VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA AS MULHERES: A VIOLÊNCIA DO SILÊNCIO

VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA AS MULHERES: A VIOLÊNCIA DO SILÊNCIO

28 de julho de 2022 Off Por Cognitio Juris

GENDER VIOLENCE AGAINST WOMEN: THE VIOLENCE OF SILENCE

Cognitio Juris
Ano XII – Número 41 – Edição Especial – Julho de 2022
ISSN 2236-3009
Autores:
Bruna Cristina dos Santos Veiga[1]
Marcos Antonio de Souza Lima[2]

RESUMO: A desigualdade entre os sexos é ainda muito presente na sociedade e isso decorre da influência do arcabouço histórico e cultural do patriarcado. A violência contra a mulher decorre dessa vulnerabilização feminina e precisa ser tratada de maneira cíclica, apresentando, portanto, caminhos para a quebra do silêncio e, consequentemente, do ciclo. O indivíduo que se identifica socialmente como mulher tem proteção legislativa especial, tendo em vista a necessidade de tratamento diferenciado na tentativa de suprir a assimetria existente entre homens e mulheres. Apesar disso, entendendo ser uma questão cultural, apenas a instalação de medidas legislativas não será suficiente e a promoção de políticas públicas próprias, objetivando o enfretamento a violência contra a mulher se faz necessária.

Palavras-chave: Violência contra a Mulher. Violência de Gênero. Patriarcado.

ABSTRACT: Inequality between the sexes is still very present in society and this stems from the influence of the historical and cultural framework of patriarchy. Violence against women stems from this vulnerability of women and needs to be treated in a cyclical way, thus presenting ways to break the silence and, consequently, the cycle. The individual who socially identifies as a woman has special legislative protection, in view of the need for different treatment in an attempt to overcome the existing asymmetry between men and women. Despite this, understanding that it is a cultural issue, only the installation of legislative measures will not be enough and the promotion of public policies of their own, aiming at confronting violence against women is necessary.

Keywords: Violence against Women. Gender Violence. patriarchy.

INTRODUÇÃO

A relação de gênero formada por homens e mulheres é norteada pelas diferenças biológicas, geralmente transformadas em desigualdades que tornam o “ser mulher” vulnerável à exclusão social. Essa exclusão que atinge a mulher se dá, simultaneamente, pelas vias do trabalho, da classe, da cultura, da etnia, idade, e, assim sendo, torna-se difícil atribuí-la a um aspecto específico desse fenômeno, pois, com ela, se atrelam vários elementos de exclusão social[3].

A especificidade corporal das mulheres é principalmente usada para justificar a desigualdade entre os sexos, tendo em vista que, os corpos das mulheres, são presumidamente incapazes das realizações masculinas, sendo mais fracos e mais expostos a irregularidades hormonais, intrusões e imprevistos[4].

Assim, restou estabelecido socialmente que para os homens foi destinado o cérebro, a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decidir, muito mais importante que a fala; já para as mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos[5].

Dessa forma, a vítima não é apenas vítima do agressor, mas também da sociedade que ainda cultiva valores que incentivam a violência e aumentam a desigualdade sociocultural, tendo em vista a arcaica ideologia ainda presente.

O medo, a dependência econômica, o sentimento de inferioridade, a culpabilização, o receio do julgamento social, ainda é uma realidade para grande parte das mulheres, o que faz ser uma porta aberta para os agressores iniciarem o ciclo da violência e o silêncio pairar sobre os acontecimentos.

Assim, paradoxalmente, o ambiente familiar, que deveria ser um espaço de proteção, é também, um espaço de violência e violação[6].

Por tudo isso, a mulher precisa ser tratada de forma especial pelo Direto, haja vista os valores sociais, culturais, familiares, retrógrados da violência de gênero, justificando, assim, o direito à proteção contra este tipo de violação de direitos fundamentais exclusivo das mulheres[7]

No mundo ideal, isso não deveria ser questão de criação legislativa diferenciada, aberturas de delegacias especializada, a igualdade de gênero deveria prevalecer em toda a coletividade. Contudo, diante do cenário social, cheio da presença do patriarcado, ainda existe a necessidade esclarecimento de questões que deveriam ser óbvias

OBJETIVOS

GERAL:

Verificar os aspectos culturais e históricos da violência de gênero contra as mulheres que justificam o tratamento legislativo especializado.

ESPECÍFICOS:

Entender a necessidade de ampliação na interpretação do princípio da isonomia;

Investigar os marcos legislativos vigentes no enfrentamento a violência doméstica e familiar contra a mulher;

Analisar como a violência contra a mulher se apresenta socialmente, seus tipos e sua maneira cíclica;

METODOLOGIA

 

Estudo do tipo descritivo e exploratório de natureza qualitativa, utilizando-se de pesquisa bibliográfica.

DISCUSSÃO TEÓRICA

CULTURA DO PATRIARCADO: A GÊNESE DO PROBLEMA

Apesar da mulher já começar a ganhar espaço na contemporaneidade, ainda é tarefa difícil se identificar como mulher, já que a sociedade ainda é patriarcal e machista, cujo arcabouço histórico e cultural, afronta a dignidade nos mais variados aspectos da vida da mulher.

A sociedade impõe um destino biológico, psíquico e econômico que define a maneira de conduta da fêmea no seio social, que não deveria existir[8]. É como se ao homem fosse designado o papel de indivíduo forte, tendo em vista a sua agressividade e inteligência e, por outro lado, a mulher, uma natureza passiva, fecunda, diante da sua “fragilidade física e mental”, da capacidade de amar e se emocionar e de perpetuar a civilização através da maternidade, pois apresentaria característica perfeita para o cuidado das crianças e privacidade do lar[9].

Assim, a desigualdade ainda se faz presente, tendo em vista a soberania patriarcal enraizada na cultura brasileira. O patriarcado é a manifestação e institucionalização do domínio masculino sobre o feminino, sobre as crianças da família e que se estende à sociedade em geral. Dessa forma, significa também uma tomada de poder histórica dos homens sobre as mulheres, cujo agente ocasional foi à ordem biológica, elevada tanto à categoria política, quanto econômica[10]

Em decorrência dessa cultura, as mulheres frequentemente se anulam, apagam a si mesmas, como se sua aparição fosse uma ofensa à ordem. Esse ato de autodestruição é uma maneira de aferir o silêncio que a sociedade impõe às mulheres, um consentimento à negação de si que está no centro da educação feminina, religiosa ou laica[11].

Assim, homens e mulheres, são socializados, desde o nascimento, para aceitar pensamentos e ações sexistas. Todos participaram da disseminação do sexismo, até que seja mudada a consciência e o coração; até desapegar de pensamentos e ações sexistas e substitui-los por pensamentos e ações feministas[12].

O patriarcado, por sua vez, traz grandes consequências para homens e mulheres, tendo em vista que ambos estão aprisionados em estereótipos de gênero[13], não sendo mais uma luta entre homens contra mulheres, mas entre indivíduos contra um sistema histórico e cultural preconceituoso.

MULHER: UMA QUESTÃO DE GÊNERO

Simone de Beauvoir não dispunha do termo gênero, mas ela conceituou gênero, quando mostrou que ninguém nasce mulher, mas se torna mulher e, por conseguinte, ninguém nasce homem, mas se torna homem[14]. Assim, ela considerava que ser homem ou mulher é uma aprendizagem. As pessoas aprendem a se comportar como homem ou como mulher, de acordo com a socialização que receberam, não necessariamente de acordo com o seu sexo biológico[15].

No mundo, as discussões relacionadas às questões de gênero tiveram início na década de 60. No Brasil, por sua vez, os estudos de gênero e suas relações ganharam propulsão entre as décadas de 70 e 80, com os movimentos de mulheres e movimento feminista, ressaltando a condição feminina e suas batalhas libertárias por igualdade de direitos e participação ativa nas demandas sociais[16].

O sexo que pode ser masculino ou feminino é um conceito biológico, já o gênero, também masculino e feminino, é um conceito sociológico independente do sexo[17]. Não existe uma diferença objetiva anterior ao gênero, tal como o sexo, mas é o gênero, ele mesmo, que produz a diferença e a perpetua[18].

Dessa forma, o gênero é uma construção da sociedade e encontra ressonância numa variedade de denominações, originárias da concepção de masculino e feminino[19]. As relações de gênero estão vinculadas aos modos de subjetivação, considerando as imagens, os discursos, assim como os sentidos que as pessoas dão as suas vidas, a partir da maneira como interage com outras pessoas – o significado e a significância de suas elaborações, a partir das suas visões de mundo[20].

Importante se faz compreender a definição dos seguintes conceitos: expressão de gênero, identidade de gênero, papel de gênero e orientação sexual. A expressão de gênero é a forma como a pessoa apresenta a sua aparência e seu comportamento, de acordo com as expectativas sociais de um determinado gênero, depende da cultura em que a pessoa vive. Identidade de gênero é o gênero com o qual uma pessoa se identifica que pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento, ou seja, uma pessoa pode nascer com um sexo biológico (homem ou mulher) e se identificar com o gênero oposto (masculino ou feminino). O papel de gênero é entendido como o modo de agir em determinadas situações conforme o gênero atribuído, ensinado às pessoas desde o nascimento. É de cunho social e não biológico, se refere a construção de diferenças entre homens e mulheres. Já a orientação sexual é atração afetivo-sexual por alguém, vivência interna relativa à sexualidade (heterossexual, homossexual ou bissexual)[21].

A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha[22], foi à legislação pioneira para o enfretamento da violência doméstica e familiar contra a mulher no país, trazendo tanto do ponto de vista simbólico, quanto dos impactos efetivos nas proposituras jurídicas, um marco sem precedentes[23].

Quando a norma legal trata do termo mulher, em seu artigo 2º, inclui todas as mulheres, independente da classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião[24].

Portanto, deve-se entender por mulher, também os que são  biologicamente homens,  que exerçam o papel social de mulher, isto é, que possuam o gênero feminino, como os travestis, transexuais, por exemplo. Assim, todas as medidas protetivas, podem ser aplicadas ao ser humano que possua o gênero feminino, independentemente do sexo, ou seja, que se identifiquem socialmente como mulher[25].

Importante mencionar que no direito penal, não se pode utilizar analogia em prejuízo do réu[26]. Contudo, no processo penal, a analogia pode ser usada contra ou a favor do réu, pois não se trata de uma norma penal incriminadora, protegida pelo princípio da reserva legal, que exige a nítida definição do tipo prévio em lei[27].

Todavia, a Lei Maria da Penha[28], é predominantemente uma lei processual que cuida da assistência, do atendimento do procedimento e da proteção à mulher. Contudo, as normas penais presentes na legislação não poderão ter interpretação extensiva. Dessa forma, o acusado de qualquer crime no âmbito da violência doméstica, perpetrado contra pessoa do sexo masculino, ainda que com o gênero feminino, não pode ser aplicada a agravante, relacionada à condição de ser mulher, igualmente não poderá ser submetido à programa de reeducação no âmbito da execução penal da limitação de fim de semana, ou ainda, ser privado das possibilidades despenalizadoras da Lei dos Juizados Especiais[29], tampouco ver contra si, considerada pública incondicionada a ação penal por lesão corporal leve[30].

Ademais, cumpre esclarecer que para ser considerado agressor, sujeito ativo da violência doméstica e familiar contra a mulher,  não necessariamente é sinônimo de ser homem. Essa ideia se deve a suposta superioridade de força física e potencial intimidação masculina sobre a feminina. A Lei Maria da Penha[31] não veio apenas para proteger a mulher em face do homem, supostamente mais forte, ameaçador e dominante, ela também pode ser aplicada quando o sujeito ativo for do gênero feminino[32].

A IGUALDADE EM SENTIDO AMPLO

Considerando todo o arcabouço histórico e cultural do patriarcado, ainda presente no contexto social em que a mulher está inserido, houve a necessidade de avançar legislativamente no sentido de amenizar as desigualdades ainda presentes, encontrando respaldo no princípio da isonomia ou da igualdade, tratado na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, I[33].

Diante deste contexto, o referido princípio, deve ser interpretado em sentido amplo, nos seus dois sentidos, formal e material, onde a interpretação formal assegura o mesmo tratamento a todos, já a material está relacionada a condições sociais, que leva em consideração os grupos minoritários, hipossuficientes e vulneráveis, que precisam de proteção especial[34].

Deve-se respaldar a proteção dos direitos da mulher no tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na exata medida de suas desigualdades[35], tendo em vista que seria absurdo impor os mesmos deveres e conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos sem fazer quaisquer distinções[36], já que diante da vulnerabilidade da mulher, entende-se que as leis voltadas para a proteção de seus direitos estaria de longe infringindo o princípio isonômico[37].

Então, é justo reivindicar a igualdade, diante de uma desigualdade que inferioriza, e quando se tem o direito de reivindicar a diferença quando esta descaracteriza o indivíduo[38].

Dessa forma, a defesa dos direitos da mulher, com o consequente enfrentamento das formas de discriminação e violência, constitui compromisso dos Estados Democráticos de Direito. Um país que se autodeclara democrático e tem como primado básico, promover o bem-estar de todos os cidadãos sem distinção, não pode quedar-se alheio ao fenômeno da desigualdade histórica, social e jurídica de que atinge as mulheres[39].

Nesse sentido, os tratamentos normativos diferenciados, de acordo com os critérios valorativos, razoáveis e justificáveis, são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado[40].

O tratamento isonômico entre os sexos, previsto constitucionalmente, pressupõe que ser homem ou mulher não pode ser utilizado como critério de discriminação com o propósito de desnivelar substancialmente os sexos, mas pode e deve ser utilizado com a finalidade de atenuar os desníveis sociais, políticos, econômicos, culturais e jurídicos existentes entre eles[41].

MARCOS LEGAIS

A condição de violência contra a mulher é, antes de tudo, uma questão de violação dos direitos humanos. A Organização Mundial de Saúde considera a violência como um dos mais emblemáticos problemas de saúde pública[42]. Diante da magnitude e gravidade da violência de gênero, cabe ao Estado promover e implementar políticas públicas no sentido de prevenir e combater este tipo de violência[43].

Ao Estado, para criação de uma sociedade livre, justa e solidária, necessário se faz cumprir as leis e criar políticas públicas, no que tange à coletividade, sendo assim, torna-se vital  empreender esforços para que tais objetivos se efetivem.

No tocante ao gênero, a violência pode ser compreendida como qualquer fato ou circunstância que submeta uma pessoa de forma física ou psicológica a sofrimento em função de seu sexo, e, mais especificamente, em se tratando do ser mulher, do ser feminino, a violência se expressa como qualquer ação ou omissão que leve à discriminação, agressão ou cause dano, morte, constrangimento de ordem física, moral, psicológica, econômica, patrimonial, dentre outros[44].

Os casos de violência de gênero constituem um problema que não pode ser enfrentado fora do âmbito penal, pois só estabilizaria ainda mais as relações de poder[45].

Por essa razão, as ciências criminais têm feito notável esforço, no sentido de estabelecer mecanismos de enfrentamento à violência de gênero, sendo possível neste cenário  ilustrar marcos legislativos:

A Lei nº 11.340/2006[46], conhecida como Lei Maria da Penha, recebeu esse nome em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência praticada pelo seu ex marido.

Assim, a legislação referenda mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, estabelecendo medidas de assistência e proteção as vítimas[47].

Destaca-se que, nem toda violência praticada contra uma mulher será abarcada pela Lei Maria da Penha, necessitando, pois, ser uma violência doméstica, familiar ou decorrente de uma relação íntima de afeto[48].

A Lei Maria da Penha reconhece como violência doméstica e familiar contra a mulher, a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral[49].

O artigo 7º, I, da referida Lei, menciona que a violência física é aquela derivada de uma conduta que lesiona a integridade ou a saúde corporal. Já a violência psicológica é entendida como uma agressão emocional, que ocorre quando o agente ameaça, rejeita, humilha ou discrimina a vítima[50]. Sua justificativa encontra-se alicerçada na negativa ou impedimento à mulher de exercer sua liberdade e condição de alteridade em relação ao agressor[51]

Não se pode, pois, valorar qual violência seria mais ou menos danosa para a vítima, tendo em vista que a dor física é passageira, mas as consequências de uma violência psicológica podem durar para sempre.

A legislação, por sua vez, ainda trata sobre a violência sexual, que seria qualquer conduta que constranja a vítima a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça coação ou uso da força. O inciso III, do artigo 7º continua descrevendo condutas que configuram tal violência, inclusive, a de que a mulher tem o direito de utilizar o método contraceptivo que desejar[52].

Outrora, a mulher casada possuía um “débito conjugal” com o marido, cabendo-lhe cumprir com suas “obrigações de mulher”, ou melhor, deveria praticar relação sexual com seu parceiro/marido/companheiro sempre que assim ele desejasse, tendo em vista que seria um  dever inerente ao casamento, um exercício regular de um direito inerente a condição de marido[53].

 A violência patrimonial se configura como a conduta que retém, subtrai, destrói parcial ou totalmente seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os que são destinados a satisfazer suas necessidades e a violência moral, por sua vez, é aquela que deriva da calúnia (o agressor atribui um fato definido como crime à vítima), difamação (atribuição de fato ofensivo à reputação da vítima) e injúria (qualquer ofensa a dignidade de alguém)[54].

Os tipos de violência elencados pela lei, se apresentam como um padrão, que se denominou “ciclo de violência”, apresentando três fases: a) acumulação da tensão; b) explosão; c) lua-de-mel. A primeira fase, acumulação da tensão, dura bastante tempo e geralmente inicia com agressões verbais, provocações e discussões, que podem evoluir para agressões físicas leves. Nesse momento, a mulher assume uma postura submissa, a tensão vai aumentando até fugir do controle e dar ensejo a uma agressão física grave, ataque de fúria, chegando a fase da explosão, segunda fase. Muitas vezes, nessa segunda fase, a de explosão, a vítima chama a polícia, denúncia a violência ou foge para um local seguro. Contudo, a maioria das mulheres agredidas não procura ajuda durante este período, a menos que as lesões sofridas sejam tão graves que demandem cuidados médicos, podendo demorar alguns dias para pedir ajuda, se fizer. Passada essa fase, começa a terceira, a fase da lua-de-mel, em que o agressor, arrependido, passar a ter comportamento amoroso e gentil, compensa a vítima pela agressão. Nessa fase, a vitimização da mulher se completa, pois o comportamento amoroso dá lugar a novos pequenos incidentes de agressão, reiniciando a primeira fase do ciclo. Com o tempo, as fases vão se repetindo e a cada retomada do ciclo, a segunda fase, a fase da explosão se torna mais violenta, podendo chegar a morte dessa mulher[55].

Quando a mulher rompe o silêncio, quebra o ciclo, ela precisa de proteção imediata. Por essa razão, a lei também trouxe um rol exemplificativo de medidas protetivas de urgência, que a vítima pode se valer para se proteger[56]. O não cumprimento da medida protetiva configura crime, de acordo com a lei 13.641/2018, e sua pena é de detenção de três meses a dois anos[57].

Nada impede, também, que se o agressor for afastado do lar, como medida protetiva, mas possuir dependentes financeiros (filhos menores ou a própria companheira) que seja solicitado conjuntamente à pensão alimentícia nos moldes tutelados pelo Código Civil[58].

Anos após o surgimento da Lei Maria da Penha, percebeu-se uma lacuna: a lei, em comento, nada previa sobre a morte de mulheres pela condição do sexo feminino. O homicídio de mulheres, o ápice do ciclo da violência de gênero, era tratado como crime privilegiado, por considerar que o agressor estaria sob efeito de forte emoção, o conhecido “crime passional”.

Nos crimes morais, o agressor se sente recompensado por uma espécie de vitória, que supõe impor sua posição acima da vida da mulher assassinada. A maior ou menor ira, raiva e violência que utiliza na conduta criminosa, é uma consequência de ideias que foram se desenvolvendo no cometimento do crime, mais do que o produto de uma reação emocional, como se tentou tradicionalmente justificar mediante o “crime passional”. Apesar da carga emocional presente em muitos dos feminicídios, o agressor demonstra controle na forma em que pratica o homicídio e nos atos posteriores a ele[59].

Assim, a Lei nº 13.104/2015 inaugurou o termo “feminicídio”, tornando crime hediondo, o homicídio de mulheres, apenas pela condição de ser do sexo feminino. Esta lei modificou o código penal para introduzir um novo crime[60]. Pelo fato de ser crime hediondo, o acusado não pode ser liberado mediante fiança e é tratado com mais rigor, tanto na aplicação da pena, quanto na progressão de regime.

 A pena do crime de feminicídio é de doze a trinta anos de reclusão e pode ser aumentada de 1/3 até metade, nos seguintes casos: se a mulher estiver grávida ou depois de três meses após o parto; se a mulher tiver menos de quatorze anos ou mais de sessenta; se a mulher tiver deficiência e se o crime acontecer na presença de ascendentes ou descendentes[61]

Apesar de todo o exposto, vale considerar que os avanços legislativos são de grande importância. Contudo, é importante lembrar que a cada política pública e a cada atualização judiciária encontra-se uma sedutora e apelativa utopia de proteção, evitação e solução, como se automaticamente fosse cumprido o pacto mudo que opera o traslado da barbárie ao paraíso[62]. É o que se nomeia de “mito do Direito penal igualitário”[63], que significa que as políticas públicas e as atualizações judiciárias não são sinônimas de que se chegará à igualdade de gênero de forma imediata, tendo em vista que toda essa questão é cultural, pois nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, o principal objetivo é o de introduzir o controle, o medo e, até mesmo, o terror, ou seja, demarcar poder e autoridade, não é prioritariamente, o de lesionar[64].

Por essa razão, vale esclarecer que não se trata apenas de criar leis mais severas, ou do agravamento da legislação em vigência, mas sim de realizar uma contextualização social, vinculada ao conhecimento com intuito de realizar a aplicação das referidas normas[65].

CONCLUSÕES

A violência de gênero é uma realidade antiga na sociedade. As vítimas decorrentes desse tipo de violação, em sua maioria, são mulheres que vivenciam as agressões, em suas diversas formas, entre quatro paredes, sem nenhuma visibilidade, sem auxílio e coberta pelo manto do silêncio com a finalidade de resguardar a boa moral e os bons costumes ou até por se culpar por tudo que vive.

Com o passar do tempo, a mulher começa a ocupar espaços sociais, assumindo diversas jornadas de trabalho. Apesar disso, a influência patriarcal e machista ainda permeia os dias atuais, ainda massacra a condição feminina em diversos aspectos, ainda deposita uma responsabilidade quase que exclusiva na administração da família e do lar, ainda exige a procriação, como se ser mulher fosse sinônimo de ter filhos, ainda é realidade a divergência salarial e os números ainda são minoritários na ocupação de cargos de poder.

O patriarcado é cultural e prejudicial não só as mulheres, tendo em vista que a própria masculinidade é testada diariamente pelos padrões impostos socialmente, bem como a vulnerabilização da mulher é uma realidade e quase que uma imposição para o cumprimento desses mesmos padrões.

Ademais, ser mulher é uma questão de gênero, ser mulher não significa nascer do sexo feminino. Não é uma questão biológica, é um questão de identificação social. Por essa razão, é preciso desenvolver mecanismos de enfretamento a violência de gênero contra a mulher, para garantir a proteção de seus direitos fundamentais, inclusive o direito a isonomia, que deve ser interpretado de maneira ampla.

Apesar dos marcos legislativos, as subnotificações é um fato que cerca esse tipo de violência e devem ser levadas em consideração, reafirmando, inclusive, ser um aspecto histórico e cultural.

Esse tipo de violência se apresenta de forma cíclica, repetitiva, e enquanto houver a perpetuação da cultura patriarcal, dos estereótipos, não haverá o real rompimento do ciclo, não deixará de ser a violência do silêncio. 

A partir de mecanismos legislativos, tenta-se garantir os direitos humanos a essas mulheres vítimas. Contudo, sabe-se que é uma questão de conscientização social muito maior do que de criações de meios punitivos mais severos ou de legislações sobre o tema, pois, através de políticas públicas, é possível pulverizar na sociedade a consciência para a construção de espaços de igualdade com ênfase na dignidade da pessoa humana.

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