esse teto.
Sobre o que se denomina de “mineração”, ou seja, a “emissão” de novos Bitcoins, periodicamente, a cada 4 anos aproximadamente, ocorre o evento conhecido como halving, em que a recompensa concedida aos mineradores pela criação de novos blocos é reduzida pela metade. Tal mecanismo ocorre a cada adição de 210 mil blocos, sendo que cada adição de bloco dura, em média, 10 minutos. Então, esses cerca de 4 anos de cada “ciclo do halving” são contados da seguinte forma: 2,1 milhões de minutos, ou 35 mil horas, ou aproximadamente 1.458 dias, chegando-se a 3,99 anos.
Esse mecanismo gradual de se emitir não apenas restringe o ritmo de novas emissões, como também introduz um importante componente deflacionário. Atualmente, são minerados aproximadamente 450 bitcoins por dia, número que adveio do último halving, ocorrido em abril de 2024, tendo previsão de nova ocorrência no primeiro semestre de 2028, o que fará com que o número diário de Bitcoins emitidos caia pela metade – 225 – e assim siga ao longo de cada 4 anos, tendo previsão de encerramento completo de suas emissões por volta do ano 2140.
Essas importantes características conferem ao Bitcoin o apelido atual de “ouro digital”, porém, apesar de operar em uma rede de código aberto e autocontrolada por protocolos matemáticos, o Bitcoin também enfrenta desafios importantes.
Sua primeira grande barreira é a escalabilidade: como cada bloco tem tamanho limitado e intervalo de geração médio de dez minutos, o número de transações por segundo é baixo em comparação com sistemas de pagamento convencionais. Para mitigar essas limitações, foram surgindo o que se denomina de “soluções de segunda camada”, como a “Lightning Network”, que permite a troca de valores instantâneos e de baixo custo fora da cadeia principal, reduzindo a sobrecarga e as taxas associadas ao uso direto da Blockchain.
Além disso, a volatilidade de seu preço tem atraído tanto especuladores quanto críticos. Enquanto alguns investidores defendem o Bitcoin como porto seguro contra a inflação e instabilidades econômicas, outros ressaltam as oscilações abruptas de valor, o que dificulta o seu uso cotidiano como meio de pagamento estável atualmente. Porém, é importante se destacar que, a cada ano, observa-se uma diminuição na volatilidade, o que nos leva a crer que essa dificuldade será sanada com o passar do tempo, diante da crescente adoção da moeda.
O denominado “ecossistema” que se formou em torno do Bitcoin inclui carteiras digitais, exchanges centralizadas e descentralizadas, serviços de custódia especializados (inclusive crescente em instituições financeiras), mineradoras de grande escala e um amplo universo de desenvolvedores. Esse conjunto de fatores tem impulsionado inovações paralelas, como contratos inteligentes, tokens representando ativos do mundo real e integrações de sistemas de finanças descentralizadas, denominadas “DeFi”. No entanto, à medida que o alcance do Bitcoin e também de outras criptomoedas se expande, temas como regulamentação, tributação e sustentabilidade ambiental ganham destaque. Os países divergem em suas abordagens: alguns incentivam a pesquisa e a criação de marcos regulatórios claros, enquanto outros impõem restrições severas ou vetos completos ao uso das criptomoedas.
Olhando para o futuro, conclui-se que o Bitcoin pode assumir papéis ainda mais amplos. Além da reserva de valor, ele tende a se consolidar como alternativa de transferência internacional de capital, especialmente entre regiões com sistemas bancários instáveis ou onde a população é desfavorecida por altas taxas de câmbio. Do ponto de vista tecnológico, avanços no âmbito da privacidade poderão tornar a moeda digital mais segura e eficiente.
Diante de todos esses pontos, vê-se que o Bitcoin é o primeiro e mais reconhecido representante de uma possível revolução monetária que, a cada dia, mostra-se sem retorno ao que se tinha antes de sua chegada, diante da sua crescente adoção por pessoas físicas, empresas, investidores institucionais e até países.
4. As demais criptomoedas
Além do Bitcoin, o mercado de criptomoedas se expandiu rapidamente, originando milhares de outras, chamadas no meio de altcoins, como Ethereum (a segunda maior delas), Solana, Ripple, Binance Coin, dentre outras, cada um com propósitos e tecnologias distintas. Essas moedas digitais, como o Bitcoin, também se baseiam na Blockchain, utilizando criptografia e operando em redes descentralizadas, garantindo segurança, transparência e autonomia nas transações.
As altcoins podem ser divididas em diversos subgrupos e categorias, como as stabecoins correlacionadas com moedas fiduciárias (como a Thether USDT), os tokens de projetos específicos, os tokens de ativos do mundo real (denominados Real World Assets – RWA) e até memecoins, que muitas vezes ganham destaque por pura especulação e apoio comunitário.
Além de suas funções particulares, muitas altcoins viabilizam inovações como contratos inteligentes, finanças descentralizadas (denominadas DeFi), identidades digitais seguras e votação eletrônica transparente. Apesar do potencial transformador e crescentemente acessível institucionalmente, o setor enfrenta desafios como a alta volatilidade e a precariedade regulatória.
Sob a perspectiva do pluralismo jurídico, as criptomoedas exemplificam a emergência de novas ordens normativas fora do Estado tradicional, criando regras próprias de circulação de valor e resolução de conflitos dentro dos seus “ecossistemas digitais”, demonstrando a coexistência de múltiplos sistemas jurídicos no cenário global contemporâneo, não apenas transformando as finanças globais, como também desafiando modelos tradicionais de regulação jurídica, ao propor novas formas práticas de autonomia de organização normativa.
5. O Pluralismo Jurídico – curso forçado versus adoção tecnológica
Como já dito, observa-se uma clara existência de um pluralismo jurídico no contexto contemporâneo das moedas fiduciárias e das criptomoedas. Tradicionalmente, o Estado detém o monopólio da emissão da moeda, conferindo-lhe o curso proposto e estabelecendo-a como único meio legal de pagamento.
Essa centralidade estatal é sustentada por um arcabouço normativo robusto, que visa garantir não apenas a estabilidade econômica (que veremos, no próximo tópico, a grande falha que se observa nesse ponto), mas também a própria soberania nacional.
Como bem observa Bobbio, “o direito estatal tende à unidade e à exclusividade”, sendo a moeda fiduciária, talvez, um dos instrumentos mais evidentes dessa pretensão unificadora.
Entretando, o surgimento das criptomoedas desafia esse paradigma, ao criar sistemas financeiros paralelos baseados em tecnologias descentralizadas e na confiança entre pares. Como já visto, as criptomoedas não precisam do reconhecimento estatal para existirem: sua legitimidade decorre de normas técnicas e consensos comunitários que se impõem à margem do “direito oficial”.
A convivência entre moedas fiduciárias (respaldadas pelo poder coercitivo do Estado) e as criptomoedas (que são fundamentadas em contratos privados e códigos computacionais), dá grande clareza a esse aspecto. O Estado pode até tentar restringir, como várias vezes já se observou, o uso das criptomoedas, mas não consegue eliminar a sua adoção, o que faz com que se observe, cada vez mais, um movimento inverso, de se tentar trazer regulação para garantir sua circulação.
Essa questão de ora se tentar restringir, ora se tentar estimular, traz zonas cinzentas nas quais normas estatais e privadas interagem, competem ou se sobrepõem. Para Bobbio, essa multiplicidade normativa é característica das sociedades complexas modernas, cuja “multiplicidade dos centros de produção normativa é um dado irredutível da experiência jurídica contemporânea”.
No campo prático, o pluralismo se manifesta em desafios como o reconhecimento legal das criptomoedas, sua tributação e a resolução de conflitos decorrentes de transações digitais transnacionais. Os contratos celebrados com base em criptoativos por vezes escapam da jurisdição tradicional dos tribunais estatais, exigindo novas formas de regulação e mediação.
Dessa forma, o pluralismo jurídico entre moedas fiduciárias e criptomoedas não apenas desafia os limites tradicionais do direito estatal, como também inaugura novos espaços para experimentação normativa. Compreender essa dinâmica é fundamental para pensar os rumores futuros da regulação financeira global e para considerar que o jurídico, nesse universo, mostra-se cada vez mais disperso entre múltiplos polos normativos, principalmente por se tratar de assunto absolutamente global.
6. Desafios e oportunidades na resolução do problema inflacionário das moedas fiduciárias, e a adoção das criptomoedas
Entrando-se no tema mais importante relacionado ao advento das criptomoedas, em especial do Bitcoin, verificamos o principal motivo de sua criação: resolver o grave problema gerado pela expansão monetária desenfreada, culminando nos índices atuais de inflação. Abordando-se esse aspecto, em primeiro lugar, mostra-se importante diferenciar o Bitcoin das demais criptomoedas (altcoins).
As altcoins, em tese, também devem ser classificadas como criptomoedas, porém, em grande parte das vezes, estão ligadas aos projetos e empresas que representam. Grosso modo, podemos compará-las com ações de companhias, ou credenciais de acesso para grupos, por exemplo.
Traz-se essa visão, pois muitas estão atreladas à startups, cujo token correspondente não tem outra função senão representar a confiança no crescimento da empresa; outras tantas, estão atreladas a projetos, como de finanças descentralizadas, que trazem possibilidades de empréstimos, investimentos etc., com serviços oferecidos em determinadas plataformas; outras, por exemplo, estão atreladas a memes, que não tem função qualquer específica, mas que são detidas por pessoas que se sentem pertencentes a um mesmo grupo, ou as adquirem por mera especulação financeira.
Já o Bitcoin surgiu como uma alternativa à moeda fiduciária, detendo critérios bem definidos, sendo um dos seus principais, justamente, a limitação de sua expansão – como já dito, só existirão, ao final das emissões, 21 milhões de unidades de Bitcoin.
Esse é o ponto crucial para se debater e aprofundar: o advento do Bitcoin se mostra como uma nova tecnologia, capaz de deter todos os requisitos necessários para uma moeda, porém não estando atrelada a nenhum governo, banco etc., tendo também sua emissão limitada, o que garante uma das principais funções da moeda, que é a reserva de valor, função esta que vem se observando totalmente dissonante com a realidade das moedas fiduciárias.
Quanto mais passa o tempo, mais se observa as dívidas dos governos aumentando. Os Estados Unidos, por exemplo, nação considerada a mais próspera e sólida do mundo, detém hoje uma dívida de 36 trilhões de dólares (data-base maio/2025).
Para fazer frente à essa dívida, o governo, dentre outras medidas, emite mais dólares, fazendo com que, na prática, aumente o número de dólares circulantes no mundo, o que culmina, necessariamente, no aumento de preços – inflação.
E isso ocorre em todos os países, inclusive no Brasil, observando-se o real desvalorizando sobremaneira ao longo do tempo, muito mais que o dólar, inclusive.
Dessa forma, é importante se destacar que o aumento no preço dos produtos, dos serviços, dos imóveis etc., não é culpa da indústria, do empresário, do prestador de serviços ou do proprietário do imóvel, como muitas vezes os cidadãos, erroneamente, pensam. A culpa para o aumento de preços é a maior emissão e circulação de moedas.
Do mesmo modo, a inflação oficial também não espelha a inflação real. A inflação oficial é medida de acordo com uma cesta de determinados itens. No entanto, quando se observa, na prática, o poder de compra geral, verifica-se que os índices divulgados, como reais de inflação, não se adequam à observação da perda do poder de compra ao longo do tempo.
Isso se dá porque, em verdade, a inflação real está ligada ao que chamamos de M2 Global, que é uma métrica que reflete a liquidez total nas economias do mundo, levando-se em conta o dinheiro em circulação, depósitos à vista, contas poupança e outros depósitos bancários de curta duração (até dois anos).
Diante disso, verifica-se que, quanto maior for a emissão de moeda, maior será a inflação, sendo este um caminho sem volta, pois a moeda fiduciária foi “deslastreada” do ouro, como já dito anteriormente.
O Bitcoin, neste cenário, apresenta-se como uma alternativa para resolver um dos principais, senão o principal problema das moedas fiduciárias, que é a perda do valor no tempo.
Porém, para que se aumente sua adoção, far-se-ão necessárias maiores regulamentações nos países, relacionadas aos criptoativos no geral, maior conhecimento dessa tecnologia, melhora no ambiente institucional etc.
Isso vem sendo observado nos últimos anos, mais precisamente a partir de janeiro de 2024, com a aprovação, pela SEC americana (Securities and Exchange Commission), da criação de ETFs de Bitcoin, trazendo essa alternativa para os investidores tradicionais que não detém conhecimento para a compra de Bitcoin in natura por meio de exchanges (corretoras), por outros detentores etc.
Isso fez com que o capital institucional passasse a ter essa nova via para acessar o Bitcoin (e até outras criptomoedas que já tiveram seus ETFs também aprovados), permitindo também que fundos, como os de pensão, por exemplo, passassem a se expor à essa classe de ativos.
Desde a aprovação dos ETFs de Bitcoin até agora, foram adquiridos, por eles, mais de 44,5 bilhões de dólares em Bitcoin (data-base maio/2025), o que se mostra uma quantia bastante expressiva, visto que estamos falando em pouco mais de 17 meses.
E desde então temos observado, cada vez mais, uma maior popularização do ativo, passando a ser oferecido, por exemplo, por grandes bancos, inclusive brasileiros, que, além de Bitcoin, ainda passaram a oferecer custódia de outras criptomoedas, como Ethereum, Solana, XRP etc.
Diante de todos esses pontos, talvez estejamos vivenciando o início de uma nova era nas finanças, com o uso de novas tecnologias, que poderão modificar sobremaneira a relação com o dinheiro como conhecemos hoje.
7. Conclusão
O advento das criptomoedas, liderado pelo Bitcoin, representa uma transformação significativa no sistema financeiro global, desafiando paradigmas e regulamentações tradicionais e introduzindo novas possibilidades.
Desde sua criação, o Bitcoin tem se destacado como alternativa às moedas fiduciárias, oferecendo características como descentralização, emissão limitada e segurança criptográfica, que o posicionam como reserva de valor promissora em um cenário de crescente inflação e desvalorização das moedas tradicionais.
A tecnologia Blockchain, que sustenta as criptomoedas, transcende o universo financeiro, apresentando aplicações em diversas áreas, como saúde, logística e governança, consolidando-se como uma das inovações mais impactantes das últimas décadas. Além disso, o pluralismo jurídico emergente entre moedas fiduciárias e criptomoedas, evidencia a necessidade de adaptação normativa, para lidar com sistemas financeiros paralelos e descentralizados.
Embora desafios como volatilidade, escalabilidade e regulamentação ainda precisem ser enfrentados, o crescente interesse de investidores institucionais, a aprovação de ETFs e a integração das criptomoedas em sistemas financeiros tradicionais indicam um movimento irreversível ruma à adoção mais ampla desses ativos digitais, estreitando-se, cada vez mais, o universo pluralista das normas estatais e normas privadas dos dois mundos.
Portanto, as criptomoedas não apenas oferecem soluções para problemas complexos como a inflação, mas também inauguram uma nova era de inovação tecnológica e financeira, com potencial para tentar redefinir profundamente a relação da sociedade com o dinheiro e os sistemas econômicos globais.
Bibiliografia
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[1] Advogado, Administrador Judicial, Professor, Coordenador Acadêmico e Palestrante nas áreas Cível e Empresarial. Presidente da Comissão de Estudos em Falência e Recuperação Judicial da OAB/Campinas pelos triênios 2016/2018, 2019/2021 e 2022/2024. Membro do Grupo de Trabalho do Conselho Nacional do Ministério Público que criou a Recomendação nº 102/2023. Membro da Comissão Permanente de Direito Recuperacional e Falimentar do IASP. Mestrando em Direito Comercial pela Puc/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela Puc-Campinas, em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD) e em Direito Recuperacional e Falimentar pela Fadisp. Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, do Instituto Brasileiro de Recuperação de Empresas – IBR, da International Association of Restructuring, Insolvency & Bankruptcy Professionals – INSOL. Autor de obras e artigos relacionados ao Direito Empresarial, Recuperacional e Falimentar. fernando.pompeu@mangeronaepompeu.com.br

