ASPECTOS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NO ÂMBITO DA EXECUÇÃO DA PENA NO BRASIL: A DESESTRUTURAÇÃO PARA O PÚBLICO FEMININO E A REALIDADE DO ESTADO DE RONDÔNIA

ASPECTOS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NO ÂMBITO DA EXECUÇÃO DA PENA NO BRASIL: A DESESTRUTURAÇÃO PARA O PÚBLICO FEMININO E A REALIDADE DO ESTADO DE RONDÔNIA

20 de setembro de 2023 Off Por Cognitio Juris

ASPECTS OF THE ENEMY’S CRIMINAL LAW IN THE CONTEXT OF THE EXECUTION OF THE PENALTY IN BRAZIL: THE DESTRUCTURING FOR THE FEMALE PUBLIC AND THE REALITY OF THE STATE OF RONDÔNIA

Artigo submetido em 15 de setembro de 2023
Artigo aprovado em 18 de setembro de 2023
Artigo publicado em 20 de setembro de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 49 – Setembro de 2023
ISSN 2236-3009

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Autores:
Rafael Victor Macedo Sena de Medeiros[1]
Fabrício Germano Alves[2]
Edivaldo Waldemar Genova[3]

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RESUMO: O presente artigo refere-se à análise acerca da presença de aspectos do Direito Penal do Inimigo, tese de Gunther Jakobs, na execução da pena do público feminino no Brasil, mais detidamente no Estado de Rondônia. Nesse sentido, busca-se expor a teoria do Direito Penal do Inimigo, bem como a finalidade da pena no Brasil, correlacionando tais teorias com os números que retratam a insuficiente garantia dos direitos das mulheres na Execução da Pena em Rondônia. A retratação do presente assunto se faz importante devido a imprescindibilidade de concretização dos direitos fundamentais às mulheres, em virtude da necessidade de proteção aos seus filhos, cuidados pessoais, cuidados gestacionais, bem como pela proteção legislativa contemporânea conferida a esse público carcerário. O impasse da questão em pauta se refere ao possível ferimento direto dos direitos das mulheres pela ausência de políticas públicas estatais eficientes, culminando na aplicação indireta do Direito Penal do Inimigo. O presente texto tem a finalidade de analisar a aplicação deste pressuposto do funcionalismo penal, indicando sobre a incidência de seus aspectos na execução da pena brasileira. A metodologia utilizada baseia-se em pesquisa aplicada, com abordagem dedutiva, qualitativa e quantitativa, com objetivo explicativo e propósito de propor pesquisa diagnóstico através de método auxiliar experimental. Conclui-se, portanto, que o descumprimento em concreto da legislação aplicável às mulheres na execução da pena no Estado de Rondônia implica na incidência indireta de aspectos do Direito Penal do Inimigo, em que pese não se admita na jurisprudência do Superior Tribunal Federal a incidência dessa teoria.

Palavras-chave: Direito Penal do Inimigo; Execução da Pena; Mulheres; Direitos Fundamentais.

ABSTRACT: This article refers to the analysis about the presence of aspects of the Criminal Law of the Enemy, Gunther Jakobs’s thesis, in the execution of the sentence of the female public in Brazil, more specifically in the State of Rondônia. In this sense, we seek to expose the theory of the Criminal Law of the Enemy, as well as the purpose of the sentence in Brazil, correlating these theories with the numbers that portray the insufficient guarantee of women’s rights in the Execution of the Sentence in Rondônia. The retraction of the present subject is important due to the indispensability of realizing the fundamental rights of women, due to the need to protect their children, personal care, gestational care, as well as the contemporary legislative protection conferred to this prison public. The obstacle in question refers to the possible direct harm to women’s rights due to the absence of efficient state public policies, culminating in the indirect application of the Criminal Law of the Enemy. This text aims to analyze the application of this assumption of penal functionalism, indicating the incidence of its aspects in the execution of the Brazilian sentence. The methodology used is based on applied research, with a deductive, qualitative and quantitative approach, with an explanatory objective and the purpose of proposing applied research. It is concluded, therefore, that the concrete non-compliance with the legislation applicable to women in the execution of the sentence in the State of Rondônia implies the indirect incidence of aspects of the Criminal Law of the Enemy, in spite of not admitting in the jurisprudence of the Superior Federal Court the incidence of that theory.

Keywords: Enemy’s Criminal Law; Sentence Execution; Women; Fundamental Rights.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho está inserido no âmbito do Direito Penal, do Direito Processual Penal, mais notadamente no âmbito que sucede o exercício do jus puniendi por parte do Estado, ou seja, no cenário da execução da pena. O texto se conecta com o Direito Penal Constitucional e com o Direito Estrangeiro na medida em que traz as tendências do mundo contemporâneo no tratamento do indivíduo enquanto sujeito de direitos e parte no processo de aplicação e execução da pena.

Nesse cenário, em virtude da constante discussão a respeito da execução da pena no Brasil, existe preocupação com a garantia de uma aplicação de pena digna para o público feminino, em virtude das especificidades que lhe são inerentes. Assim, em virtude das dificuldades apresentadas na consecução dos fins da pena com a adoção do modelo de execução da pena atual, busca-se expor o conceito da teoria contemporânea do Direito Penal do Inimigo, de Gunther Jakobs (Jakobs; Meliá, 2012), apresentando seus principais aspectos e características, fazendo uma correlação com a realidade brasileira.

Além do mais, objetiva-se conhecer as finalidades da pena e como ela tem se modificado com o passar do tempo, principalmente em razão das teorias modernas introduzidas desde o final do século XX. Com isso, busca-se correlacionar, a partir dos dados trazidos pelo Informativo Penitenciário (INFOPEN) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), qual tem sido o tratamento dispensado pela Administração do Estado de Rondônia, por ser o ente federativo de residência deste pesquisador, para garantir, às mulheres, uma execução da pena que obedeça o disposto na Constituição Federal de 1988, bem como se essas ações por parte do Poder Público guardam algum liame subjetivo com a teoria exposta pelo autor supracitado.

Assim, seria possível mencionar que existem aspectos concretos acerca da aplicação dessa teoria no âmbito da execução da pena no que tange ao público feminino no Estado de Rondônia?

O Supremo Tribunal Federal (Brasil. Supremo Tribunal Federal – Segunda Turma. Habeas Corpus nº 85.531-SP. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 22 de março de 2005), o Superior Tribunal de Justiça (Brasil. Superior Tribunal de Justiça – Sexta Turma. Habeas Corpus nº 665.401-SP. Relatora: Ministra Laurita Vaz. Brasília, 16 de junho de 2021) e a doutrina (Lopes Jr., 2017, p. 865) (Roig, 2018, p. 177) não reconhecem a aplicação dessa espécie de funcionalismo sistêmico no Brasil, por considerá-la incompatível com o Estado Democrático de Direito, em razão da adoção de medidas limitadoras de direitos e garantias fundamentais. No entanto, como há de se expor, as circunstâncias atuais de cumprimento da pena das mulheres no âmbito dos Estados, mais especificamente do Estado de Rondônia, têm sido cada vez mais degradantes ante a desestruturação e despreparo dos órgãos públicos e privados de assistência e auxílio nesse aspecto, evidenciando, implicitamente, a incidência do tratamento das apenadas como se fossem inimigas do Estado.

Justifica-se o debate e o aprofundamento neste tema em virtude da contemporaneidade do conceito de Direito Penal do Inimigo, bem como em virtude da crescente expansão do Direito Penal, contrapondo a baliza principiológica da Constituição Federal de 1988. É ainda mais relevante analisar o tema sob o prisma do público carcerário feminino, que sofre desde os primórdios de seu surgimento no âmbito prisional, pela ausência de políticas públicas efetivas e um efetivo descuido com esse público (Oliveira, 2018, p. 71-72).

A justificativa da pesquisa está ligada com a exigência de garantia do equilíbrio social oriundo da execução da pena, em que se busca uma reintegração do cidadão preso à sociedade após o cumprimento da sua pena, circunstância essa que envolve todo o aparato criminal estatal concernente ao exercício do direito de punir. Nesse sentido, se não são adequadas as condições oferecidas pelo Estado, a execução da pena deixa de atender às suas finalidades precípuas e passa a ser mais um fardo para a máquina estatal, já inflada e insuficiente quando da execução de políticas crimino-sociais, como há de se evidenciar.

Os dados do Informativo Penitenciário (INFOPEN) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) têm escancarado, atualmente, a ausência de investimento e empenho no fornecimento de direitos básicos para as mulheres, como infraestrutura, saúde, assistência material, entre outros. Para atingir os resultados propostos, a metodologia utilizada consiste em pesquisa aplicada, com abordagem hipotético-dedutiva, quantitativa e qualitativa, objetivo descritivo e propósito de propor pesquisa diagnóstico através de método auxiliar experimental.

Outrossim, o presente trabalho está dividido em três partes. No primeiro capítulo, busca-se trazer o caráter de expansão do Direito Penal e expor acerca do funcionalismo penal de Gunther Jakobs, tratando sobre a origem do Direito Penal do Inimigo e a sua autoria conceitual, além das características que lhe são inerentes. Por derradeiro, demonstra-se a inserção, do Direito Penal do Inimigo, na Teoria das Velocidades do Direito Penal, bem como a influência dessa teoria no Brasil.

No capítulo intermediário, há uma abordagem acerca da finalidade da pena no Brasil, complementada com a influência advinda dos princípios orientadores da execução da pena. Ademais, cumpre exprimir a natureza da execução penal e de seus fins. Por último, expõe-se a atual situação da execução da pena no país, abordando o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o reconhecimento do Estado Inconstitucional de Coisas na Execução da Pena.

O terceiro e derradeiro capítulo, por sua vez, empenha-se em abordar a realidade da execução da pena das mulheres no Brasil e mais detidamente no Estado de Rondônia. Nesse sentido, citam-se disposições legais nacionais e internacionais recentes que norteiam a proteção normativa conferida a essa minoria carcerária em virtude das suas características específicas. A partir disso, considerando os dados trazidos pelo Conselho Nacional de Justiça e pelos Informativos Penitenciários da Secretaria Nacional de Políticas Penais, resta evidenciada a disparidade entre as normas jurídicas em abstrato e a realidade, sendo proposta uma discussão a respeito do que tem sido feito nos últimos anos para mudar essa situação.

2 DIREITO PENAL DO INIMIGO E POLÍTICA CRIMINAL

Especialmente após a segunda metade do século XX, tem-se notado uma política criminal pautada na expansão do Direito Penal como protagonista na resolução dos conflitos sociais e na manutenção da ordem jurídica. Por isso, está havendo, principalmente nos países ocidentais, uma atividade legislativa penalista tendente à criminalização do estado prévio à prática do crime, com a adoção de preceitos secundários desproporcionais e uma inflação de leis penais que abrangem as mais diversas condutas (Jakobs; Meliá, 2012, p. 52-54).

Isso tem ocorrido, naturalmente, em razão de sociedades preocupadas com novos interesses sociais e culturais, bem como pelo aparecimento de novos riscos oriundos da globalização e da integração supranacional, ambos inerentes ao progresso da humanidade (Jesus-Maria, 2013, p. 10-12). Como consequência disso, o período referente ao primeiro quadrante do século, no Direito Penal, tem se fundado na tipificação vaga de novos bens e interesses, além da utilização inadequada da técnica legislativa para tipificar delitos de perigo abstrato (De Moraes, 2006, p. 32-35).

2.1 FUNCIONALISMO PENAL

A escola funcionalista, objeto deste estudo, tem se tornado mais relevante após a metade do século XX, em virtude da necessidade de legitimação e mudança no ramo das ciências penais (Hassemer, 1993, p. 27-28). Como o próprio nome sugere, o funcionalismo busca direcionar a dogmática penal em conformidade com as funções político-criminais postas em prática pelo Direito Penal, destinando-se a resguardar a eficácia do sistema social como um todo (De Moraes, 2006, p. 101). Nisso, busca-se conferir sentido ao delito, bem como explanar sua epistemologia, propondo soluções e aplicações concretas (Greco, 2022, p. 889).

No que concerne ao funcionalismo, a doutrina aponta a existência de três linhas básicas referentes ao conceito, que são: a) funcionalismo moderado, que é a teoria de Claus Roxin; b) funcionalismo limitado, corroborado por Santiago Mir Puig; c) funcionalismo radical ou sistêmico, abordado por Gunther Jakobs (De Moraes, 2006, p. 103).

Fatidicamente, há uma ênfase maior nos aspectos doutrinários trazidos por Roxin e Jakobs, ante suas diferenças e ênfases. Claus Roxin, em seu aspecto moderador, está efetivamente preocupado com os fins do Direito Penal, pois prioriza aspectos garantistas a partir da proteção de bens jurídicos imprescindíveis ao desenvolvimento das sociedades como um todo, sem ultrapassar os limites inerentes ao respeito dos direitos e garantias fundamentais.

Gunther Jakobs, noutra via, respaldando-se nos estudos de Niklas Luhmann, traz a perspectiva do funcionalismo sistêmico, que é satisfeita com os fins da pena e leva em conta a imposição de garantia da identidade normativa das sociedades a partir da reafirmação do Direito, assegurando os valores éticos e sociais da ação (Masson, 2020. p. 86). É efetivamente a busca pela manutenção da realidade social. (Jakobs; Meliá, 2012, p. 69)

De Moraes, assentando a ideia de Bacigalupo, afirma que o Direito Penal tem a missão de garantir normas, que são resultado de um esforço histórico e construtivo das sociedades. Nesse sentido, o autor de um fato ilícito, ao quebrar a expectativa de funcionamento regular da sociedade, traz a ela instabilidade social, estando em condição de infidelidade ao Direito (De Moraes, 2006, p. 108-110), devendo ser tratado de forma diversa dos cidadãos comuns. Nesse sentido, Jakobs busca ratificar a atuação de combate, pelo Estado, aos indivíduos considerados como especialmente perigosos, definindo a práxis das ações reativas.

2.2 O INIMIGO E SUAS CARACTERÍSTICAS

De forma controversa, mas fática, o Direito Penal do Inimigo se ampara na possibilidade de coexistência de um Direito Penal aplicado para os cidadãos e outro para os inimigos (Junqueira; Vanzolini, 2019, p. 270), como uma forma de tentar combater indivíduos especialmente perigosos considerando o significativo aumento de casos envolvendo terrorismo e criminalidade organizada. Assim, o Estado deixa de dialogar com cidadãos e passa efetivamente a ameaçar seus inimigos (Jakobs; Meliá, 2012, p. 62-63).

Esse inimigo, em síntese, é a pessoa que abandonou o Direito de forma duradoura pela prática reiterada de crimes graves, não demonstrando ao Estado que o seu comportamento oferece condições mínimas de segurança para as sociedades (Estefam; Rios Gonçalves, 2016, p. 184). Nisso, busca-se negar ao sujeito a sua condição de pessoa, concedendo-lhe um tratamento somente de ente/coisa perigoso(a) (Zaffaroni, 2007. p. 18).

As principais características desse ramo do Direito Penal são: ampla antecipação da punibilidade, severidade das penas, visão do infrator a partir do ideal de periculosidade, adoção de legislação mais combativa, restrições processuais arbitrárias, dentre outros aspectos (Estefam; Rios Gonçalves, 2016, p. 184).

Pela consideração acima, é possível deduzir pela ocorrência de um Direito Penal prospectivo, voltado para o futuro, que cerceia a liberdade dos indivíduos, retirando-lhe o caráter de cidadão e deixando de considerar os fatos praticados para apreçar o Direito Penal do autor (Masson, 2020, p. 94). Ante a especificidade inerente ao presente trabalho, que trata da execução da pena, há de se conferir maior relevância: a) Ao caráter de possível restrição das garantias penais e processuais, no âmbito da Lei de Execuções Penais; b) Da ineficácia das regulações penitenciárias ou de execução penal, a exemplo do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), modificado recentemente pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime), c) À aplicação de penas desproporcionalmente altas frente a crimes de média ou baixa gravidade (De Moraes, 2006. p. 168/169).

Por fim, o Direito Penal do Inimigo protagoniza o cerne da chamada “terceira velocidade do direito penal”, que é uma espécie de aplicação da pena de prisão com a relativização de garantias e direitos fundamentais, restringindo-os. (Silva Sánchez, 2013, p. 90)

2.3 DIREITO PENAL DO INIMIGO NO BRASIL

Na esfera penal brasileira, beira à unanimidade a não aceitação do Direito Penal do Inimigo, sendo diversas as críticas apontadas pela doutrina (Lopes Jr., 2017, p. 865) (Zaffaroni, 2007, p. 22) (Roig, 2018, p. 177), pela desumanização trazida por essa teoria geral do delito. Esse também é o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, de forma explícita (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 638.930-SP. Relator: Ministro Antonio Saldanha Palheiro. Brasília, 27 de abril de 2021).

De forma generalizada, aponta-se que aspectos do Direito Penal do Inimigo estão presentes nas recentes modificações legislativas de âmbito penal, em razão da proeminência do Direito Penal simbólico como solução dos problemas sociais advindos da criminalidade. Seriam exemplos: Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013 (Lei de Organização Criminosa) e Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime) etc (Bagli da Silva, 2016).

Ademais, vê-se o Direito Penal do Inimigo como claramente inconstitucional, pois só é possível trazer ao ordenamento jurídico medidas excepcionais em tempos anormais (Gomes, 2005, p. 2). Nisso, criaria-se uma distinção entre cidadãos que não está prevista na Constituição Federal, ferindo diretamente o fundamento da dignidade da pessoa humana, exposto no artigo 1º da Carta Magna, bem como seus consectários legais. Com isso, a lógica de guerra adotada por esta teoria, reversa ao processo democrático, não se coaduna com o Estado Democrático de Direito. Mais a mais, levar em consideração o que o indivíduo é e não o que ele fez, para expressar o jus puniendi do Estado, perfaz-se em uma interpretação intolerável em um Estado visto como democrático de direito (Junqueira; Vanzolini, 2019. p. 94).

Zaffaroni rebate os fundamentos jusfilosóficos de Jakobs trazendo uma perspectiva efetivamente contrária à da aplicação do Direito Penal do Inimigo sob a égide de um Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, não é legítimo admitir uma exceção que deixe de tratar o indivíduo enquanto cidadão, opondo-o ao próprio sistema constitucional. (Zaffaroni, 2007, p. 189-190).

Outrossim, por não se definir de forma mais precisa e metodológica um critério social de exclusão desses inimigos, acaba-se por restringir os direitos de todos os cidadãos. Nisso há uma inversão do propósito do estado democrático de direito, visto que os inimigos acabam influenciando a fruição de direitos dos cidadãos. (Zaffaroni, 2007, p. 191-192).

3 EXECUÇÃO DA PENA E CUMPRIMENTO DAS SUAS FINALIDADES NO CENÁRIO BRASILEIRO

A pena, prevista pelo Código Penal e aplicada no âmbito da Lei de Execuções Penais, pode ser conceituada como sendo a resposta do Estado ao praticante de uma infração penal, após todo o devido processo legal (Masson, 2020, p. 459). Nessa perspectiva, imputa-se ao indivíduo algum tipo de restrição ou limitação no exercício dos seus direitos.

São três as vertentes para direcionar a funcionalidade da pena, sendo elas: a) absoluta; b) relativa; c) unificadora/eclética. Nesse sentido, a absoluta tem um condão meramente retributivo, buscando punir o infrator pelo mal causado. A relativa, por sua vez, direciona-se a intimidar o indivíduo e evitar que novos delitos sejam cometidos. A mista ou eclética, por fim, apresenta-se como alternativa sui generis e ressalta a dupla finalidade da pena, de punir e prevenir a prática de novas condutas delituosas (Estefam; Rios Gonçalves, 2016, p. 511).

A teoria de Jakobs, abordada no capítulo anterior, tem foco na teoria preventiva, decorrente da partição teórica que se chama prevenção geral positiva. Nessa conjuntura, a finalidade preventiva é alcançada por meio de um recado dirigido às sociedades, reafirmando a vigência do sistema normativo e gerando estabilidade e segurança ao ordenamento jurídico. Denomina-se por prevenção geral positiva fundamentadora a trazida essencialmente por Jakobs, baseando-se na teoria dos sistemas sociais de Luhmann (Junqueira; Vanzolini, 2019, p. 440). Para ele, as normas jurídicas servem como orientação de conduta aos cidadãos, de modo a estabilizar as experiências sociais (Estefam; Rios Gonçalves, 2016, p. 345).

3.2 PRINCÍPIOS ESPECIFICAMENTE ORIENTADORES DE UMA EXECUÇÃO PENAL DIGNA

Parte da doutrina aponta que os princípios penais e de processo penal são tão somente compartilhados com o Direito de Execução Penal, não havendo arcabouço principiológico próprio nesse âmbito do Direito (Nucci, 2018, p. 16). No entanto, percebe-se como limitada essa compreensão, tendo em vista que a Constituição Federal trata expressamente de direitos previstos para os presos condenados, processados sob a égide da Lei de Execução Penal.

Sobre os princípios em si, proeminente é o da humanidade, derivado da dignidade da pessoa humana, que é fundamento da República Federativa do Brasil, conforme artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Esse princípio recebe mais ênfase após a segunda guerra mundial, principalmente, em virtude das atrocidades cometidas pela Alemanha nazista. Neste aspecto, há uma maior efetiva preocupação com a dignidade da pessoa humana, fundamento implícito deste postulado.

No Brasil, isso foi ainda mais sedimentado a partir da Constituição federal de 1988 e de tratados internacionais, a exemplo do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado pela Resolução n. 2.200 A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966 e ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992. Nisso, o postulado da humanidade busca desvincular-se de uma história civilizatória pautada na aplicação de punições cruéis, desumanas e degradantes, por serem elas incompatíveis com a dignidade humana, ofendendo costumeiramente o direito daqueles submetidos ao poder do Estado (Goulart, 1998, p. 109-110).

O princípio da não marginalização das pessoas presas ou internadas, mais a mais, prega que há de ser combatida a ação, pelo Estado, de, além de limitar a liberdade, suprimir ou reduzir outros direitos fundamentais das pessoas presas. É o que se chama de violação colateral dos direitos fundamentais, quando um direito é restringido e acarreta à restrição de outros inicialmente não previstos (Roig, 2018, p. 27). O objetivo deste princípio, enquanto vetor interpretativo, é o de proporcionar atenção diferenciada para uma população carcerária que assim o é naturalmente, evitando-se a reiteração de ilegalidades e a violação de direitos no âmbito do sistema prisional (Roig, 2018, p. 30).

O princípio da proporcionalidade, ademais, não é previsto expressamente no âmbito do Direito Constitucional brasileiro. Em seu cerne, busca uma medida de solução ao caso em que se aplica de tal modo que ela seja adequada, necessária e proporcional em sentido estrito. No âmbito da execução penal, diversas são as situações em que a razoabilidade, a proporcionalidade e a isonomia trabalham em conjunto para certificar que a norma jurídica atinge, da melhor forma, o fim que pretende. É o caso, por exemplo, do menor prazo prescricional para as infrações disciplinares cometidas no âmbito da Lei de Execuções Penais, nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Roig, 2018, p. 42-43).

Por derradeiro, mas com relevante sobressalência, o princípio da individualização da pena está expressamente citado no artigo 5º, XLVI, da Constituição federal de 1988. Esse princípio tem um grau de complexidade elevado, pois se manifesta no âmbito dos três poderes. No legislativo, deve ser observado a partir da descrição do crime, estabelecendo um preceito secundário adequado, indicando os limites da pena e suas circunstâncias agravantes e atenuantes, quando for o caso. O cenário judicial do princípio, concretizado pela atividade do magistrado, ocorre mediante a aplicação da pena, respeitado o critério trifásico previsto pelo Código Penal no artigo 59 (Masson, 2020, p. 43). Nisso, afirma-se que a execução da pena é momento primordial para a concretização do mencionado princípio, uma vez que só nesse momento é possível adaptar a pena à personalidade do sujeito (De Brito, apud Santoro, 2020, p. 39).

3.3 NATUREZA DA EXECUÇÃO PENAL E SEUS FINS

 Não há pacificidade no que concerne à natureza jurídica da execução penal brasileira. Isso porque, neste ramo, desenvolvem-se atividades de natureza complexa que demandam tanto o juiz da execução penal como os atores da administração penitenciária. A corrente doutrinária prevalente tem adotado uma tendência pela teoria mista, com ênfase ao aspecto jurisdicional, tendo em vista a possibilidade de discutir as nuances de legalidade relativa aos atos administrativos. Nas palavras de Avena (2014, p. 23): “a atividade de execução penal desenvolve-se nos planos administrativo e jurisdicional, havendo, porém, a prevalência deste último.”

A execução penal tem duas finalidades similares às da pena. A primeira refere-se à eficácia da execução da pena, com a submissão do condenado à sanção imposta pelo Estado, de forma que este saiba filtrar os valores sociais e, assim, amadurecer em busca da convivência social pacífica (De brito, 2020, p. 32). A segunda, mais relevante para o escopo presente, empenha-se em garantir que essa execução paute-se pelo devido processo legal e respeito à dignidade humana, para que qualquer “recuperação” ou “formação” do condenado tenha legitimidade (De brito, 2020, p. 33).

3.4 PRECARIEDADE DA EXECUÇÃO DA PENA NO BRASIL E ESTADO INCONSTITUCIONAL DE COISAS

Os problemas inerentes à execução da pena são de conhecimento público e têm sido abordados pelos mais diversos órgãos de justiça criminal, estejam ou não previstos na Lei de Execuções Penais, a exemplo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias (CNPCP). O Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária (PNPCP) mais recente afirma taxativamente que a gestão eficiente do sistema penitenciário é uma questão de segurança pública (Brasil, Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias, 2019). 

O CNJ, semelhantemente, em visitas aos estabelecimentos prisionais em 2022, reconhece “irregularidades causadas pela grave superlotação que culmina em uma totalidade de deficiências, com destaque ao precário acesso à justiça nos estabelecimentos prisionais.” (Conselho Nacional de Justiça, 2022, p. 60).

Dessa forma, reconhece-se que há, no sistema prisional brasileiro, um quadro de violação de direitos de forma generalizada. À vista disso, o CNJ instituiu o programa Justiça Presente, que tem por finalidade enfrentar as problemáticas inerentes às questões estruturais dos sistemas penais e socioeducativos, garantindo dignidade e cidadania às pessoas privadas de liberdade (Conselho Nacional de Justiça, 2022, p. 47).

Ademais, o Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto órgão guardião da Constituição federal, exercendo a competência prevista no artigo 102, §1º, da Constituição Federal, cumulada com a Lei nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999, teceu considerações importantes quanto ao cenário enfrentado pelo Estado brasileiro como um todo e seus três poderes, no que tange à execução penal. Assim, no âmbito da Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347 que o STF reconheceu a figura do Estado de Coisas Inconstitucional.

CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347-DF. Requerente: Partido Socialismo e Liberdade. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, 09 de setembro de 2015).

Pelo exposto, em que pese o esforço dos Poderes Públicos na elaboração de políticas públicas diversas, além da tentativa de reformulação do sistema de justiça criminal como um todo, os problemas do sistema de execução da pena persistem, reforçando o caráter de falência do modelo de ressocialização em vigor no país.

4 MULHERES E A EXECUÇÃO DA PENA NO BRASIL E EM RONDÔNIA. REGRAS DE BANGKOK. ESBOÇO NORMATIVO ATUAL. DADOS DO CNJ E DO INFOPEN

Nos termos da legislação em vigor, é possível afirmar que a visão construtora de direitos específicos às mulheres se aprimorou consideravelmente nos últimos anos. No entanto, em razão da disparidade quantitativa entre homens e mulheres, o sistema penitenciário brasileiro ainda marginaliza o público feminino (Dentes, 2017, p. 55).

Historicamente, as mulheres só começaram a ter os seus direitos pensados e respeitados a partir de 1940, quando da edição do Código Penal atualmente em vigor, por meio da disposição prevista no seu artigo 29, §2º, que trazia: “As mulheres cumprem pena em estabelecimento especial, ou, à falta, em secção adequada de penitenciária ou prisão comum, ficando sujeitas a trabalho interno”. Tal disposição, embora atualmente esteja revogada, ensejou uma crescente de medidas legislativas e executivas a fim de tentar garantir às mulheres uma execução penal digna (Artur, 2009, p. 02-03).

Nesse sentido, é fato que o cárcere feminino ultrapassa as barreiras da questão de gênero, em virtude do seu aspecto complexo e plurifacetado. Por isso, incluem-se, também, questões de cunho social e racial, que influenciam na análise deste objeto, como a análise de critérios de renda e o cárcere, bem como a maioria negra e parda que o compõe. Tal influência pode ser percebida por intermédio da maior quantidade de pessoas com essas características submetidas ao poder de punir estatal.

Atualmente, a baliza normativa para a garantia de direitos das mulheres na execução da pena é o Tratado Internacional das Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade, também conhecido como “Regras de Bangkok”, do qual o Brasil participou da elaboração e é signatário.

Nos termos apresentados pelo CNJ, o encarceramento feminino merece destaque muito em virtude do crescimento exponencial dessa população carcerária, que, no período de 2000 a 2014 sofreu aumento de mais de 500%. Outrossim, é ratificado o caráter específico da demanda carcerária das mulheres, agravado pelo incidente contexto de violência doméstica, perda financeira ou uso de drogas (Conselho Nacional de Justiça, 2016, p. 10-11).

O intuito do referido tratado internacional, que embora não tenha sido incorporado ao ordenamento jurídico pátrio na condição de Emenda Constitucional, é o de abordar a especificidade biológica das mulheres, as suas circunstâncias no cárcere e a hipótese de sua prorrogação no tempo.

Sob a influência da mencionada legislação supranacional, muito se tem inovado no contexto da execução penal para o gênero feminino, senão vejamos.

  • Lei nº 11.942/2009 – Altera a LEP a fim de assegurar às mães presas e aos recém-nascidos condições mínimas de assistência;
  • Decreto nº 8.858/2016 – Impede, em qualquer caso, o emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema penitenciário nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada;
  • Resolução nº 252/2018 do CNJ – Estabelece princípios e diretrizes para o acompanhamento das mulheres mães e gestantes privadas de liberdade;
  • Lei nº 13.769/2018 – Estabelece requisitos diferenciados de substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência e disciplina o regime de cumprimento de pena privativa de liberdade de condenadas na mesma situação;
  • Lei nº 14.326/2022 – Altera a LEP com o objetivo de assegurar à mulher presa gestante ou puérpera tratamento humanitário antes e durante o trabalho de parto e no período de puerpério, bem como para prever a obrigação do poder público de promover a assistência integral à sua saúde e à do recém-nascido;

Em que pese as disposições normativas supracitadas, é sabido que o período atual tem sido marcado por um simbolismo legislativo, que suprime direitos e garantias dos indivíduos (Silva, 2011, p. 44) e marcha no sentido contrário à dignidade da pessoa humana, isso porque como será visto no próximo tópico, tais disposições não se concretizam na prática.

4.1 DADOS ESTATÍSTICOS E RONDÔNIA. DESCUMPRIMENTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS MULHERES. NÃO CONCRETIZAÇÃO DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS

Tendo em vista toda a proteção legislativa supracitada conferida às mulheres, buscou-se aqui realizar a análise dos dados disponibilizados pelo levantamento de informações penitenciárias, publicadas pela Secretaria Nacional de Políticas Penais em seu site oficial (Secretaria Nacional de Políticas Penais, 2022), para verificar se têm sido obedecidos os pressupostos legais e morais do acesso humanizado e individualizado das mulheres ao cárcere, em virtude das necessidades que lhe são inerentes. Para tanto, foram examinados os dados trazidos pela Secretaria Ministerial referente ao 12º ciclo de dados, que é referente ao ano de 2022, entre os meses de janeiro e junho. Desse modo, foram encontradas informações relevantes, que serão expostas abaixo (Secretaria Nacional de Políticas Penais, 2022).

Preambularmente, foram analisados no referido Estado 53 estabelecimentos penais ao todo, sendo que mais da metade deles (29) são destinados somente ao público masculino. De fato, isso ocorre em razão de menos de 5% da população do Estado ser do gênero feminino, havendo 429 presas para 8.489 presos (Secretaria Nacional de Políticas Penais, 2022).

Ademais, dos 24 estabelecimentos penais mistos ou destinados ao público feminino, apenas 1 deles possui berçário e/ou centro de referência materno-infantil, que é localizado na capital, Porto Velho/RO. Nisso, já se vê uma estagnação quanto aos dados de 2017 analisados anteriormente, mesmo após 5 anos. Percentualmente, não se chega nem a 5% da quantidade de estabelecimentos penais mistos ou femininos com essa característica(Secretaria Nacional de Políticas Penais, 2022).

Quanto às creches, que também é uma exigência estabelecida pela Lei de Execuções Penais, a situação é ainda mais caótica, pois nenhum dos estabelecimentos dota de tal estrutura(Secretaria Nacional de Políticas Penais, 2022). Ou seja, existe tão somente como previsão legal abstrata, pois não dota de exequibilidade, evidenciando mais uma restrição ao direito das mulheres de permanecer com seus filhos durante o período do cárcere. Nisso, vai-se além da privação da liberdade, a partir do momento em que fere o direito das crianças de se desenvolver plenamente, igualmente de acordo com o artigo 9º da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

O direito de visita também merece destaque, pois apenas 8 dos 23 estabelecimentos possuem local específico para a realização da visitação, ou seja, menos de 35% dos estabelecimentos prisionais. Na maioria deles, o espaço referente ao da tomada do banho de sol é utilizado para tal fim, por ausência de infraestrutura, como consta no relatório do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária de 2011 (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, 2011, p. 05).

Outro problema ainda recorrente é o das prisões provisórias, que surgem com caráter antecipativo da pena, desvirtuando-se da sua real finalidade. Nesse aspecto, o ordenamento jurídico pátrio dispõe, no artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Civil, da responsabilidade de revisão da prisão preventiva a cada 90 dias.

Conforme o supracitado parágrafo único, a responsabilidade para revisão é do órgão expedidor da decisão, ou seja, do magistrado competente. No entanto, ainda assim, dos 23 estabelecimentos em análise, 19 deles sequer têm controle sobre quantos presos provisórios têm mais do que 90 dias de prisão (Secretaria Nacional de Políticas Penais, 2022). Isto é, menos de 20% deles têm conhecimento do tempo de prisão preventiva de cada interno, restando ao magistrado, abarrotado de processos relacionado à execução penal, filtrar periodicamente tais casos, em que pese seja uma responsabilidade solidária nesse sentido, por se tratar de matéria de interesse público.

Pelo exposto, mostram-se evidentes: a ineficiência das políticas públicas de desencarceramento atualmente adotadas, a inércia do poder público para a efetiva resolução do problema, além da não atenuação dos efeitos extrapenais oriundos da própria condenação.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A expansão do Direito Penal para suprir dificuldades sociais não sanadas pela ineficácia das medidas de coerção adotadas pelo Estado tem evidenciado um caráter simbólico no atingimento da finalidade deste Direito. Nesse aspecto, teorias diversas, como a do Direito Penal do Inimigo, tem tentado dar representação formal e fática ao delito, explicando qual é a função da norma penal e qual é o cunho de aplicação da pena.

Ocorre que essa teoria, por si só, não é admissível em um Estado Democrático de Direito, pois restringe direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, permitindo atos, por parte do Estado, relacionados à tortura, à ampla antecipação da punibilidade, a penas cruéis, dentre outros aspectos.

No mais, a finalidade da pena no Brasil, de cunho ressocializador, não cumpre o seu propósito de cercear a liberdade e/ou direitos dos cidadãos a fim de garantir um posterior retorno à sociedade sem a pretensão de cometer novos delitos, ainda que de forma isolada. Isso pode ser visto em parte considerável dos índices públicos apresentados pelo CNJ e pela SENAPPEN, em virtude da ineficácia das políticas públicas elaboradas pelos Estados, bem como pela ausência de eficácia material das normas expedidas pelos órgãos públicos responsáveis, como é o caso da Lei de Amamentação, Lei nº 11.942, de 28 de maio de 2009, e das Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e gestantes (Regras de Bangkok).

No entanto, percebe-se que há compatibilidade implícita entre o Direito Penal do Inimigo e a realidade da execução da pena do Brasil, pois, apesar de o sistema jurídico nacional buscar proteger e assegurar os direitos fundamentais, tais pressupostos não se aplicam na prática. O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, em que pese reconheçam o caos da segurança pública causado pela ineficiente execução da pena, inadmitem a aplicação do Direito Penal do Inimigo no Brasil.

No que tange às mulheres, os problemas não estão ligados unicamente às condições materiais e infraestruturais em razão da superlotação, que são obstáculos já conhecidos do sistema prisional nacional, mas sim às condições específicas relativas a esse público, como: a falta de um direito à saúde adequado, prestação de assistência social precária, descontinuidade da necessária estrutura para gestantes e lactantes, além da efetiva inexistência de creches nos estabelecimentos penais.

A título de  delimitação temática, foram analisados dados do Estado de Rondônia, sem deixar de se considerar também a amplificação dos efeitos da prisão provisória (preventiva/temporária), das quais não se tem sequer o controle do prazo.

Isto posto, concluiu-se que são visíveis os traços do Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico brasileiro, notadamente no Estado de Rondônia, com relação às mulheres, pois as medidas privativas de liberdade privam muito mais do que o direito à liberdade, sendo demasiadamente restritivas no que tange ao direito de visita, à saúde, à assistência social, à educação, dentre outros mais.

Fato é que há uma ampla violação aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana, balizas da Constituição federal de 1988, além de dispensar a finalidade da Lei de Execuções Penais, ainda mais quando considerada a hipótese da mulher gestante, puérpera ou lactante, que não tem condições mínimas de desenvolver um feto saudável nem de oferecer-lhe a conjuntura adequada para o seu pleno desenvolvimento enquanto criança. Nisso, não podem elas ser indiscutivelmente vistas como cidadãs, senão como inimigas indiretas do Estado, em virtude da privação arbitrária dos seus direitos.

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[1] Brasileiro. rafaeldm47@gmail.com. Graduando em Direito pela Universidade São Lucas, em Porto Velho/RO, Policial Penal Federal.

[2] Brasileiro. fabriciodireito@gmail.com. Advogado. Especialista em Direito do Consumidor e Relações de Consumo (UNP), Direito Eletrônico (Estácio), Direito Autoral e Propriedade Intelectual (Uniamérica), Direito Educacional (Uniamérica), Publicidade e Propaganda: mídias, linguagens e comportamento do consumidor (Intervale), Marketing Digital (Intervale), Docência no Ensino Superior (FMU), Metodologias em Educação a Distância (Intervale) e Metodologia da Pesquisa Científica (FACSU). Mestre em Direito (UFRN). Mestre e Doutor pela Universidad del País Vasco / Euskal Herriko Unibertsitatea (UPV/EHU) – Espanha. Líder do Grupo de Pesquisa Direito das Relações de Consumo. Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Direito das Relações de Consumo (LABRELCON). Professor da Graduação e Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro de Ciências Sociais Aplicadas (CCSA). Avaliador do INEP/MEC. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4247505371266682. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-8230-0730. E-mail: fabriciodireito@gmail.com.

[3] Brasileiro. edivaldo.genova@saolucas.edu.br. Graduado em FARMÁCIA-BIOQUÍMICA pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1987) e em CIÊNCIAS JURÍDICAS pela Universidade Católica Dom Bosco (1999). Major Farmacêutico do Exército Brasileiro da reserva não remunerada, Especialista em Direito de Policia Judiciária. Professor de Direito Penal e Criminologia no Centro Universitário São Lucas. Delegado de Polícia Federal. Corregedor Regional da Polícia Federal em Rondônia.