PENSANDO COMO UM NEGRO E A REIVINDICAÇÃO DE UMA CRIMINOLOGIA A PARTIR DA SUBALTERNIDADE

PENSANDO COMO UM NEGRO E A REIVINDICAÇÃO DE UMA CRIMINOLOGIA A PARTIR DA SUBALTERNIDADE

28 de julho de 2022 Off Por Cognitio Juris

THINKING LIKE A BLACK MAN AND THE CLAIM FOR A CRIMINOLOGY FROM SUBALTERNITY

Cognitio Juris
Ano XII – Número 41 – Edição Especial – Julho de 2022
ISSN 2236-3009
Autor:
Ícaro Melo dos Santos[1]

RESUMO: Nos últimos anos a crítica ao sistema penal tem colocado as questões raciais no debate criminológico brasileiro. No entanto, a análise a partir da subalternidade ainda é pouco explorada neste campo. Para tanto, propomos explorar introdutoriamente as aproximações entre a proposta da hermenêutica negra/do oprimido e a criminologia crítica brasileira como um caminho de aperfeiçoamento da própria criminologia. Assim, utilizamos do método exploratório, identificando os principais autores que tratam do tema do campo e verificando, ainda que introdutoriamente, as questões principais que envolvem as relações raciais no Brasil. Ao final, percebemos que existe um debate colocado à mesa para repensarmos os espaços de poder e os sujeitos que o integram na produção de conhecimento.

Palavras-chave: Subalternidade. Criminologias. Relações Raciais.

ABSTRACT: In recent years, criticism of the penal system has placed racial issues in the criminological debate. The analysis based on subalternity is still little explored in the Brazilian criminological field. In order to do so, we propose to explore the similarities between the proposal of black hermeneutics and Brazilian critical criminology as a way of improving criminology itself. Thus, we used the exploratory method, identifying the main authors that deal with the field theme and verifying, even if introductory, the main questions that involve race relations in Brazil. In the end, it was possible to perceive that there is a debate on the table for us to rethink our own spaces of power and knowledge production.

Keywords: Subalternity. Criminologies. Race Relations.

INTRODUÇÃO

            As criminologias[2] tem se debruçado acerca das diversas temáticas interdisciplinares existentes nos seus objetos de estudo. No entanto, a construção do conhecimento a partir da subalternidade ainda é um cenário que precisa ser fomentado na academia brasileira, em especial, nos espaços que se propõem a discutir políticas públicas.

          Nesse contexto, temos por intuito discutir a produção criminológica no Brasil sob a ótica da subalternidade, de modo geral. E, de modo específico, sobre crítica a criminologia crítica com as questões raciais. Em outros termos, questionamos se o campo criminológico brasileiro tem buscado uma superação — ou pelo menos um avanço — na inserção de temas correlatos a subalternidade, preocupando-se com o sujeito enquanto produtor do conhecimento criminológico e não meramente objeto a ser investigado.

          Optamos, inicialmente, pelo caráter exploratório desta pesquisa, por duas razões: o (re) conhecimento individual enquanto sujeito negro pesquisador e o esforço introdutório e interdisciplinar entre o campo hermenêutico e o criminológico, não excludentes, mas complementares. Para tanto, percorremos o seguinte caminho metodológico: a) seleção preliminar das bibliografias disponíveis — no meio físico e/ou na internet —, a fim de que fosse possível e suficiente para construir o referencial teórico, especialmente, em relação ao filtro: (i) hermenêutica negra; (ii) subalternidades; (iii) criminologias; b) leitura e fichamento dos materiais encontrados; c) análise das proximidades identificadas; d) exposição dos resultados na construção de um artigo científico.

          Por fim, para expor os nossos achados introdutórios, estruturamos o artigo em dois momentos: no primeiro, buscamos destacar os aportes teóricos acerca dos significados de subalternidade e a sua relação de importância para o ensino jurídico e para o campo criminológico; no segundo, buscamos reunir discussões já existentes sobre as novas abordagens criminológicas e a crítica a ausência de maior proximidade entre a criminologia crítica e as questões raciais. Por fim, as considerações finais.

I — REIVINDICANDO O OLHAR A PARTIR DA SUBALTERNIDADE

          Reivindicar o olhar do subalterno não significa, necessariamente, que o indivíduo seja integrante de uma ou várias minorias. Mas, é preciso reconhecer que aquele que pertence a alguma ou várias dessas possui um olhar peculiar sobre o mundo. Esse olhar é o olhar do subalterno.

          Adilson Moreira (2019), em Pensando como um Negro, estabelece que o jurista que pensa como um negro busca enxergar o direito, compreendê-lo e aplicá-lo a partir do ponto de vista de um subalterno. Em síntese, pensar como um negro significa retirar as lentes liberais e formalistas que nos entregaram  uma única forma possível de enxergar o mundo jurídico e adotar uma visão teórico-metodológica que enxerga o direito como “um instrumento de transformação, o que inclui a consideração da situação social e política dos grupos afetados por normas jurídicas e práticas sociais”. (MOREIRA, 2019, p. 287)

          Pensar como um negro, portanto, é o ponto de partida para um olhar a partir da subalternidade. O ato de pensar não se traduz, exclusivamente, no exercício de se debruçar acerca das abstrações da vida em coletividade. Apesar de que, ao negro — e aos mais variados integrantes de minorias — muitas vezes foi — e ainda é — retirado a sua possibilidade de ser um sujeito que pensa acerca da realidade que vive e da realidade que deseja viver.

Porém, mais do que isso, pensar como um negro é um pensar para a práxis transformadora da realidade. O emprego do “como um negro”, trazido por Moreira (2019), permite aos sujeitos que não são negros pensarem como um. Mas, nos espaços acadêmicos — em outros espaços também — é preciso: (i) pensar com o negro; (ii) permitir que o negro pense. Sem o protagonismo e a inserção dos subalternos nos espaços toda a representação da subalternidade não passará de migarem argumentativa e abstrações. Assim é preciso essa reivindicação de pensar como um subalterno, mas também trazer o subalterno aos espaços de pensamento.

          Nesse contexto, a sistemática proposta por Moreira (2019), que é negro, busca trazer ao debate brasileiro — em um acúmulo com outros teóricos que também pensam a partir da subalternidade — a formação e consolidação de um campo de estudo compreendido como Hermenêutica Negra, na qual as suas premissas podem ser visualizadas no quadro 1 a seguir:

Quadro 1 — Premissas da Hermenêutica Negra
Premissas 
1Interpretação: rejeita o individualismo e formalismo como parâmetros adequados e suficientes para análise da legalidade das normas jurídicas e práticas sociais.  
2Papel do Estado: agente de transformação social.  
3Fundamento da atuação estatal: baseia-se na dignidade humana e, portanto, deve atuar de modo a combater os estigmas culturais associados à população negra.  
4Propósito: afastar uma interpretação procedimental de igualdade e eliminar meios de subordinação e fomentar meios de inclusão racial.  
5Postura: ênfase no caráter anti-hegemônico dos direitos fundamentais.  
6Métodos: Busca por métodos alternativos para atingir o objetivo de ação transformadora e contra-hegemônica.  
7Raça: é uma marca social a partir da qual as relações de poder são articuladas entre membros dos grupos raciais dominantes e membros de grupos raciais subordinados.  
8Racismo: possui natureza dinâmica, ou seja, pode adquirir novas formas, na medida em que as suas manifestações são reconhecidas e denunciadas.  
9Análise: importância do contexto histórico e político em que as pessoas estão situadas
 Fonte: elaborado pelo autor a partir de Moreira 2019, p. 39–40

          Essa sistematização da hermenêutica negra é importante, pois estabelece premissas a serem consideradas no campo jurídico, sobretudo, dos esforços daqueles que pensam como um negro. Moreira (2019, p.50) destaca que a possibilidade de transformação política é minada quando não há reconhecimento dos vínculos entre as pessoas que possuem a mesma experiência social. Isso faz com que exista uma condição de alienação, a qual diz respeito a imposição de comportamentos por outros sujeitos acerca dos membros pertencentes a minorias raciais ou sexuais.

          A partir do Storytelling, Moreira (2019) relata e dá voz aquilo que a maioria de nós — ou todos nós — já enfrentamos em algum momento das nossas vidas. A construção da identidade negra e os percalços que enfrentamos para reconhecê-las. E, além disso, a dificuldade em enxergar as promessas de um “juridiquês” formalista, branco e engravatado no nosso cotidiano.

          Reivindicar a experiência e olhar da subalternidade para o direito e, especialmente, para a criminologia tem por intuito trazer ao vocabulário “juridiquês” aquelas palavras que, por muito tempo, foi objeto de silenciamento tais como discriminações, racismo, desigualdades, sexualidades, etc. 

          A inquietação de um cenário de reivindicação da subalternidade, parte da necessidade de repensarmos as nossas próprias produções criminológicas, sobretudo, em razão dos programas de ações afirmativas dos últimos anos, cujo propósito dessas instituições é “conhecer qual é a experiência social de diferentes membros da sociedade para que o sistema jurídico possa atuar de forma mais efetiva” (MOREIRA, 2019, p. 67).

          O processo de empoderamento, conceito utilizado por Moreira (2019, p. 68), aponta ser um momento de tomada de consciência das várias formas de opressão que, muitas vezes, causam um abatimento emocional no indivíduo, mas que, ao mesmo tempo o compartilhamento dos trabalhos realizados para a própria comunidade é um mecanismo de fortalecimento de todos os membros.

          Mas, afinal de contas, para que serve olhar a partir da subalternidade? Qual é a importância da experiência social destes indivíduos no espaço de produção do conhecimento?

          Uma das apostas é a de que a inserção das minorias em sentido amplo pode analisar fenômenos jurídicos que não são perceptíveis para aqueles que não sofrem de determinada experiência social discriminatória. Não significa, por óbvio, que aqueles que não as sofrem não podem produzir pesquisas relacionadas a tais temáticas. Mas sim de que os problemas de pesquisa, as agendas e os métodos de pesquisa são enriquecidos.

          Esse olhar de reivindicação, apesar de aclamado pela comunidade jurídica, principalmente na formulação de políticas públicas, não pode ficar no devaneio retórico que permeia os espaços de poder político e de produção intelectual. Aquilo que Barcelos (2008) afirma sobre gastos de recursos públicos, isto é, quanto gastar, com que finalidade gastar, em que gastar e como gastar, não pode ser dado no vácuo, sobretudo, ao se tratar de formulações criminológicas ou de políticas criminais.

          Se existe, de fato, uma aproximação entre as políticas públicas e o modelo de Estado conforme aponta Bucci (2002) é necessário também dialogarmos com a hermenêutica negra, no sentido de identificar o papel do Estado como agente de transformação social.

          Na fase de formulação, implementação e análise de políticas públicas Coutinho (2013) enxerga o direito como vocalizador de demandas, em que busca assegurar a participação de todos nesse ciclo. Essa é a dimensão participativa. Aqui, talvez, exista um espaço de provocação quando se fala sobre políticas públicas criminais.

          Quem são aqueles que podem participar dos debates sobre a formulação de políticas públicas criminais? É possível pensar outras alternativas para além da criminalização? Se sim, quem são os responsáveis por pensá-las? Como os sujeitos atingidos pela punição do Estado pode reivindicar e serem ouvidos?

          As respostas tradicionais a esses questionamentos estão postas na prática cotidiana das instituições e dos seus agentes. Para os amantes do punitivismo que move, muitas vezes, a formulação, implementação e análise de políticas públicas seria muito audacioso, então, questionar ao sujeito custodiado pelo Estado o que ele pensa sobre o modo do seu cumprimento de pena?

          Nos espaços de debate ouvimos com muito afinco o que os promotores, juízes, defensores públicos e pesquisadores tem a dizer sobre estas políticas públicas criminais. Mas tapamos os ouvidos para os demais sujeitos interessados no modo de (re) pensar as ciências criminais. Não teria nada a dizer ‘os criminosos’, os seus familiares, etc.?

          Tal debate é, de fato, complexo. Mas não podemos dizer que pretendemos ser democrático e participativo no ciclo de políticas públicas excluindo os sujeitos. Ou somos interessados de fato na participação dos indivíduos, ou isso não passa de um recurso retórico e abstrato, como muitas vezes é, para legitimar escolhas pré-determinadas em grupos de poder estabelecidos na sociedade.

          Pensemos, por exemplo, no sujeito condenado criminalmente. Perderia ele o direito de participar de uma das fases do ciclo de políticas públicas? Se a resposta for afirmativa, a perda se daria somente no espaço fora do cárcere ou, em relação as políticas públicas dentro do cárcere, ele estaria — e deveria — ser legitimado para participar de formulação, implementação e avaliação das políticas públicas que o afetaria? É somente quem está de fora da condição de encarcerado que é ‘iluminado’ para pensar a melhor forma de, por exemplo, ressocializar quem vive lá dentro?

          As respostas para essas perguntas acima podem ser várias e tentar respondê-las fugiria do escopo deste trabalho. Todavia, para que a costura de ideias fique clara, o que estamos a dizer é que: a reivindicação da subalternidade e uma hermenêutica negra contribui para uma melhor compreensão das criminologias e também para a formulação de políticas públicas, sobretudo, daquelas que envolvem o aparato criminal.

          Essa concepção retira de cena a ideia de objetividade e generalização para toda e qualquer política pública. Não por outra razão que Moreira (2019), deixa claro os problemas de se pensar numa objetividade normativa, sobretudo, ao se tratar de raça, pois constrói uma ideia de sujeito apenas abstrato, isto é, aquele que não existe na realidade concreta. A sua conclusão é de que

A suposta irrelevância da raça na nossa sociedade aparece como um fato que carece de discussão porque representa um consenso social que não pode ser negado. Essa falsa percepção da realidade que estrutura essa objetividade normativa decorre em certa parte do problema da percepção dos seres humanos como pessoas que tem experiências homogêneas, motivo pelo qual o problema do racismo permanece invisível para esses indivíduos. (MOREIRA, 2019, p. 148)

            Nesse sentido, a problemática de percepção da realidade também está presente em parte daqueles que se propõem a discutir sobre a criminalidade. Em outros termos, a imagem geralmente é a seguinte: um homem hétero, branco e classe média, no seu computador com duas telas: de um lado, os autos e a norma, de outro, na subsunção da norma ao sujeito abstrato, tem-se a solução completa: achamos o criminoso. Esse que, geralmente, não possui o perfil daqueles que produz a norma, pensa sobre a norma e aplica a norma.

          A construção de pretensa objetividade e abstrações permite aos indivíduos que lidam com a práxis acadêmica e profissional acreditar que o modo como conduzem a realidade nada tem a ver com as suas socializações e experiências de vida. A desconstrução dessa pretensa objetividade vem sendo objeto de estudo em várias pesquisas empíricas no Brasil. Na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, temos alguns exemplos: Rodrigues (2019) ao tratar sobre estereótipos sobre transgêneros nas sentenças e o mito do juiz racional; Funchal (2018) ao destacar os fatores extrajurídicos que influenciam na tomada de decisão judicial acerca da prisão preventiva; Giansante (2018) sobre os reflexos dos estereótipos e discursos sobre os usuários de drogas  nos processos judiciais; Almeida (2017) ao discutir os estereótipos de gênero sobre mulheres vítimas de estupro.

          Essas autoras e autores não partem, necessariamente, da hermenêutica negra. No entanto, contribuem para o objetivo comum que compartilhamos: rejeição do mito da neutralidade nas pesquisas e na práxis do direito. E, ainda, contribuem para o processo de consolidação da pesquisa empírica em direito sobre temas que envolvem a subalternidade.  

          Nesse contexto, destacamos existir uma falácia de que a questão racial não estaria presente na decisão de um magistrado, sobretudo em segunda instância, pois há um menor contato entre o juiz e o acusado. Afirmações como essa estão próximas das ideias de objetividade e neutralidade e, no fundo, é o que constitui o jurista branco.

          Moreira (2019, p. 149) afirma que o jurista branco é aquele que: (i) possui sua atuação prática/profissional/acadêmica a partir de uma metanarrativa carente de sustentação dentro da realidade; (ii) enxerga o conhecimento da realidade de maneira objetiva, isto é, basta que o sujeito utilize uma metodologia adequada; (iii) não fala a partir de uma neutralidade porque é ideológico tal como qualquer outro indivíduo.

          Até aqui, mencionamos os aspectos gerais da hermenêutica negra e o modo como os novos caminhos científicos tem nos colocado a repensar as ideias nos diversos campos de pesquisa, especialmente, ao se tratar sobre subalternidades. Essa tentativa tem por objetivo demonstrar os diálogos com campos não estritamente criminológicos, mas que com esta dialoga.

          É nesse sentido que questionamos acerca das proximidades de um olhar a partir da subalternidade para a criminologia. A criminologia é uma ciência empírica e, como tal, exige um olhar para dentro da realidade. Todavia, se o campo é composto apenas por juristas brancos – e que na maioria das vezes – pensam como brancos, o enxergar desta realidade será deturpado, pois considerará as experiências entre os indivíduos como se fossem homogêneas.

          Nessa seara, o Direito Antidiscriminatório possui diversos fundamentos, conforme ensina Moreira (2020), dentre eles destacamos os fundamentos filosóficos essenciais de: (i) justiça, na qual não parte do pressuposto da homogeneidade de experiências sociais ou concepções universalizantes; (ii) liberdade, na qual reconhece os indivíduos como inteiramente capazes e eficazes de atuar no espaço público de forma competente; (iii) dignidade, no qual preza pelo desenvolvimento pleno do ideal de autenticidade e da determinação pessoal.

          Como a criminologia é um campo interdisciplinar por natureza, a sedimentação do Direito Antidiscriminatório no Brasil, tende a ser frutífera. Na medida em que seus pressupostos filosóficos podem, em certa medida e ressalvada as devidas divergências existentes, contribuir para pensarmos o fenômeno criminal sob uma ótica distinta e concreta.

           A hermenêutica do oprimido[3] é responsável por tocar em temas que são deixados de lado pelas analises tradicionais. Nesse contexto, muitos pesquisadores e pesquisadoras são membros de grupos minoritários e afirmam a necessidade de repensar os pressupostos liberais de imparcialidade, neutralidade e objetividade, uma vez que tais concepções reproduzem a opressão. Assim, os operadores do direito – tais como quaisquer outros operadores – são agentes que possuem suas ideologias e suas interpretações sobre as normas e sua aplicação na realidade não são isentas. (MOREIRA, 2020)

          Moreira (2020) exemplifica alguns dos movimentos que contribuem para esse pensamento crítico às perspectivas hermenêuticas tradicionais, ressalvando a variedade de posições dentro do grupo de autoras e autores que se debruçam acerca da temática. São eles: (i) o pensamento jurídico feminista, no qual afirmam que existe um domínio masculino na maioria das instituições e, por essa razão, a sociedade é essencialmente patriarcal e opera a partir desse patriarcado; (ii) o papel da raça no processo interpretativo, no qual a raça é um marcador social de poder e serve como estratégia ideológica de dominação e a perpetuação de desigualdades de certos grupos; (iii) intelectuais LGBTQIA+, no qual propõem uma nova forma de interpretação da igualdade, crítica constante a heterossexualidade institucionalizada como forma de acesso a direitos, o debate sobre a patologização da identidade homossexual pelo sistema jurídico.

          Essa exemplificação permite demonstrar que as contribuições teóricas destes grupos são importantes, seja para o constitucionalismo como ponto central do aspecto jurídico dentro de um estado democrático de direito, seja na interpretação e (re) formulação teórica da criminologia dentro deste mesmo estado democrático de direito. 

          Moreira (2020), ainda, destaca os pressupostos epistemológicos da hermenêutica do oprimido. Ele destaca o ponto comum das críticas realizadas pelos grupos subalternizados:

as doutrinas do liberalismo e do individualismo como perspectivas de interpretação de normas jurídicas, o pressuposto da neutralidade das normas jurídicas por serem produto de processos deliberativos adequados, a pressuposição de que os intérpretes podem realizar julgamentos objetivos por meio da aplicação das normas jurídicas de acordo com as características do caso concreto. (MOREIRA, 2020, p. 308 – grifo nosso)

          Essas pressuposições são caras a todas e todos os estudiosos das ciências criminais, pois são caracterizadas a partir de estigmas, utilizados por todos os sujeitos que envolvem o processo de envolvimento social. A sociedade espera que o juiz seja objetivo no caso concreto, na mesma medida que – intencionalmente ou não – pensam que o sujeito subalternizado seja um delinquente. 

          A hermenêutica do oprimido, portanto, assume que o processo interpretativo dado pelo judiciário e seus diversos membros tem uma dimensão política, essa entendida a partir do desenho constitucional estabelecido. Assim, tais sujeitos não falam a partir de uma neutralidade, bem como existem diversas relações e disputas de poder. (MOREIRA, 2020)

          Nesse contexto, percebemos que o olhar a partir da subalternidade exige das estudiosas e dos estudiosos do direito, em especial daqueles que se dedicam aos estudos das ciências criminais, uma aproximação entre a hermenêutica do oprimido e do pensar como um negro. Embora a tradição criminológica, conforme demonstraremos na seção seguinte, tenha uma crítica constante a subjetividade e discriminações, ainda há muito no que se pensar, teorizar e testar sobre a inclusão dos subalternos neste campo específico.

II – ASPECTOS DA CRIMINOLOGIA A PARTIR DA SUBALTERNIDADE

          Para pensarmos acerca dos aspectos da criminologia a partir da subalternidade, primeiro, trouxemos a possibilidade da existência de criminologias, no plural. Depois, tratamos especificamente da crítica a criminologia crítica e a necessidade de incluir a subalternidade como marco estruturante das relações sociais no Brasil.

II.I CRIMINOLOGIAS E A RECEPÇÃO DE NOVAS ABORDAGENS

          O entendimento acerca daquilo que seja a criminologia não é linear e homogêneo. Shecaira (2020) conceitua a criminologia como um nome genérico o qual tem por intuito: (i) o estudo e a explicação da infração legal; (ii) os meios formais e informais os quais a sociedade se utiliza para lidar com o crime e com atos desviantes; (iii) o modo como a vítima de crimes são atendidas pela sociedade e, por fim, (iv) estudo do autor dos fatos desviantes.

          Nesse sentido, a criminologia pode ser vista sob duas visões distintas: a) como saber, com um objeto próprio e b) como práxis, o qual “constitui o mais efetivo instrumento de crítica ao mito da neutralidade ideológica do Direito Penal bem como autoriza a deslegitimação da pena de prisão com instrumento principal de controle social das sociedades periféricas.” (SHECAIRA, 2019, p. 42).

          Há, ainda, distinções entre as criminologias conservadoras e as criminologias alternativas críticas. As primeiras são aquelas que buscam a preservação do status quo, seja de modo deliberado, seja por descuido. Ainda, há uma ótica maior para a exploração dos pobres e impotentes pelos ricos e poderosos. As últimas, perpassam pela necessidade de desconstrução das ideias construídas acerca dos significados do crime e da justiça social a fim de descortinar e expor as relações entre desigualdades estruturais sociais, as injustiças criminais, as leis e, ainda, as diversas identidades humanas. (CARLEN, 2017)

           Carlen (2017, p. 29) identifica que a maturidade da criminologia permite uma menor insistência na ênfase das diferentes criminologias existentes. E, por essa razão, o que se busca as criminologias alternativas é seu “objetivo unificador fundamental do tralho criminológico não é a teorização competitiva da justiça criminal, mas a realização democrática da justiça social”.

          Carlen (2017) sustenta que o surgimento das criminologias alternativas é fruto da luta contínua por justiça. Entendemos, nesse contexto, que tal luta contínua por justiça deve estar atrelada a um novo olhar hermenêutico sobre o direito, entendido como um instrumento de modificação da sociedade, apesar das críticas e descrenças que envolvem essa afirmação. Nesse cenário, uma provocação feita por Carlen (2017) está na relação entre os criminólogos alternativos críticos acadêmicos e a formulação de políticas entre sua credibilidade acadêmica e interpretações radicais.

          Um alerta importante é dado quanto à cultura corporativista da pesquisa que pode ter como enfeito, dentre diversas coisas, na redução das criminologias alternativas críticas, nas criminologias que partem de métodos qualitativos e na pesquisa bibliográfica teórica (CARLEN, 2017, p. 596). Carlen (2017) se refere a um contexto de mercantilização das universidades nos EUA, Reino Unido e outros lugares.

          Apesar do nosso contexto ser outro, no sentido de financiamentos privados de pesquisas, pensamos que os efeitos podem ser parecidos, por exemplo, quando o Governo Federal elenca áreas prioritárias majoritariamente e/ou exclusivamente tecnológicas para financiamentos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

          As investigações criminológicas alternativas, portanto, ficam asfixiadas nessa lógica. Isso faz com que haja “uma diminuição em qualquer pesquisa não vista como tendo impacto político imediato; uma diminuição de investigações teóricas, bibliográficas e outras de menor escala […]” (CARLEN, p.598)

          Sob essa ótica de impacto, pesquisas da subalternidade, por exemplo nascem, primeiramente, em universidades que se dirigem para a crítica teórica e utilizando-se de métodos qualitativos. (CARLEN, p. 6143). O pano de fundo, portanto, é a necessidade de manter o alerta para nossas produções acadêmicas, sobretudo, quando se trata de temas importantes para a sociedade que, a depender dos espaços de poder dominados pelas elites, sequer serão pautas de suas agendas de pesquisas.

II.II SUBALTERNOS PARA A CRIMINOLOGIA E CRIMINOLOGIA DOS SUBALTERNOS

          A subalternidade para a criminologia foi tida como objeto, ou seja, podemos analisar: o delito, o delinquente, a vítima e o controle social que afligem os subalternos. Mas, por outro lado, encontrar a subalternidade como ponto de partida no debate nas ciências sociais e, especialmente, na criminologia é um desafio que ainda precisamos superar.

          Ao dizer sobre uma criminologia dos subalternos não estamos, por óbvio, reivindicando uma “nova corrente criminológica”. Mas sim uma mudança de postura do debate criminológico a partir da subalternidade. Isso significa que a ótica das produções críticas na criminologia precisa, urgentemente, considerar as noções de subalterno enquanto sujeito produtor do conhecimento a partir do seu lugar.

          Ribeiro (2017, p. 22) destaca a existência de “um olhar colonizador sobre nossos corpos, saberes, produções e, para além de refutar esse olhar, é preciso que partamos de outros pontos”, a qual produz implicações conhecidas.

          Uma dessas implicações pode ser exemplificada quando um sujeito pertencente a alguma minoria pretende submeter um projeto de pesquisa a um programa de pós-graduação composto por pessoas majoritariamente: branca, hétero, cis e pertencentes a classe média-alta, e aquele elenca seu ponto de partida. Geralmente, a primeira crítica recebida está na “neutralidade” necessária da ciência, a qual que se exige da pesquisadora e do pesquisador. Ora, parece consenso dizer que imparcialidade e ligeiro afastamento do objeto da pesquisa é possível, mas “neutralidade” é uma – senão duas – conversas para bovino cochilar.

          Nesse sentido, Moreira (2019) ao questionar qual é o lugar da raça na interpretação jurídica destacou que não raras vezes as pessoas dizem que trazer raça como aspecto central não se está a falar de temas jurídicos. Ele destaca que

professores negros enfrentam um problema moral que está relacionado com sua condição racial: o constante dilema sobre a escolha entre falar a partir de uma voz diferente ou a partir da mesma perspectiva de juristas brancos. Muitos dos juristas brancos que recebem títulos de mestre e doutor não escrevem sobre temas que poderão ter impacto um impacto sobre a vida de grupos minoritários. Eles também só fazem referência a autores consagrados, autores que são quase sempre brancos.(MOREIRA, 2019, p. 154 – grifo nosso).

          Nesse contexto, Ribeiro (2017) destaca, a partir de Collins (1997), que os pontos de partida, isto é, de onde enxergarmos o mundo não está ligado – única e necessariamente – as experiências individuais, mas sim nas condições sociais existentes que permitem ou impedem que os grupos marginalizados acessem espaços de privilégios.

          Nessa ideia de ponto de partida – ou lugar de fala – há convergência para a proposta de uma criminologia a partir da subalternidade. Em outros termos, a gênero, raça, classe e sexualidades são temas que ao longo do percurso da tentativa de um olhar criminológico científico estiveram silenciados e estigmatizados.

          Se a criminologia tem por método a investigação empírica, não nos parece ser um problema partir – e inclusive reivindicar – a condição de sujeito pesquisadora e pesquisador do seu local de observação. Em outros termos, por exemplo, o subalterno que pretende analisar questões raciais no sistema penal pode – e deve – afirmar desde o início que as instituições são racistas.

          Existem alguns pontos do racismo na produção científica e criminológica que nos parece importante destacar para compreendermos a ideia da produção crítica a partir da subalternidade. Um deles é de que as pesquisas criminológicas abraçam a perspectiva racial como um objeto discursivo interessante, mas por vezes desconsidera o sujeito racializado como potencial pesquisadora e pesquisador, uma vez que os métodos de seleção das instituições de pesquisa – não só criminológicas, claro – impedem que os subalternos produzam conhecimento a partir da sua ótica.

          Algumas ressalvas, no entanto, precisam ser feitas. Ao reivindicarmos uma pesquisa criminológica a partir da subalternidade estamos dizendo sobre pontos de partida. Ou seja, o indivíduo parte de seus acúmulos e experiências para enxergar seu objeto de pesquisa. Isso não significa, necessariamente, que o indivíduo subalterno tenha que, obrigatoriamente, ser especialista em subalternidades.

          E, talvez, seja esse um dos efeitos perversos do racismo. Se antes não nos enxergavam como sujeitos capazes de fazer pesquisa e, tampouco, de ocupar os espaços de produção de conhecimento. Agora, não incomumente, nos colocam como os únicos responsáveis pelo debate das subalternidades nos espaços, numa espécie de incapacidade de falar sobre outros temas de igual complexidade.

          Temos, é verdade, inúmeros subalternos e subalternas escrevendo sobre aquilo que nos afeta diariamente. Mas isso está longe de ser incapacidade – como a branquitude, muitas vezes, faz parecer. Na criminologia, a maioria de nós encontramos um refúgio teórico interdisciplinar e de luta.  

          Por esse contexto também Ribeiro (2017) destaca a crítica que, muitas vezes, são apontadas aqueles que propõem e/ou reivindicam um olhar a partir da subalternidade, sobretudo, por individualizar a teoria como fuga dos processos sociais desiguais. Afirma, com razão, que:

as experiências desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e não humanizada faz com que as produções intelectuais, saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado, além das condições sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente. (RIBEIRO, 2017, p. 36)

          Pensamos, igualmente, que as hierarquias e desumanização dos sujeitos não fogem dos grandes centros de produção criminológica brasileira. Ribeiro (2017) destaca uma relação entre não ter acesso a tais espaços e, por consequência, a ausência de produções e epistemologias desses grupos nos espaços de poder. Em outros termos, a subalternidade serve como objeto, mas muitas vezes, não serve como centralidade de produções acadêmicas.

          No campo criminológico, especialmente na criminologia crítica, alguns autores destacam essa aproximação com as relações raciais. Dentre vários, destacamos Evandro Piza (2016), Ana Flauzina (2008), Felipe Freitas (2016), Thula Pires (2017), Camilla Prando (2018).

          Ao discutir sobre questões raciais e criminologia no Brasil, Freitas (2016) alerta que, apesar da recepção da criminologia crítica no Brasil, a partir de uma ótica daqueles que são selecionados pelo sistema criminal, não foi suficiente para

proporcionar um debate sério sobre as questões raciais e sistema penal, nem para promover uma qualificada aproximação entre a criminologia crítica e as agendas do movimento negro e suas denúncias sobre o caráter estrutural do racismo na sociedade brasileira (FREITAS, 2016, p. 491)

          Thula Pires (2017) coloca à mesa o chamado pacto narcísico, o qual pode ser verificado no campo dos estudos criminológicos. Nesse sentido, defende que não houve o rompimento, por parte da criminologia crítica, com o “acordo tácito entre os brancos de não se reconhecerem como parte absolutamente essencial na permanência das desigualdades raciais no Brasil” (BENTO, 2002, p. 26, apud THULA, 2017, p. 542-543)

          Nesse contexto, Pires (2017) traz ao debate a necessidade de racializar a crítica criminológica. Isso traduz em, pelo menos, dois caminhos. O primeiro, no impedimento de que o branco se coloque como sujeito universal. O segundo, a percepção de outros efeitos do racismo na dominação e opressão. Não obstante, afirma que

Objetivamos interpelar as narrativas criminológicas produzidas de um lugar que não se compromete com o racismo em suas mais variadas formas de expressão, aqui sinalizadas pelas dimensões da colonialidade do ser, do poder e do saber, e que insistem em reproduzir sua análise a despeito e acima do grito dos corpos negros que, há tempos, reivindicam integrar a discussão de maneira horizontal. Ao invés de inviabilizar a conversa, pretende-se que ela possa efetivamente acontecer. (PIRES, 2017, p. 543)

A hipótese de Pires (2017), na qual também concordamos, é de que embora exista distinções e desencontros entre as críticas produzidas entre a criminologia e dos movimentos negros, há mais coisas que nos unem, do que coisas que nos separam. No entanto, a condição necessária é repactuar nossas premissas e os privilégios sejam colocados a mesa.

Prando (2018) afirma que a temática racial é marcada, pelos estudos criminológicos críticos brasileiros, na análise do negro enquanto o outro racializado. No diálogo estabelecido com Carvalho (2006, apud Prando, 2018), destaca o confinamento racial da academia brasileira e a ausência de negros nos espaços de produção de conhecimento. Não obstante, Prando (2018, p.76) destaca que “nessas relações raciais a branquidade é o lugar privilegiado de onde se definem e subordinam os “outros” racializados, que serão considerados hierarquicamente inferiores.

 Zuberi e Bonilla-Silva (2008, apud Prando, 2018) afirmam que as ciências sociais produzem conhecimento por meio de uma lógica branca e métodos brancos. Nesse contexto, “lógica branca é o raciocínio racializado que serve como suporte de análises dos dados empíricos. E método branco são as práticas e ferramentas que produzem dados e sustentam a ordem racial hierarquizada. (PRANDO, 2018, p. 78)

Ainda, Prando (2018) arrisca dois efeitos da lógica e métodos brancos na produção do conhecimento do campo: (i) apresentação da raça como a identificação do outro; (ii) resistência do tratamento do “outro racializado”, o negro, como sujeito político e como sujeito da academia.  Esse último efeito, para nós, tem aproximações com a ótica de uma criminologia a partir da subalternidade. Para Prando (2018, p.80) “o corpo negro, para os estudos criminológicos, é objeto do controle penal. Mesmo que em tom de denúncia, ‘o outro’ racializado narrado pela academia criminológica branca é um ‘outro’ homogêneo, quase dado por morto.”

          Compreendemos que, pensar como um negro, possibilita uma tentativa de ruptura, apesar das limitações da realidade, com aquelas premissas epistêmicas e de racionalidade daquele “jurista que pensa como branco” como afirma Moreira (2019).

           No Brasil, especificamente, Gindri (2018) faz uma importante análise sobre as disputas dóxicas no campo da criminologia crítica brasileira, a partir da revista Discursos Sediosos. Para ela, Ana Flauzina (2008) disputa o que chama de metacriminologia e assume – em primeira pessoa – as disputas de dimensões de raça, gênero, classe e sexualidade, as quais são chaves de compreensão do controle penal. 

          Duarte (2016) destaca os paradigmas em criminologia e relações raciais. Propõe a existência de três grandes momentos: (i) emergência do paradigma etiológico e sua relação com as teorias raciais; (ii) a teoria da reação social e a compatibilidade com as teorias críticas ao racismo; (iii) seletividade e cinismo político da sociedade. O autor conclui que “as teorias sobre o racismo devem conduzir a Criminologia Crítica para uma teoria complexa sobre as relações de poder, superando-se as concepções economicistas da teoria social”

          Ademais, Duarte (2016) deixa explicito que as teorias sobre raça e as teorias sobre a criminalidade se vincularam na gênese do Estado Moderno/Colonial.  Sobre a descoberta da Raça, Duarte afirma que

a descoberta da raça somente foi possível com o ocultamento, garantida por um pacto racista, da sua irracionalidade. De fato, o seu distanciamento das regras classificatórias da época era conhecido desde o início e nunca foi um mero erro de cientistas marcados por suas boas intenções para com a compreensão da condição humana. Desde o seu surgimento, a raça foi um conceito político, servia para justificar relações de poder. (DUARTE, 2016, p. 508 – grifo nosso)

          Tanto Duarte (2016), ao dizer sobre o pacto racista, quanto Pires (2017) pacto narcísico, evidenciam a academia como um espaço que pode utilizar e justificar a raça como um elemento para manutenção e perpetuação das relações de poder. Em especial ao discurso criminológico, Duarte (2016) destaca que

o racismo do discurso criminológico pode ser considerado uma das inúmeras facetas do racismo, mas ele vivenciou e se acoplou a diferentes e novas relações de poder. Não pode haver uma simples identidade entre ambos os discursos, pois os termos de comparação não são absolutamente não-contraditórios. […] O discurso criminológico, assim como o racial, reproduziam, com maior ou menor intensidade, a exclusão e a vontade de disciplinamento dos que não se conformavam aos padrões estéticos e sexuais e, ainda, das mulheres, das crianças e dos alienados. (DUARTE, 2016, p. 521 – grifo nosso)

          A resposta acertada dos grandes nomes atuais da criminologia brasileira, em artigo publicado recentemente, corrobora com a dívida criminológica com a subalternidade, em especial, com as questões raciais.  Márcia Calazans, Evandro Piza, Camila Prando e Ricardo Cappi, em 2016, destacam que a publicação de “criminologia crítica e questão racial” chega tardiamente no campo criminológico, em razão do racismo institucional das escolhas teóricas e dominações que não fogem também da academia.

          Essas contribuições como uma forma de denúncia de dentro do campo criminológico para fora e de fora para dentro faz com que nossos paradigmas criminológicos sejam, de fato, repensados.

          Talvez, seja essa a tentativa deste texto, explorar e refletir para pensar os – e nos – espaços de poder, a partir da subalternidade – e com os subalternos – exige dos pesquisadores um compromisso ético e político com a pesquisa que estão sendo desenvolvidas e as que se pretende desenvolver.

CONSIDERAÇÕES FINAIS                 

          Neste artigo, buscamos explorar introdutoriamente as aproximações entre a hermenêutica negra e a criminologia crítica como caminho para reivindicação de uma criminologia a partir da subalternidade.

          Percebemos que a criminologia, por seu caráter interdisciplinar, possui grande chances de absorção das contribuições da hermenêutica negra, sobretudo, pelos pontos comuns de rejeição da neutralidade, discussões sobre locais de fala e sujeitos com autonomia tanto política quanto intelectual nos espaços de poder.

          As disputas acerca de uma criminologia a partir da subalternidade, perpassa, necessariamente, pelas disputas dos espaços e dos significados que são atribuídas as questões raciais e demais minorias.

          Por fim, as autoras e autores do campo criminológico tem colocado como agenda de pesquisa, nos últimos anos, a necessidade de rediscutirmos o modo como a criminologia se apropriou do debate racial que, muitas vezes, foi utilizado pela estrutura dominante das instituições produtoras de conhecimento.

          Reivindicar uma criminologia a partir da subalternidade significa também continuarmos com políticas públicas de inserção dos subalternos nestes espaços de conhecimento. E, mais do que isso, não apenas inserção, mas condições concretas de oportunidades para produção a partir de suas realidades.

REFERÊNCIAS

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[1]Mestrando em Direito e Políticas Públicas (UFG). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Jataí (UFJ).

[2] Criminologias no plural, a partir da compreensão de Peter Carlen.

[3] A expressão hermenêutica do oprimido significa “aquele indivíduo que faz parte de um grupo cujos membros enfrentam exclusão social em função de relações arbitrárias de poder, as quais os situam em formas de status subordinados” (MOREIRA, 2020, p. 311)