A EFICÁCIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO À LUZ DO PRAGMATISMO: UMA ANÁLISE ACERCA DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER

A EFICÁCIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO À LUZ DO PRAGMATISMO: UMA ANÁLISE ACERCA DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER

10 de junho de 2023 Off Por Cognitio Juris

THE EFFECTIVENESS OF BRAZILIAN CRIMINAL LAW IN THE LIGHT OF PRAGMATISM: AN ANALYSIS OF GENDER VIOLENCE AGAINST WOMAN

Artigo submetido em 02 de junho de 2023
Artigo aprovado em 07 de junho de 2023
Artigo publicado em 10 de junho de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 47 – Junho de 2023
ISSN 2236-3009

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Autor:
Thais Rezende Bora[1]

Resumo: O presente artigo trata das urgências sociais – presentes nos tempos atuais – no tocante à violência de gênero e, como resposta, alguns avanços da tipificação penal à luz do pragmatismo. O principal objetivo deste trabalho é analisar como o pensamento pragmatista (em oposição ao positivista) se mostra mais eficaz na investigação de crimes de Violência de Gênero contra a Mulher. Para tanto, busca-se, inicialmente, definir – ainda que de modo resumido – o pragmatismo e expor as características elementares do pensamento pragmatista, para, em seguida, relacioná-lo à efetividade do direito penal brasileiro. Em sequência, passa-se à análise especifica da violência de gênero contra a mulher e dos avanços legais referentes ao tema (por exemplo, a Lei nº. 11.340/2006 – Lei Maria da Penha – e a Lei 13.104/2015 – Lei do Feminicídio).

Palavras-chave: Pragmatismo; Direito Penal; Violência de Gênero;

Abstract: This article deals with the social urgencies – present in current times – regarding gender violence and, in response, some advances in penal classification in the light of pragmatism. The main objective of this work is to analyze how pragmatist thinking (as opposed to positivist) is more effective in investigating crimes of Domestic Violence against Women. Therefore, it is initially sought to define – albeit briefly – pragmatism and to expose the elementary characteristics of pragmatist thinking, to then relate it to the effectiveness of Brazilian criminal law. Next, we move on to the specific analysis of gender violence against women and the legal advances related to the subject (for example, Law No. 11,340/2006 – Maria da Penha Law – and Law 13,104/2015 – Femicide Law).

Key-words: Pragmatism; Criminal Law; Domestic violence against women;

Introdução

          O presente trabalho tem como objetivo a análise das particularidades do pensamento pragmatista como forma de garantia da eficácia do Direito Penal Brasileiro. Com esse intuito, procura-se revelar de que modo a apreciação do julgador – a partir da perspectiva do pragmatismo e em contraponto ao positivismo lógico-normativo – faz-se necessária para que o ordenamento jurídico penal brasileiro se mantenha alinhado com as necessidades sociais e caminhe paralelamente com os avanços das formas de criminalidade e com as particulares formas de ofensas aos bens jurídicos tutelados.

          Desta forma, nota-se que o progresso na estruturação e nos crimes de violência de gênero contra a mulher caracterizam a necessidade do legislador, juntamente com o aplicador das leis penais, examinarem o contexto, bem como quais as consequências de aplicação de determinada norma. Tal exame deve verificar a solução mais eficaz possível na proteção ao bem juridicamente protegido – qual seja, dignidade, liberdade e vida da mulher. Em outras palavras, seria dizer que, se as formas de ofensa ao bem jurídico avançam, por consequência, os mecanismos de proteção também devem evoluir, evitando, assim, a proteção deficiente do bem jurídico. Com isso, a metodologia adotada será o método pragmatista.

          Com esse objetivo, a primeira parte do trabalho é composta por uma análise acerca das principais características do pensamento pragmatista, descrevendo, ainda, seu contraste quanto ao positivismo lógico-normativo. Na segunda parte, será avaliada a eficácia do Direito Penal Brasileiro, no tocante ao desempenho de sua função de proteção aos bens jurídicos tutelados, a partir do pensamento pragmatista. Com isso, a indagação central a ser respondida é se, não obstante o Direito Penal, em seu aspecto analítico, trabalhar com a subsunção do fato (típico, ilícito e culposo) à conduta humana supostamente criminosa, este ramo do Direito seria melhor analisado a partir do ponto de vista do pragmatismo, observando-se o contexto em que as normas penais foram criadas, em comparação ao atual contexto, para examinar o legislador e o julgador penais a necessidade de composição de novos tipos penais ou, ainda, de otimizar aqueles já existentes. Assim, na parte final serão observados o surgimento das novas figuras típicas penais na proteção às mulheres vítimas da violência doméstica no ordenamento jurídico brasileiro – incluindo a discussão a respeito da mulher trans, no intuito de tentar responder à questão central exposta anteriormente, e verificar se, de fato, a perspectiva pragmatista, especialmente de investigação do contexto e das consequências, ao invés de adotar o julgador uma postura contemplativa da realidade, por meio de uma utilização automatizada das leis, seria mais compatível com os interesses da sociedade, e garantiria, portanto, a melhor efetividade do Direito Penal Brasileiro.

1. O Pensamento Pragmatista: Definição e Características Elementares

          Originado nos Estados Unidos em meados do século XIX, o pensamento pragmatista remete ao movimento e mutabilidade da compreensão e estudo do Direito, conferindo, assim, maior valor à aplicação das normas jurídicas de forma condizente com os eventos práticos e as mudanças na sociedade, se comparada à forma literal como estão positivadas nos Códigos.

          Assim, as críticas que decorreram do pensamento Kelseniano e do positivismo lógico-normativo dirigiam-se para o abismo epistemológico criado entre existência e pensamento – que não era condizente com a realidade nem com a prática.

          Ao contrário do positivismo, o pragmatismo entende que a prática e a norma jurídica são indissociáveis entre si, de modo que o pleno entendimento da norma positivada somente será dimensionado após esta ser colocada em prática, com o propósito de que sejam observadas suas consequências. Observa-se, consequentemente, uma ruptura com a dicotomia do “ser” e do “dever-ser”.

          Por esta razão que, algumas das principais características do pragmatismo são, justamente, o antifundacionalismo, o contextualismo, o consequencialismo, e a interdisciplinaridade. Há, portanto, a necessidade de análise do contexto em que se insere a norma, a partir de fatos sociais, políticos, econômicos e históricos, no exaurimento da observação das consequências que a aplicação daquela norma poderá trazer àquela determinada sociedade, ao invés de adotar o julgador uma postura de aplicação automatizada de princípios norteadores do Direito e de normas consideradas supostas verdades absolutas – esta postura do julgador é popularmente conhecida como “juiz boca da lei”[2]. Em outras palavras: a epistemologia do pragmatismo está voltada para uma investigação, distanciando-se de conhecimentos puramente livrescos.

          Insta salientar, neste ponto, que o pensamento pragmatista não nega a aplicabilidade de leis e precedentes judiciais, ao contrário, defende que haja uma avaliação cautelosa por parte do julgador, a depender de cada caso concreto, de modo que esta aplicação legal não seja feita de maneira automática e impensada, mas sim, investigando-se as consequências e impactos desta decisão no contexto fático.

          Isto é, de nada interessaria a aplicação da lei de forma imprecisa e mecanizada, sem que fossem analisados seus impactos e consequências para a sociedade. Ou seja, seria a aplicação da lei simplesmente por aplicá-la, sem nenhum sentido maior.

          O pragmatismo – como vertente da filosofia – teve origem no Metaphysical Club, grupo de especulações filosóficas, liderado pelos filósofos Charles Sanders Peirce, William James, John Dewey, Oliver Wendell Holmes (jurista), entre outros. Os três filósofos fundadores do pragmatismo possuíam, contudo, visões particulares de como encarar o movimento.

          Charles Sandres Peirce, um dos filósofos mais reconhecidos na corrente pragmatista, defendia a fixação de “crenças”[3] (que seriam os pensamentos enraizados, consolidados e até imutáveis) como se fossem verdades satisfatórias, podendo tornar o indivíduo como que “cego” aos acontecimentos presentes, haja vista que esta crença não é capaz, por si só, de alterar a realidade. Em outras palavras, significa que o fato de determinado indivíduo acreditar genuinamente que não será contaminado por determinada doença, não tem a capacidade de evitar esta contaminação. Desta forma, apesar da esfera da crença lhe ser mais confortável, não significa que será condizente com a realidade.

          Outrossim, não se pode admitir que o Direito mantenha-se impermeável, engessado em leis criadas em contextos passados que não mais retratam as necessidades sociais atuais, sob pena de tornar-se absolutamente ineficaz à manutenção da ordem social e solução de confrontos.

          É nesta mesma linha que argumentam Bruno Salama e Mariana Pargendler[4]:

“Historicamente, reservou-se ao direito o papel de manter a ordem. Nos últimos séculos, em muitos lugares, inclusive no Brasil, agregou-se também um caráter progressivista, isto é: a função não apenas de manter a ordem, mas também de impulsionar a melhora, a mudança, o desenvolvimento, o avanço. O novo contexto exige do jurista um pensar para frente, uma visão prospectiva sobre o incentivo e sobre a pertinência entre meio e fim.”

          Essa primordialidade de “pensar para frente” mencionada pelos juristas supramencionados retrata o caráter do pragmatismo de observar o contexto e de questionar a forma de aplicação das normas, buscando evitar que o julgador adote uma postura meramente contemplativa da realidade (de apenas aplicar mecanicamente um texto legal a uma determinada conduta) e passe a adotar uma postura ativa, com a propósito de transformar a realidade de uma sociedade.

          Ainda, os referidos juristas:

“(…) Por isso, no contexto de Estado atual, ao interpretar e aplicar a lei, é necessário sopesar as prováveis consequências das diversas interpretações que o texto permite – daí o input do pensar científico, mas isto não é tudo. É preciso atentar também para a importância de se defender os valores democráticos, a Constituição, a linguagem jurídica como um meio de comunicação efetiva e a relativa separação de poderes.”

          Ademais,  Leonardo Monteiro Crespo de Almeida e George Browne Rego[5]     também apontam para o dever de reexame das Cortes e Tribunais acerca de precedentes já firmados, especialmente em razão das mudanças sociais, a fim de certificarem se aquele posicionamento se mantém alinhado com as novas demandas sociais ou se necessita ser revisto, objetivando que continue a produzir efeitos concordantes com esta nova realidade:

“A insistência para que sejam consideradas as consequências de cada decisão, e que esta deve ser a que trará melhores benefícios futuros, implica também uma reconsideração contínua das decisões já tomadas e dos entendimentos firmados: cortes e tribunais, para além de julgarem, investigam e repensam posições à luz de novas circunstâncias e transformações institucionais e sociais. Isso faz com que toda apreciação dos casos jurídicos seja marcada por uma pluralidade de opções e movimentos que não podem ser previstos.”

          Destarte, esta análise das consequências da aplicação da norma na sociedade mostra-se imprescindível para garantir sua efetividade, tendo em vista que o contexto que existia quando a norma foi criada certamente não era o mesmo que o atual. Assim, deverá o julgador sopesar se a aplicação de certa norma em determinados casos se mantem eficaz na produção de seus efeitos conforme assim pretendido pelo legislador, bem como se continua sendo capaz de atender às novas urgências sociais, ou, ao contrário: se deverá ser feito seu reexame.

2. A Conexão entre a Efetividade do Direito Penal Brasileiro e o Pragmatismo

          De acordo com os ensinamentos de Franz Von Liszt, o Direito Penal é o conjunto das prescrições emanadas do Estado, que ligam ao crime – como fato, a pena como consequência.[6]Ainda, para Guilherme de Souza Nucci, direito penal é o “corpo de normas jurídicas voltado à fixação dos limites do poder punitivo do Estado, instituindo infrações penais e as sanções correspondentes, bem como regras atinentes à sua aplicação”.[7]

          Assim, ao somar os conceitos, tem-se um resultado mais satisfatório: o Direito Penal é um conjunto de normas que ligam ao crime (como fato), a pena como consequência, e disciplinam também as relações jurídicas daí derivadas para estabelecer a aplicabilidade das penas e a tutela do direito de liberdade em face do jus puniendi do Estado – direito que tem o Estado de atuar sobre os delinquentes na defesa da sociedade contra o crime.

          Ao considerar que o Direito Penal regula as relações do indivíduo com a sociedade, nota-se que este não pertence ao Direito Privado, mas sim ao Público.

          Como se percebe, o Direito Penal regula as relações jurídicas em que de um lado surge o Estado com o jus puniendi – o que lhe dá o caráter de Direito Público. E, importante destacar que, mesmo nos casos em que a ação penal se movimenta por iniciativa da parte ofendida (ação penal privada), não se outorga o jus puniendi ao particular[8]. Inexistindo, portanto, o dito popular de “fazer justiça com as próprias mãos”.

          O Direito Penal, como ciência jurídica, tem natureza dogmática, uma vez que as suas manifestações têm por base o direito positivo. Este ramo do Direito expõe o seu sistema por meio de normas jurídicas, exigindo o seu cumprimento sem reservas. Portanto, a adesão aos preceitos que o compõem estende-se, obrigatoriamente, a todos os indivíduos, sem escusas.

          Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci, “o conceito de crime é artificial, ou seja, independe de fatores naturais, constatados por um juízo ou percepção sensorial, uma vez que se torna impossível apontar uma conduta, ontologicamente criminosa, noutros termos, inexistente qualquer conduta que se possa dizer que constitua um crime pela própria natureza”. [9]

          No Brasil, “crime” é, juntamente com as contravenções penais, espécie do gênero infração penal, sendo que, atualmente, predomina a divisão do conceito de crime sob três prismas: (i) analítico; (ii) formal; e (iii) material.

          Sob o enfoque analítico, que analisa o conceito de “crime” a partir da sua divisão em elementos, a teoria tripartida (também chamada de teoria clássica ou causal-naturalista), adotada – majoritariamente –  pela doutrina e jurisprudência brasileiras, afirma que o crime é composto por uma conduta típica, ilícita e culpável. Vale dizer, uma ação ou omissão ajustada a um modelo legal de conduta proibida (tipicidade, em que estão contidos os elementos subjetivos de dolo e culpa), contrária ao direito (antijuridicidade) e sujeita a um juízo de reprovação social incidente sobre o fato e seu autor, desde que preenchidos os requisitos (culpabilidade).

          Na concepção formal, o crime é exatamente a conduta descrita em lei como tal. Para isso, utiliza-se o critério de existência de um tipo penal incriminador. Existindo, há o delito em tese. Se alguém praticar a conduta prevista no tipo incriminador, ocorre a perfeita adequação entre o modelo de conduta proibida (previsto em lei de modo abstrato) e a conduta real, determinativa do resultado no mundo naturalístico.

          Ainda, o enfoque material determina que crime é a conduta humana que, proposital ou descuidadamente, lesa ou expõe a perigo bem jurídico protegido (que, a depender do crime praticado, poderá ser a vida, o patrimônio, a integridade física, o meio-ambiente, a segurança pública, etc). Como ensina Claus Roxin, “o conceito material de crime é prévio ao Código Penal e fornece ao legislador um critério político-criminal sobre o que o Direito Penal deve punir e o que deve deixar impune”.[10]

          Desta forma, entende-se que, no Brasil, para constatar eventual cometimento de infração, deverá haver um amoldamento de uma conduta ilícita que esteja tipificada (prevista expressamente) em lei como sendo criminosa ao fato concreto ocorrido (conduta humana), assim, caso se amoldem perfeitamente, e sendo o agente culpável, poderá se falar na ocorrência de crime, passível de punição estatal. Haverá, portanto, uma subsunção do fato à norma.

          Este processo de subsunção do fato à norma pode direcionar ao entendimento, em um primeiro momento, de que o Direito Penal seria mais afeto ao positivismo lógico-normativo do que ao pragmatismo, porque, em tese, não haveria uma análise por parte do julgador de qual contexto que estaria introduzida a norma e quais seriam as consequências de sua aplicação na sociedade.

          Conforme já elucidado anteriormente, dentre as características características do pragmatismo, tem-se: o consequencialismo, o antifundacionalismo e a interdisciplinaridade, estimulando a investigação e análise dos elementos fáticos (contexto) que circundam cada caso. Pois, se, no Direito Penal, há um processo de amoldar uma determinada conduta humana a uma norma posta, indaga-se: é possível realizar uma avaliação das consequências deste ajuste, ou, ainda, uma análise extensa e interdisciplinar do fato em comento, a fim de verificar as possíveis consequências que ocasionariam para a sociedade?

          Apesar disso, conquanto o Direito Penal realize a subsunção do fato à norma, sendo certo que não haverá crime sem lei anterior o que o defina (conforme artigo 1º do Código Penal Brasileiro), ele não se limita a isto. De outro modo: o Direito Penal deve analisar e acompanhar as mudanças sociais, no intuito de se adequar às reais necessidades dos indivíduos, mantendo sua eficácia de proteção e manutenção da paz social. Ainda, dentre os principais princípios norteadores do Direito Penal, destaca-se o da razoabilidade e da proporcionalidade, que preveem que os meios aplicados devem ser razoáveis (ajustados com o que a situação exige, evitando excessos desnecessários) e proporcionais (adequados ao que a situação exige).

          Assim, é possível depreender que, havendo uma progressão nas formas de ofensa ao bem jurídico, naturalmente, deverá o Direito Penal considerar tais avanços e procurar elaborar mecanismos suficientes para combatê-los, de modo a continuar garantindo a tutela necessária ao bem jurídico.

3. A Construção Histórico-Cultural da Violência Contra a Mulher

          Desde o período colonial a mulher era, inicialmente, submissa ao homem na relação pai-filha e, posteriormente, após o matrimônio, na relação marido-mulher. Historicamente, nota-se que este pertencimento dava a mulher a responsabilidade de assegurar a honra de seu pai, ao manter-se virgem, e depois a honra de seu marido, ao manter-se fiel. Deste modo, era obrigação da mulher manter a honra masculina inalterada.

          Além das atividades do lar (organização da cozinha, cuidados com as crianças, direção dos trabalhos das escravas), cabia ainda a mulher tarefas como fiação, tecelagem, rendas e bordados e o cuidado com o pomar. De qualquer modo, o fundamento era que ela se colocasse de forma subalterna em relação ao homem, aceitando passivamente o que lhe fosse determinado.[11]

          Assim, a ideologia patriarcal, que era institucionalizada e garantida por leis da época, legitimava a dominação masculina, que fez do espaço do lar um local privilegiado para a propagação da violência doméstica, muitas vezes entendida como necessária para a manutenção da família, bem como o bom funcionamento da sociedade.

          Neste sentido, em razão da ideologia patriacarlista presente na sociedade há séculos, as mulheres são relegadas a cumprir papel de cidadãs de segunda classe, não possuindo os mesmos direitos e oportunidades que os cidadãos do sexo oposto, e a eles são subjulgadas. Isto faz com que a violência contra elas esteja sempre presente. Desta forma, essa espécie de violência – baseada na questão de gênero, interfere significativamente no exercício dos direitos de cidadania e na qualidade de vida de mulheres, limitando seu pleno desenvolvimento enquanto sujeitos humanos constituintes da sociedade.

          Durante séculos, a violência contra as mulheres não era vista como um problema social e político, mas sim privado, pelo fato de ocorrer no interior do espaço doméstico e em meio a relações familiares e conjugais. Portanto, em que pese o número elevado de mulheres que sofriam maus-tratos de diversas espécies, a problemática era vista como algo privado, sem que o Estado pudesse – nem devesse – intervir.

          As frentes de luta do movimento feminista são diversas, como a emancipação, a igualdade e a libertação das mulheres, assim como a transformação social do Direito e da cultura. Por isso, a rediscussão entre o público e o privado é tão importante na pauta dos movimentos feministas. Combater chavões como “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, significa restringir o limite da intimidade, demonstrando que assuntos antes considerador “de família” devem estar no centro da atenção pública.[12]

3.1. O Surgimento de Novas Figuras Típicas Penais na Proteção às Mulheres Vítimas da Violência Doméstica no Ordenamento Jurídico Brasileiro

          O texto constitucional dispõe explicitamente que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (art. 226, §5º, Constituição Federal Brasileira), culminando com a posição superior e de chefia, atribuída legalmente ao homem na sociedade conjugal.

          No âmbito das relações familiares, a Constituição dispõe que cabe ao Estado assegurar a assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações (art. 226, §8º). Portanto, nota-se que tal dispositivo significou um grande avanço, pois se reconheceu o fenômeno da violência familiar e doméstica, que já vinha sendo sistematicamente denunciado pelos movimentos de mulheres desde as décadas de 70 e 80, principalmente. Com isso, no tocante aos direitos das mulheres, entende-se que a Constituição foi um marco, especialmente por considerar homens e mulheres iguais em direitos e obrigações (art. 5º, I).

          A Constituição acolheu a ampla maioria das demandas dos movimentos de mulheres e é uma das mais avançadas no mundo. A partir de então, as legislações regulamentando direitos constitucionais e criando e ampliando direitos vem sendo aprovadas.

          Para efetivar a aplicação dos dispositivos em abstrato, o governo federal, por meio da Lei nº. 10.714/2003 (Lei do Disque Denúncia) disponibiliza um acesso à vítima ou pessoas de violência doméstica para comunicarem as autoridades os casos de agressão, conforme dispositivo expresso na Lei no. 10.714/03:

Art. 1º É o Poder Executivo autorizado a disponibilizar, em âmbito nacional, número telefônico destinado a atender denúncias de violência contra a mulher.

§ 1º O número telefônico mencionado no caput deste artigo deverá ser único para todo o País, composto de apenas três dígitos, e de acesso gratuito aos usuários

§ 2º O serviço de atendimento objeto desta Lei deverá ser operado pela Central de Atendimento à Mulher, sob a coordenação do Poder Executivo.

          Com o advento desta Lei foi criada, em 2005, pela Secretaria Nacional de Políticas, a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, que é um dos canais de atendimento da ONDH e o principal canal entre a população e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

          Ainda, a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) foi criado com o propósito de coibir e prevenir a violência doméstica na tentativa de eliminar as formas de violência doméstica contra a mulher. A criação da Lei no. 11.340/06 foi uma exigência constitucional do artigo 226, §8º, que teve a seguinte descrição:

O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

          Até o advento da Lei nº. 11.340/2006, o ordenamento jurídico brasileiro não contava com um diploma legal específico a tratar da violência doméstica e familiar contra a mulher. Logo, eram aplicadas as regras previstas na legislação penal, seja no Código Penal ou nas leis esparsas, e no Código de Processo Penal.

          Desta feita, com o advento da Lei Maria da Penha, várias foram as inovações no ordenamento jurídico brasileiro, não apenas na seara penal, mas também no âmbito processual penal e até mesmo na seara cível. Por isso é possível afirmar que a Lei Maria da Penha, em vigor desde o ano de 2006, implementou uma série de modificações no ordenamento jurídico brasileiro, indo muito além das alterações que se fizeram entre a condenação do Estado brasileiro e o advento deste diploma, e que foram alvo de muitas críticas; e, embora não se tenha por escopo esgotar a análise de todo a lei em comento, dada a sua complexidade, se faz mister tecer algumas considerações acerca das principais inovações.

          Por fim, é importante ressaltar que a Lei Maria da Penha não se ateve apenas em sancionar o agressor, após o devido processo legal, mas buscou algo concreto, destinado a assegurar a integridade física, psicológica e material da vítima, garantindo sua liberdade de ação e locomoção, bem como o direito de buscar a proteção estatal e jurisdicional.

          Ademais, com o objetivo de minimizar e evitar condutas no âmbito familiar, foi criada Lei do Feminicídio (Lei nº. 13.104/2015), para assim retirar tais condutas do anonimato, nos casos em que ocorra a violência fatal e, a partir de políticas públicas, procurarem coibir e prevenir a prática da violência em todas as suas modalidades.

          Por fim, observa-se que, mesmo diante da igualdade de gêneros trazida pelo artigo 5º da Constituição Federal, esta igualdade se deu somente no campo jurídico material da legislação. Todavia, evidente que essa igualdade não fez cessar o número de assassinatos de mulheres em razão do gênero, levando o legislador mais uma vez a tentar, através da lei em abstrato, resolver o problema da violência fatal contras as mulheres, criando-se, assim, a Lei do Feminicídio.

3.2. As Alterações Legislativas e a Evolução no Tratamento Jurídico-Penal da Violência de Gênero: O Feminicídio Como uma Nova Qualificadora e Seus Requisitos Típicos

          A Lei do Feminicídio (Lei nº. 13.104/15) objetivou nomear juridicamente – feminicídio – uma conduta que expressa a morte violenta com características ou contextos especiais que, em geral, não são observadas em homicídios masculinos. Assim sendo, nominar juridicamente o assassinato de mulheres (ainda que, por óbvio, seja necessário atentar-se às circunstâncias caracterizadoras do crime) reflete o reconhecimento político-jurídico de uma violência específica que é também uma violação aos direitos humanos das mulheres.

          Conforme apontado no Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Violência contra a Mulher (CPMI) do Congresso Nacional:

O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex- parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou degradante.

          A Lei do Feminicídio, distanciando-se ainda mais da generalização das condutas, não possui o condão de tipificar uma nova conduta, o contrário, a Lei especializa uma conduta já tipificada e descrita no Código Penal, qual seja, matar alguém. A razão desta especialização ocorre pois, enquanto as formas de violência descritas anteriormente surgiram como forma de prestar apoio especializado a situações classificadas como singulares, a Lei do Feminicídio, além disso, traz consigo uma carga reformada: presta-se a mudar certas condutas cuja sociedade é permissiva e complacente.

          Neste sentido, esta Lei traz à baila não somente a tentativa de reduzir o número de assassinatos contra mulheres, mas também tentar modificar uma cultura que é leniente com este tipo de crime. Configura-se, assim, um novo uso do Direito Penal.

          Embora seja uma inovação de fácil compreensão, permanecem algumas dúvidas, pois se trata de uma alteração ainda pouco comentada e não incluída na maioria dos livros de doutrina jurídica. No entanto, como a própria palavra já diz, feminicídio é, obviamente, o assassinato de pessoas do sexo feminino.

          Todavia, para que essa conduta esteja configurada de maneira destacada e não abrangida pelo tradicional crime de homicídio, está claro que alguma peculiaridade este delito contém. Não se trata de qualquer homicídio de mulher, mas como explicado na Lei, consiste em “matar mulheres por razões da condição de sexo feminino” (artigo 121, §2º, inciso VI, do Código Penal). Assim, a Lei deixa muito clara a diferença entre homicídio de mulher e feminicídio. Em resumo, a criação da figura penal do feminicídio veio esclarecer que uma pessoa que morreu assassinada não teria morrido nas mesmas circunstâncias se não fosse mulher. Trata-se de escancarar a violência de gênero e aumentar seu rigor punitivo, medida importante na intimidação do agressor.

          No contexto da violência contra a mulher que acaba sendo morta é que se insere a análise acerca da conveniência da criminalização do feminicídio. Ainda que não haja acordo sobre o feminicídio, existe um consenso mínimo acerca de algumas das suas características: a morte das mulheres pelo fato de serem mulheres é produto das relações de desigualdade, de exclusão, de poder e de submissão, trata-se de um fenômeno que abarca todas as esferas da vida de mulheres, com o fim de preservar o domínio masculino nas sociedades patriarcais.

          Sendo assim, em homenagem ao Princípio da Isonomia, de moldura constitucional, os desiguais devem ser tratados desigualmente, na medida de sua desigualdade. Não se desconhece que várias correntes reputam que se dar proteção maior à vida da mulher seria uma forma de discriminação. Portanto, em vista disso, a criação de uma nova definição criminal inserida no ordenamento jurídico penal brasileiro não se mostra desnecessária ou inócua. Ao contrário, tem função esclarecedora e inibidora, educativa e elucidativa, ao tornar visível e estaticamente computável algo que estava oculto sob o manto da palavra genérica “homicídio”. Em verdade, praticar homicídio, no sentido estrito do vocábulo, significa “matar um homem”. Aplicado em sentido amplo, quer dizer matar uma pessoa de qualquer gênero, mas essa amplitude acarreta mais invisibilidade à mulher.[13]

3.2. Sujeito Ativo e Passivo: A Discussão a Respeito da Mulher Trans  

          Quando a Lei Maria da Penha (Lei no. 11.340/2006) foi estruturada, os debates sobre identidade de gênero ainda não tinham uma visibilidade expressiva no Brasil.

          Cumpre destacar, neste primeiro momento, que a Lei Maria da Penha adotou, em seu artigo 5º, a seguinte expressão “violência doméstica e familiar contra a mulher”. Todavia, para tratar deste sensível tópico, insuficiente seria fazer uma análise meramente fundada na letra da lei. Dentre as diversas respostas sobre a indagação “o que é de ser mulher?”, torna-se necessário traçar um conceito a partir da perspectiva sócio-jurídica, com o objetivo de evitar qualquer segregação. Ainda, insta frisar o intento da Lei: garantir a proteção integral de mulheres em situação de risco, que constantemente são alvos da violência de gênero.

          A Lei Maria da Penha funda-se no caráter sociológico de gênero, o que se evidencia quando o legislador, ao conceituar violência em seu artigo 5o, utiliza a expressão “qualquer ação ou omissão baseada no gênero”.

          Comumente o sistema sexo/gênero/desejo é confundido não somente entre os operadores do Direito, mas também entre toda a sociedade. Assim, imprescindível elencar, ainda que brevemente, alguns conceitos referentes à identidade de gênero, conforme expõe Jaqueline de Jesus[14]:

Cisgênero: Conceito “guarda-chuva” que abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento.
Transgênero: Conceito “guarda-chuva” que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento.

Transexual: termo genérico que caracteriza a pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento. Evite utilizar o termo isoladamente, pois soa ofensivo para pessoas transexuais, pelo fato de essa ser uma de suas características, entre outras, e não a única. Sempre se refira à pessoa como mulher transexual ou como homem transexual, de acordo com o gênero com o qual ela se identifica.

Assexual: pessoa que não sente atração sexual por pessoas de qualquer gênero.

Bissexual: pessoa que se atrai afetivo-sexualmente por pessoas de qualquer gênero.

          Atualmente, há um entendimento consolidado e pacífico de que a Lei Maria da Penha é aplicada quando uma mulher trans (mulheres transexuais, transgêneras e travestis) é vítima em casos que envolvem violência doméstica.

Enunciado nº 30 (001/2016):

A Lei Maria da Penha pode ser aplicada a mulheres transexuais e/ou travestis, independentemente de cirurgia de transgenitalização, alteração do nome ou sexo no documento civil. (Aprovado na I Reunião Ordinária do GNDH em 05/05/2016 e pelo Colegiado do CNPG em 15/06/2016).[15]

FONAVID (Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher):

ENUNCIADO 46: A lei Maria da Penha se aplica às mulheres trans, independentementede alteração registral do nome e de cirurgia de redesignação sexual, sempre que configuradas as hipóteses do artigo 5º, da Lei 11.340/2006. (APROVADO no IX FONAVID – Natal).[16]

          O sujeito ativo não foi claramente estabelecido pela Lei, que tem como objetivo principal a prevenção da violência e a proteção da mulher.

          Inicialmente, diversos autores e operadores da Justiça compreendiam que somente o homem poderia ser o sujeito ativo. Todavia, este entendimento, além de ultrapassado, é equivocado, principalmente pelo fato de que a violência misógina não está vinculada ao fato de determinada pessoa ser homem ou mulher. Ao contrário, trata- se de uma forma de violência estruturada na sociedade por meio da linguagem e de práticas que são potencialmente reproduzidas por todos em uma cultura patriarcal, independentemente de seu gênero.

          Dessa forma, em se tratando da pessoa agressora, a lei não diferencia homens e mulheres; ao contrário, considera a “ação ou omissão baseada no gênero” uma conduta socialmente presente em determinadas culturas patriarcais e, portanto, impessoais.

          Neste sentido, a violência de gênero reproduz-se também em relações homoafetivas femininas. Os padrões discriminatórios são reproduzidos independentemente de sexo ou orientação sexual do/a agressor/a.

          Uma mulher que agride a companheira por discordar de determinado comportamento com base em um estereótipo do que deve ou não uma mulher ser está praticando uma violência de gênero tanto quanto um homem que age da mesma forma. Embora não seja perpetrada por alguém do sexo masculino, a ação responde a uma estrutura social de controle de corpos das mulheres. [17]

          Portanto, entende-se que o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, independente do gênero, pois se cuida de crime comum[18] e, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é necessário que esteja presente o estado de vulnerabilidade caracterizado por uma relação de poder e submissão.[19]

          Assim preleciona Luiz Flávio Gomes: “o sujeito ativo da violência pode ser qualquer pessoa vinculada com a vítima (pessoa de qualquer orientação sexual, conforme o art. 5º, parágrafo único): do sexo masculino, feminino ou que tenha qualquer outra orientação sexual. Ou seja: qualquer pessoa pode ser sujeito ativo da violência; basta estar coligada a uma mulher por vínculo afetivo, familiar ou doméstico: todas se sujeitam à nova lei. Mulher que agride outra mulher com que tenha relação íntima: aplica a nova lei. A essa mesma conclusão se chega: na agressão de filho contra mãe, de marido contra mulher, de neto contra avó, de travesti contra mulher, empregador ou empregadora que agride empregada doméstica, de companheiro contra companheira, de quem esta em união estável contra a mulher etc.”[20]

          Neste sentido, observa-se que a análise do sujeito passivo é sensível. A priori, cumpre destacar que a Lei Maria da Penha não estabelece o sujeito passivo com base no sexo feminino, mas no fato de ser mulher.

          Esse “ser mulher”, que define o sujeito passivo da Lei, é direcionado a um dado cultural que vai além da existência da cromatina sexual (cromossomos XX).

          A violência é praticada em direção ao papel social desenvolvido por mulheres. Não se relaciona diretamente com a biologia, mas com a percepção social de gestos e signos femininos, seja por desprezo à condição de mulher, seja porque há necessidade do controle dos corpos de mulheres para que eles se comportem de acordo com os estereótipos da feminilidade.

          A lei trabalha com a universalização de identidades. Dessa maneira, a categoria “Mulher” é utilizada pela Lei Maria da Penha e deve ser interpretada para compreender as diversas experiências do que é ser mulher.

          Neste sentido, insta frisar que a Lei Maria da Penha não confere proteção ao sexo cromossômico da mulher (XX), mas à sua situação de vulnerabilidade em um contexto social que a subordina. Por isso, mulheres trans (que não foram designadas como do sexo feminino quando do nascimento) compartilham dos mesmos elementos discursivos do gênero feminino que mulheres cisgêneras (que foram designadas como do sexo feminino quando do nascimento) e têm direito a igual proteção.

          Por fim, importante destacar que a extensão da proteção legal conferida às mulheres trans, conforme entendimento já consolidado pelos Tribunais Superiores, amolda-se, de modo cristalino, na Teoria da Investigação de Peirce. Na referida Teoria, a investigação científica constitui um esforço para que, por meio da dúvida (estado de desconforto/inquietude), se alcance a crença (estado calmo, em que se espera a oportunidade para agir conforme). A verdade seria, então, um estado de crença inatacável pela dúvida. A investigação tem por objetivo único o acordo de opiniões.

          Ora, entende-se que a dúvida seria a indecisão do legislador de mulheres trans poderem – ou não – ser preservadas pelas normas que tutelam a vida e dignidade das mulheres nascidas assim (cis), ao passo que a crença seria a certeza que as mulheres trans também são social e juridicamente consideradas mulheres e, portanto, devem ser igualmente amparadas pela legislação.

4. Conclusão

          O presente artigo pretendeu apresentar como as principais características do pensamento pragmatista, quais sejam, o antifundacionalismo, o consequencialismo, o contextualismo e a interdisciplinaridade, influenciam diretamente na eficácia do Direito Penal Brasileiro, sendo indispensável que o legislador e aplicador das leis penais observem a dinamicidade e volatilidade com que a sociedade – e seus delitos – vão se transformando, exigindo uma resposta estatal cada vez mais multidisciplinar e eficaz na proteção do bem jurídico tutelado.

          Para tanto, utilizou-se como exemplo o fenômeno da Violência de Gênero Contra a Mulher, que carrega inúmeros desafios para sociedade jurídica, seja no tocante aos mecanismos de proteção, seja na efetividade dos meios processuais.

          Assim, conclui-se que o Direito Penal, não obstante à primeira vista pareça mais ajustado com o pensamento positivista (em razão de seu aspecto formal de subsunção do fato à norma), não se limita a este processo de amoldamento do tipo penal à conduta humana. Neste sentido, portanto, é de suma importância para a sua efetividade que o aplicador das leis penais observe o contexto e as consequências que a aplicação de determinada norma gerariam em determinada sociedade, com objetivo de sopesar se seria o caso de aplicá- la ou, modificá-la, adequando-a ao caso concreto.

          Ainda, as sucessivas transformações dos delitos, que trazem inovações nas formas de lesão ao bem jurídico tutelado (o qual se diverge a depender do crime praticado), exigem do legislador e do aplicador da lei penal uma resposta multidisciplinar e que se aperfeiçoe continuamente, com a finalidade de gerar consequências eficazes no combate a esta forma especializada de delito (um exemplo, são os crimes praticados contra as mulheres por questão de gênero);­

          Através do levantamento histórico e social proposto no presente trabalho, foi possível demonstrar como se dá a relação entre a inferioridade imposta socialmente à mulher e a violência de gênero que dela decorre. Nesse sentido, o estudo evidenciou que a construção histórica do gênero feminino como subordinado à autoridade masculina culminou na aceitação social da violência contra as mulheres, que não é problematizada, mas sim naturalizada. Produto do sistema patriarcal de organização social, esta violência se manifesta das mais diversas formas e não respeita barreiras sociais, políticas, religiosas, étnicas ou econômicas.

          Ao tipificar o feminicídio no Código Penal Brasileiro, o legislador consagrou não somente a ideia necessária de proteção, mas também reconheceu que a violência de gênero é uma realidade emergencial, sob a qual o Estado Democrático de Direito não pode se omitir, principalmente pela necessidade de proteção das garantias fundamentais e da concretização dos direitos humanos daquela classe mais vulnerável, no caso, as mulheres.

          Neste sentido, pode se compreeder que a indispensabilidade do legislador e aplicador da lei penal de observar o contexto e as consequências geradas a partir da aplicação de determinada norma a um caso concreto, no intuito de sopesar se seria o caso de eventual modificação ou aperfeiçoamento de uma lei penal ou método de investigação, demonstra a afinidade e aproximação do Direito Penal (e Processual Penal) com o pensamento pragmatista, como forma de garantir sua efetividade na proteção aos bens jurídicos.

          Destarte, destaca-se ser indubitável que a aplicação mecanizada da lei penal, ou seja, a mera subsunção de uma conduta humana a um fato tipificado em lei e considerado ilícito, por si só, sem que seja feita qualquer análise por parte do julgador acerca do contexto em que o delito ocorreu, tampouco as consequências de aplicação daquela norma (inclusive, analisando se esta é ou não suficiente e capaz de proteger adequadamente o bem jurídico tutelado), é conflitante com as urgências da sociedade e com os constantes avanços criminais, principalmente, no âmbito da Violência de Gênero Contra a Mulher.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Mestranda em Direito Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Advogada.

[2] Termo criado pelo filósofo francês Montesquieu em sua obra “O Estado de Direito”.

[3] PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Filosofia. Textos escolhidos de Charles Sanders Peirce. Introdução, seleção e tradução de Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. São Paulo, Ed. Cultrix, 1972, pps. 71 a 92.

[4]PARGENDLER, Mariana; SALAMA, Bruno. Direito e consequência no Brasil: em busca de um discurso sobre o método. In Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 262. p. 95-144, jan./abr. 2013.

[5]ALMEIDA, Leonardo Monteiro Crespo de; REGO, George Browne. Pragmatismo Jurídico e Decisão Judicial. Revista Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 404-429, maio/ago. 2015. P. 418

[6] Tratado de direito penal, trad. J. Higino, v.1, p.1.

[7] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte geral: arts. 1o ao 120 do Código Penal. – 3. ed. – Rio de Janeiro: Forense: 2019.

[8] JESUS, Damásio de; Atualização André Estefam – Direito Penal vol. 1 – 37. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

[9] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte geral: arts. 1o ao 120 do Código Penal. – 3. ed. – Rio de Janeiro: Forense: 2019.

[10] ROXIN, Claus. Derecho penal – Parte general (Fundamentos. La esctructura de la teoria del delito). Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo, Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1999. t. I.

[11] TELES, Maria Amalia de Almeida. Breve historia do feminismo no Brasil. – São Paulo: Brasiliense, 1999.

[12] MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha: Uma análise criminológico-critica. 1a. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015. 2a impressão, fevereiro de 2020.

[13] ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus: casos passionais e feminicídio: de Pontes Visgueiro a Mizael Bispo de Souza. 9a. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

[14] JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos. Brasilia: Autor, 2012.

[15]COMPROMISSO E ATITUTE. Disponível em <http://www.compromissoeatitude.org.br/enunciados- da-copevid-comissao-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher/>. Acesso em: 28 out. 2020.

[16]FONAVIDA. Disponível em: <https://www.tjsp.jus.br/Areas/FONAVID/Content/PDF/ENUNCIADOS%20DO%20FONAVID.pdf>. Acesso em: 28 out. 2020.

[17] MELLO, Adriana Ramos de; PAIVA, Lívia de Meira Lima. Lei Maria da Penha na Prática. 2a . ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

[18] JESUS, Damásio de. Código Penal Anotado. 23a. ed. Atualizada de acordo com a Lei n. 13.142/2015. – São Paulo: Saraiva, 2015.

[19] (STJ – HC: 175816 RS 2010/0105875-8, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 20/06/2013, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/06/2013)

[20] BIANCHINI, Alice; GOMES, Luiz Flavio. Competência Criminal da Lei de Violência contra a Mulher. Disponível em: <https://migalhas.uol.com.br/depeso/30079/competencia-criminal-da-lei-de-violencia- contra-a-mulher>. Acesso em 15 jun. 2022.